- Vancê sabe que eu tive e me servi muito tempo dum buçalete e
cabresto feitos de cabelo de mulher?...Verdade que fui inocente no caso.
Mais tarde soube que a dona dele morreu; soube, galopeei até onde ela
estava sendo velada; acompanhei o enterro... e quando botaram a defunta na cova,
então atirei lá pra dentro aquelas peças, feitas do cabelo
dela, cortado quando ela era moça e tafulona... Tirei um peso de cima
do peito: entreguei à criatura o que Deus lhe tinha dado.
Eu conto como foi.
Quem me ensinou a courear uma égua, a preceito, estaquear o couro, cortar,
lonquear, amaciar de mordaça, o quanto, quanto...; e depois tirar os
tentos, desde os mais largos até os fininhos, como cerda de porco, e
menos, quem me ensinou a trançar, foi um tal Juca Picumã, um chiru
já madurázio, e que tinha mãos de anjo para trabalhos de
guasqueiro, desde fazer um sovéu campeiro até o mais fino preparo
para um recau de luxo, mestraço, que era, em armar qualquer roseta, bombas,
botões e tranças de mil feitios.
Este índio Juca era homem de passar uma noite inteira comendo carne e
mateando, contanto que estivesse acoc'rado em cima quase dos tições,
curtindo-se na fumaça quente... Era até por causa desta catinga
que chamavam-lhe - picumã.
Pra mais nada prestava; andava sempre esmolambado, com uns caraminguás
mui tristes; e nem se lavava, o desgraçado, pois tinha cascão
grosso no cogote.
Comia como um chimarrão, dormia como um lagarto; valente como quê...
e ginete, então, nem se fala!...
Para montar, isso sim!..., fosse potro cru ou qualquer aporreado, caborteiro
ou velhaco - o diabo, que fosse! -, ele enfrenava e bancava-se em cima, quieto
como vancê ou eu, sentados num toco de pau!... Podia o bagual esconder
a cabeça, berrar, despedaçar-se em corcovos, que o chiru velho
batia o isqueiro e acendia o pito, como qualquer dona acende a candeia em cima
da mesa! Às vezes o ventana era traiçoeiro e lá se vinha
de lombo, boleando-se, ou acontecia planchar-se: o coronilha escorregava como
um gato e mal que o sotreta batia a alcatra na terra ingrata, já lhe
chovia entre as orelhas o rabo-de-tatu, que era uma temeridade!...
Voltear o caboclo, isto é que não!
E bastante dinheiro ganhava; mas sempre despilchado, pobre como rato de igreja.
Um dia perguntei-lhe o que é que este fazia das balastracas e bolivianos,
e meias-doblas e até onças de ouro, que ganhava?...
Esteve muito tempo me olhando e depois respondeu, todo num prazer, como se tivesse
um pedaço do céu encravado dentro do coração:
- Mando pra Rosa... tudo! E é pouco, ainda!
- Que Rosa é essa?
- É a minha filha! Linda como os amores! Mas não é pra
o bico de qualquer lombo-sujo, como eu...
A conversa ficou por aí.
Passaram os anos. Eu já tinha o meu bigodinho.
Rebentou a guerra dos Farrapos; eu me apresentei, de minha vontade; e com quem
vou topar, de companheiro? Com o Juca Picumã.
Duma feita andávamos tocados de perto pelos caramurus... Tínhamos
saído em piquete de descoberta e aconteceu que depois de vararmos um
passo, os legalistas nos cortaram a retirada e vieram nos apertando sobre outra
força companheira, como para comer-nos entre duas queixadas...
E não nos davam alce; mal boleávamos a perna para churrasquear
um pedaço de carne e já os bichos nos caíam em cima...
Na guerra a gente às vezes se vê nestas embretadas, mesmo sendo
o mais forte, como éramos nós, que bem podíamos até
correr a pelego aqueles camelos..., mas são cousas que os chefes é
que sabem e mandam que se as aguente, porque é serviço...
Ora bem; havia já dois dias e duas noites que vivíamos neste apuro;
arrinconados nalgum campestre dava-se um verdeio aos cavalos; os homens cochilavam
em pé; nisto um bombeiro assobiava, outro respondia e o capitão,
em voz baixa e rápida, mandava:
- Monta, gente!
E o Juca Picumã, que era o vaqueano, tomava a ponta e metia-nos por aquela
enredada de galhos e cipós e lá íamos, mato dentro, roçando
nos paus, afastando os espinhos e batendo a mosquitada, que nos carneava...
Ninguém falava. A rapaziada era de dar e tomar, e -sem desfazer em vancê,
que está presente -, eu era do fandango... e devo dizer, que nesse
tempo, fui mondongo meio duro de pelar...
Dessa vereda o vaqueano foi pendendo para a esquerda; de repente batemos na
barranca do arroio, e ele, sem dizer palavra meteu n'água o cavalo e,
devagarzinho, fomos encordoando de trás e varando, de bolapé.
Seguimos um pedaço, sempre sobre a esquerda, e mui adiante tornamos a
varar o arroio para o lado que tínhamos deixado. Tínhamos feito
uma marcha em roda, que íamos agora fechar saindo na retaguarda do acampamento
dos legalistas.
Num campestrezinho paramos; o capitão mandou apear rédea na mão,
tudo pronto ao primeiro grito.
Depois acolherou-se com o Juca Picumã e meteram-se no mato e aí
boquejaram um tempão. Depois voltaram.
Então o capitão correu os olhos pelos rapazes e disse:
- Preciso de um, que toque viola...
Mas o Picumã xeretou logo:
- Tem aí esse pisa-flores, o furriel Blau...
- Esse gurizote?...
- Sim, senhor, esse; é cruza de ca1ombo!...
E deu de rédea, com cara de sono. O capitão acompanhou-o, mandando
que eu seguisse; e eu segui-o, quente de raiva, pelo pouco caso com que ele
chamou-me -gurizote -. Se não fosse pelas divisas, eu dava-lhe o -gurizote!...
Fomos andando... parando... farejando... escutando... Em certa altura o Picumã,
sem se voltar levantou o braço, de mão aberta e parou. O capitão
parou, e eu.
O chiru disse, baixo:
- Está perto... ali!... E o churrasco é gordo!...
E levantava e mexia o nariz, tal e qual como um cachorro, rastreando...
E apeamos.
- Vamos botar um torniquete nos cavalos, para não relincharem...
Fizemos, com o fiel do rebenque.
- Tiramos as esporas, por causa dalguma enrediça... Tiramos.
- Bom; agora o capitão diz como há de ser o serviço...
O oficial encruzou os braços e assim esteve um pedaço, alinhavando
a ideia; depois, como falando mais pra mim do que pra o outro, disse:
- Olha, furriel Blau, tu e o velho Picumã ides jogar o pelego numa arriscada...
Ele que te escolheu pra companheiro é porque sabe que és homem...
Há dois dias, como sabes, andamos nestes matos..., mas não é
tanto pelo serviço militar, é mais por um vareio que quero dar...
por minha conta... Ouve. A minha china fugiu-me, seduzida pelo comandante desta
força... Vocês vão-se apresentar a ele, como desertados
e que se querem passar... Ele é um espalha-brasas; ela é dançarina...,
arranja jeito de rufar numa viola e abre o peito numas cantigas... Tendo farra
estão eles como querem... E enquanto estiverem descuidados, eu caio-lhes
em cima com a nossa gente. Agora... quando fechar o entrevero só quero
que tu te botes ao comandante... e que lhe passes os maneadores... quero-o
amarrado...; entendes? És capaz?... O Picumã ajuda... O resto...
depois...
- Mas... não é pra defuntear o homem... amarrado?...
- Não! Acoquiná-lo, só...
- A tal piguancha, também... não é pra... lonquear?...
- Não! Desfeiteá-la, só...
- Então, vou. Mas quem fala é o Picumã...; eu, nem mentindo
digo que sou desertor...
- Estás te fazendo muito de manto de seda!... Cuidado!...
- Seu capitão é oficial... nada pega...; eu sou um pobre soldado
que qualquer pode mandar jungir nas estacas...
Aí o Picumã meteu a colher.
- Seu capitão, o mocito não é sonso, não! Deixe
estar, patrãozinho, tudo é comigo... vancê só tem
é que atar o gagino..
Depois os dois se abriram e ainda estiveram de cochicho, rematando as suas tramas.
O capitão montou.
- Bueno!... Vejam o que fazem; eu vou buscar a gente, e, conforme chegar, carrego.
Vocês devem-se arrinconar junto da carreta, para eu saber. Blau!... não
cochiles: o ruivo não é trigo limpo!...
E desandou por entre as árvores.
Quando não se ouviu mais nada o chiru convidou.
- Vamos: nos apresentamos como passados, que já andamos entocados aqui
há uns quantos dias. Deixe estar, que eu falo... estes caramurus são
uns bolas... Vai ver como passamos o buçal.. . logo nos aceitam! Vamos!
Ah! meta dentro da camisa uma cana de rédea... é para a maneia
do homem... Os companheiros depois nos levam os mancarrões, a cabresto.
E metemos a cabeça no mato, ele adiante, a rumo do cheiro, dizia.
Andamos mais de seis quadras; nisto, o chiru pego a cantar umas copias, devagar,
meio baixo, como quem anda muito descansado, de propósito para ir chamando
o ouvido de algum bombeiro, se houvesse...
Ora... dito e feito! Com duas quadras mais, um vulto junto duma caneleira
morruda, gritou, no sombreado das ramas:
- Quem vem lá!
- É de paz!
- Alto! Quem é?
- É gente pra força, patrício! Andamos campeando vocês
desde já hoje...
- Há! Pra quê?
- Ora, pra quê... Pra escaramuçar os farrapos!... E queremos jurar
bandeira com o ruivo...
- Ah! vancês conhecem o comandante?
- Ora... ora! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se conheço...
Então, seguimos?...
- Passem. Vão por aqui... até topar um sangradouro...; aí
tem outra sentinela; diga que falou comigo, o Marcos...
- 'Tá bom... Quando render, vá tomar um mate comigo!...
Fomos andando, até a sanga dita; aí topamos com a outra sentinela;
o chiru nem esperou o grito, ele é que falou, ainda longe;
- Oh... sentinela!
- Quem vem lá?...
- Foi o Marcos que nos mandou; andávamos extraviados... ele nos conhece...
vamos levar um aviso ao comandante... É dos farrapos que andavam ontem
por aqui... foram corridos...
- Hã! Pois passem...
- Sim... Pois é... foram-se à ramada do Guedes... Com um couro
na cola, os trompetas!... Tem ai cavalhada de refresco?
- Que nada! A reiunada está estransilhada... A gente a custo se mexia...
E pra mal dos pecados ainda o comandante traz uma china milongueira, numa carreta
toldada, que só serve pra atrapalhar a marcha... A china é lindaça...
mas é o mesmo. .. sempre é um estorvo!...
Aqui o Picumã se acoc'rou, tirou uma ponta de trás da orelha e
pediu-me:
- Dá cá os avios, parceiro...
E bateu fogo. Reparei que a respiração do chiru estava a modo
entupida... Mas pegou outra vez:
- É... o Marcos disse-me que o comandante é mui rufião...
-
- É mesmo; mal empregada, a cabocla; qualquer dia ele mete-lhe os pés...
é o costume... Ora!...
- É... assim, é pena... Vamos, parceiro. Até logo. Como
é a sua graça?
- João Antônio, seu criado... E a sua, inda que mal pergunte?
- Juca, patrício... Juca no mais... Quando render, espero a sua pessoa
para um amargo!...
- 'Stá feito!... Vá em paz!...
E outra vez nos mexemos, agora sobre o acampamento dos legais. Começamos
a ouvir o falaraz dos homens, assobios, risadas, picamento de lenha, uma rusga
de cachorros.
Mais umas braças. Chegamos. No meio do campestre uma fogueira grande,
rodeada de espetos onde o churrasco chiava, pingando o fartum da gordura; nas
brasas, umas quantas chocolateiras, fervendo; armas dependuradas, botas secando,
japonas abertas, e ponchos, nos galhos. Deitados nos pelegos, nas caronas, muitos
soldados ressonavam; outros, em mangas de camisa, pitavam, mateavam.
Do lado da sombra uma carreta toldada. Num fueiro, pendurado, um porongo morrudo,
tapado com um sabugo; vestidos de mulher, arejando, diziam logo o que aquilo
era. Pertinho, outro fogão, também com churrasco, uma chaleira
aquentando e uma panela cozinhando algum fervido... Uma fumaça mui azul,
cerrava tudo, alastrando-se na calmaria da ressolana.
Dois cavalos à soga, e um outro, bem aperado, maneado, pastando.
Mal que desembocamos do mato vimos tudo... e tudo com jeito de acampamento
relaxado.
O chiru foi andando como cancheiro, e eu, na cola dele. Nisto um sujeito, deitado
nos arreios, gritou-nos:
- Che! Aspa-torta! Então isto aqui é quartel de farrapos?...
não se dá satisfações a ninguém?...
- Foi o Marcos, que nos mandou...
- Que Marcos?
- O Marcos, que está de sentinela... e o João Antônio...
sim, senhor, para falar com o comandante...
: - Isso é outro caso... O comandante está sesteando... Se
quiserem, esperem ali, junto da caneta. Já comeram?
- Já, sim senhor.
- Pois então!... Vão!
E apontou.
Arrolhamo-nos na sombra da carreta, junto da roda, encostando a cabeça
na maça. Eu estava como em cima de brasas... não era pra menos...
Cuna!... Se descobrissem, nos carneavam, vivos!...
O Picumã cochi1ava... mas estava alerta, porque às vezes eu bem
via fuzilar o branco dos olhos, na racha das pálpebras, entre o sombreado
das pestanas...
A milicada começou a retirar os churrascos, já prontos e foi-se
arranchando em grupos, para comer.
Nisto, por cima de nós, dentro da carreta, ouvimos falar, e depois uma
risada moça, e logo uma mulher desceu, barulhando anáguas.
O chiru, que estava com os braços encruzados por cima dos joelhos, quando
sentiu a mulher, afundou a cabeça pra diante, escondendo a cara...
e o chapéu ainda ficou imprensado entre a testa e a curva do braço...
Então passou pela nossa frente a cabocla... viu um como dormindo e o
outro, que era eu, mui derreado e bocó... E foi-se à panela, mirou-a,
apertando os olhos pro via da fumaça e do mormaço do brasido,
Por Deus e um patacão!...
Era um chinocão de agalhas!... Seiúda, enquartada, de boas cores,
olhos terneiros... e com uma trança macota, ondeada, negra, lustrosa,
que caía meio desfeita, pelas costas, até o garrão!...
- Por que seria que este diabo largou o meu capitão, para se acolherar
com este tal ruivo?...
Isto de chinas e gatos... quem amimar sai arranhado... Talvez por este ser ruivo...
talvez por farromeiro... por causa dalgum cavalo que ela gabou e ele regalou-lhe...
e até... até por enfarada do outro... Ora vão lá
saber!...
Nisto a piguancha alçou a panela e voltou pra carreta.
O chiru então, com a cara de lado, soprou-me de leve:
- Ela não se arpistou quando me viu?...
- Não... nem nos benzeu com um olhado... É uma cabocla enfestada!...
- Cale a boca... Apronte-se que o fandango não tarda.
- Eu preferia bailar com a morena...
- Aqueles dois do mate convidado não vêm mais....
- Os sentinelas?
- Sim; com certeza o capitão enxugou-os... Está me palpitando
que a gente está desabando aí...
Palavras não eram ditas, que saiu do mato um milico, pondo a alma pela
boca, e balançando, de cansaço e medo, mascou a nova:
- Os farrapos! Os farrapos! Mataram o João Antô!...
Estrondeou um tiro... zuniu uma bala... um legal virou, pataleando.
E pipoqueou a fuzilaria em cima da camelada!
Eu, pulei logo para o recavém da carreta, para me botar ao ruivo; mas
antes de chegar já ele tinha descido... e se foi ao cavalo, que montou
de pulo e mesmo sem freio e maneado, tapeando-o no mais, tocou picada fora.
E berrou à gente:
- Pra o rincão! Pra o rincão!
E com a folha da espada tocou o flete, que pelo visto era mestre naquelas arrancadas.
Mesmo assim eu ia ver se segurava o homem, mas o chiru gritou-me:
- Deixe! Deixe! Agora é tarde!...
Naturalmente de dentro da carreta a china viu o entrevero, e que o negócio
estava malparado; e pulou pra fora, pra disparar e ganhar o mato. Mas quando
pisou o pé em terra, a mão do Juca Picumã fechou-me o braço,
como uma garra de tamanduá...
A cabocla não estava tão perdida de susto, porque ainda deu um
safanão forte e gritou, braba:
- Larga, desgraçado!...
E olhou, entonada... mas conheceu o chiru e ficou abichornada, pateta...
- O tata! O tata!...
- Cachorra!... Laço, é o que tu mereces!...
- Me largue, tata!...
- Primeiro hei de cair-te de relho... pra não seres a vergonha da minha
cara...
Neste instante, fulo de raiva, o nosso capitão manoteou-a pelo outro
braço.
- Ah! mencê... perdão!... Nunca mais!... Eu... Eu...
- Eu é que vou dar-te sesteadas com o ruivo, guincha desgraçada!
E furioso, piscando os olhos, com as veias da testa inchadas, largou o braço
da morena mas agarrou-lhe os cabelos, a trança quase desmanchada, fechando
na mão duas voltas, agarrou curto, entre os ombros, pertinho da nuca..,
e puxou pra trás a cabeça da cabocla..., com a outra mão
pelou a faca, afiada, faiscando e procurou o pescoço da falsa...
Chegou a riscar... riscar, só, porque o chiru velho, o Juca Picumã,
foi mais ligeiro: mandou-lhe o facão, de ponta, bandeando-o de lado a
lado, pela altura do coracão!...
- Isso não!... é minha filha! disse.
O capitão revirou os olhos e deu um suspiro rouco... depois respirou
forte, espirrou uma espumarada de sangue e afrouxou os joelhos... e logo caiu,
pesado, com uma mão apertada, sem largar a faca, com a outra mão
apertada, sem largar a trança...
E a china, assim presa; rodou por cima dele, lambuzando-se na sangueira que
golfava pelo rasgão do talho, que bufava na respiração
do morrente...
Vendo isso, o Picumã quis soltar a piguancha e forçou abrir a
mão do capitão: qual! era um torniquete de ferro; tironeou...
nada! Então, sem perder tempo, com o mesmo facão matador cortou
a trança, rente, entre a mão do morto e a cabeça da viva...
Foi - ra... raaac! - e a china viu-se solta, mas sura da trança, tosada,
tosquiada, como égua xucra que se cerdeia a talhos brutos, ponta abaixo,
ponta acima...
E mal que sentiu-se livre sacudiu a cabeça azonzada, relanceou os olhos
assombrados, arrepanhou as anáguas e disparou mato dentro, como uma anta...
- Cachorra!... vai-te!... rugiu o chiru, limpando o ferro na manga da japona.
E olhando o corpo do capitão, cuspiu-lhe em cima, resmungando:
- Pois é... seduziu... e agora queria degolar... E mui triste, pra mim:
- Vancê vai dar parte de mim?
- Esta é a Rosa, a tua filha?
- Sim, senhor, que eu criei com tanto zelo!...
E mais não pudemos dizer, porque o entrevero rondou para o nosso lado..
. e tivemos que fazer pela vida!... No meio do berzabum o Picumã ainda
achou jeito de atirar uns quantos tições pra dentro da carreta...
e daí a pouco o fogo lavorava forte naquele ninho de amores A la fresca!...
que ninho!...
Alguém gritou: o capitão 'stá morto!... Vamos embora!...
Um de a cavalo atravessou-o no lombilho e fomos retirando, tiroteando sempre.
Mas a trança não ia mais na mão do morto.
Passaram-se uns três meses largos; em muita correria andamos, surpresas,
tiroteios, combates sérios.
Um dia um estancieiro regalou-me um pingo tordilho, pequenitate, mas mui mimoso.
Quando eu ia sentar-lhe as garras, apareceu-me o Picumã, sempre esfrangalhado
e com cara de sono e disse-me, desembrulhando um pano sujo:
- Vim trazer-lhe um presente; é um trançado feito por mim; e há
de ficar mui bem no tordilho, porque é preto...
E ajeitou na cabeça do cavalo um buçalete e cabresto preto, de
cabelo, trançado na perfeição. Nunca passou-me pela ideia
cousa nenhuma a respeito...
O meu esquadrão marchou para a fronteira; depois andamos de Herodes para
Pilatos, até que no combate das Tunas... fomos topar com os antigos companheiros
de divisão. Brigamos muito, nesse dia. Aí ganhei as minhas batatas
de sargento.
Não sei como ele soube, mas de noute um fulano procurou-me dizendo que
o soldado Juca Picumã, um chiru velho, que estava muito ferido, pedia
para eu não deixá-lo morrer sem vê-lo.
Lá fui. Estava o chiru deitado nas caronas e todo reatado de panos, pela
cabeça, nas costelas, nas pernas.
O coitado gemia surdo, de boca fechada; e às vezes cuspia preto...
Quando me viu, à luz de uma candeia de barro fresco, quis mexer os ossos
e não pôde...
- Então, Picumã... homem afloxa o garrão?...
E ele falou tremendo na voz:
- Estou... como um crivo... Eram oito... em cima... de mim... só pude...
estrompar... cinco!... Vancê... ainda... tem... aquele buçalete?...
- Tenho sim; meio estragado, mas tu ainda hás de compô-lo, não
é?...
Não... eu queria... eu queria... lhe... lhe pedir... ele, outra
vez... pra... pra mim...
- Pois sim, dou-te! Amanhã trago-te.
- E do... do cabelo da Rosa... a trança... lembra-se?...
Levantei-me, como se levasse um pregaço no costilhar... O buçalete
era feito do cabelo da china?!... E aquele chiru de alma crua... E quando firmei
a vista no índio, ele arregalou os olhos, teve uma ronqueira gargalejada
e finou-se, nuns esticões...
Nessa mesma madrugada fui mandado num piquete de reconhecimento, de forma que
não soube onde nem como foi enterrado o Picumã, porque o meu desejo
era atirar-lhe pra cova aquele presente agourento...
Agourento... agourento não digo, porque afinal enquanto usei aquele
buçalete nunca fui ferido.., e ganhei de uma a quatro divisas...
Tem é que dobrei a prenda, reatei-a com um tento e soquei-a pro fundo
da maleta, até ver...
Até que um dia, como lhe disse, soube que a Rosa morreu e então...
ah!... já lhe disse também: atirei para a cova da china os cabelos
daquela trança... doutro jeito, é verdade... mas sempre os
mesmos!...