A Garganta da Serpente
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O rato maldito

(JRM Torres)

Terça-feira.
Foi a primeira vez que o viu.
Manobrou o Fusca azul para dentro da garagem.
Trancou a garagem e entrou na casa de um pavimento, velha, porém aconchegante.
Era 22:30h.
Havia saído da fábrica de relógios, onde trabalhava como montador, e parado no bar do "seu" Alfredo.
Tomou três cervejas e colocou a fofocas em dia.
Tinha trinta anos, magro, moreno, rosto comum, 1,75m, solteiro e morava só, naquela casa alugada.
Havia se mudado há apenas dois meses.
Acostumara-se com a solidão, pois nunca foi casado.
Tomou banho e preparou-se para o jantar.
Esquentou o arroz que fizera na segunda-feira e começou a fritar três ovos.
De repente, viu o animal, que despontou na cozinha.
Um rato!
Cerca de 12 cm, andar desconfiado, brilho estranho nos olhos. Por segundos, os dois se encararam. Não gostou do brilho daqueles olhinhos.
Depois, o rato desapareceu debaixo do buffet.
Continuou a fritar os ovos, sem ligar para o rato.

Quarta-feira
Trabalhou na fábrica normalmente.
Ricardo, seu colega de trabalho e amigo, o convidou para uma cervejada sábado.
- Tudo bem. Vamos nessa. - aceitou, sorrindo.
De volta a casa, viu o rato na cozinha, no momento em que cozinhava macarrão instantâneo com ovos e sardinha.
Nova troca de olhares.
O brilho dos olhos do rato.
"Estranho!" - pensou - "Ele parece querer me dizer algo".
O rato sumiu em seguida.

Quinta-feira
Trabalhou, mas o brilho dos olhos do rato lhe veio à mente. Não quis comentar nada com Ricardo.
O rato não apareceu na casa, naquela noite.
Onde estará?

Sexta-feira
Mais um dia de trabalho.
Ficou em dúvida se contava sobre o rato para Ricardo. Por enquanto, optou pelo silêncio.
Tomou quatro cervejas no bar de "seu" Alfredo.
Chegou em casa e tomou o banho regulamentar.
Jantou e foi ver TV.
Viu o rato na sala. Parecia... maior? Uns 14 cm? Ou era impressão sua?
O rato o encarou. O brilho dos olhos! Um brilho que não era bom.
Evidenciava algo maligno.
O rato sumiu rapidamente.
Não procurou caçá-lo, pois ainda não o incomodava.
Mas... aquele brilho... o que queria transmitir?

Sábado
Não trabalhou na fábrica.
Aproveitou o dia para dar uma geral na casa. Lavou e limpou tudo.
Almoçou peixe grelhado num restaurante.
Foi buscar as roupas limpas na lavanderia.
Abasteceu o Fusca azul.
Depois, foi a uma casa de programa e transou com Lílian, loira rechonchuda e fogosa. Sexo pago, sexo seguro, era sua filosofia. Saiu de lá satisfeito.
À tarde, viu o futebol na TV.
No início da noite, ligou para seu amigo Ricardo.
- Vamos para o forró?
Dez horas da noite, pegou Ricardo em sua casa. Ambos seguiram para um clube de forró, em outro bairro.
Bebeu todas. Sorriu. Dançou com 5 garotas. Pegou o número do telefone de uma dela, a Patrícia. Beijou-a na boca, mas ela não quis conhecer sua casa.
Ricardo ficou com Débora, que também optou em ficar somente nos beijos.
A garota foi embora com as amigas.
Ele deixou o Ricardo em casa. Ambos estavam felizes, pois a noite foi relativamente proveitosa.
Voltou para casa sozinho e meio "alto". Pensava em Patrícia e no seu lindo sorriso. Será se encontrara sua gatinha especial?
Tomou banho.
Ia deitar-se quando... viu o rato.
No quarto!
Teria agora uns 16 cm? Como pôde crescer tanto, em tão pouco tempo? Ou estaria imaginando isso?
O brilho dos olhos! Se tornava, a cada dia, mais diabólico. Incrível!
O rato começou a assustá-lo.
Começou a ventilar a hipótese de dar um fim nele.
O rato sumiu, como sempre.
Dormiu mal, pensando no brilho daqueles olhos.

Domingo
Acordou meio-dia, com ressaca e preguiça.
Tomou banho e fez suas necessidades básicas.
Ainda meio grogue, resolveu ir à praia.
Pegou o Fusca azul e foi a uma das praias mais frequentadas da cidade.
Ligou para Patrícia, mas ela não podia sair.
Tudo bem, pensou.
Almoçou camarão frito (com arroz e salada) e tomou mais três cervejas, para afastar a ressaca.
A cerveja era sua vitamina predileta, sem dúvida.
Passou a tarde na praia, ouvindo reggae e observando as garotas em seus biquínis sensuais.
Voltou para casa e conseguiu ver o segundo tempo do futebol.
À noite, viu novamente o rato.
Na cozinha!
Um rato enorme, que o encarou de modo ostensivo! Aquele brilho estava lá!
Horripilante! Parecia... desafiá-lo? Teria agora uns 20 cm?
Estremeceu!
- O que você quer, maldito? - ouviu-se gritar, um misto de raiva e medo no semblante.
Pegou uma vassoura e pariu para cima do rato. O bicho rapidamente correu para debaixo do buffet.
Abriu todas as gavetas do buffet.
Nada do rato.
Procurou pela cozinha toda e... nada.
Não teve mais dúvidas. Havia algo de errado com esse rato e precisava exterminá-lo. E se fosse uma fêmea? E se tivesse grávida? E quantos outros ratos não iriam aparecer naquela casa? E se ele o mordesse enquanto dormia?
Dormiu mal, sem deixar de pensar no rato.

Segunda-feira
Na fábrica, conversou com Ricardo.
- Um rato apareceu lá em casa. - disse.
- E?
- Era um rato pequeno, mas, em três dias, se tornou enorme. Assustador. O que devo fazer para me livrar dele?
- Reza braba. Ou peça-o para sair. Por favor, seu rato, o senhor está me incomodando. Queira se retirar, por favor. Hehehehe!
- Não brinque.
- Esse rato tá te perturbando?
- Sim.
- Falando sério, Vítor, espalhe veneno pela casa. Queijo envenenado. É tiro e queda. E matarás também todos os irmãos dele, se houver.
Saiu da fábrica, no final da tarde, e comprou veneno para rato, numa loja do ramo.
Comprou queijo também.
Chegou em casa e começou a agir.
Espalhou pelo menos oito pedaços de queijo envenenado pelos cantos da casa.
Em seguida, jantou e viu TV.
O rato não apareceu.
"Breve me livrarei de você, maldito!", pensou.

Terça-feira
- Segui sua orientação, Ricardo.
- Ótimo. Breve você verá uns dez mil ratos mortos em sua casa. Teremos forró sábado?
- Pode ser. - sorriu.
No final da tarde, ligou para Patrícia.
Encontraram-se numa sorveteria.
Morena bonita, baixinha e sensual.
Conversaram, trocaram beijos, namoraram. Deixou-a em sua casa. A garota, de 21 anos, morava com os pais e irmãos.
- Poderei vê-la amanhã?
- Sim.
Voltou para casa, feliz, pois estava gostando dela.
O rato não apareceu na casa.
Tudo parecia ir bem.

Quarta-feira
Quatro da madrugada.
Acordou, sobressaltado!
Teria ouvido um barulho na cozinha?
Levantou-se e deu uma olhada. Acendeu as luzes.
Nada.
Ninguém na área.
Voltou a dormir.
Trabalhou normalmente e contou para Ricardo que estava gostando da Patrícia.
À noite, novo encontro com a garota.
Beijos, conversas, sorrisos, cheiro no cheiro. Papo vem, papo vai, conseguiu convencê-la a conhecer sua casa.
- Posso ir lá, amanhã, mas não vai acontecer nada, ouviu? - ela disse.
- Tudo bem, amor. Só iremos ver TV, conversar e comer pipocas.
Ela sorriu. Combinaram a visita para o dia seguinte.
Voltou para casa, sozinho, mas satisfeito.
Na casa, um cheiro ruim.
Na cozinha viu o rato!
Morto!
Bem no meio da cozinha.
Um rato enorme, 50 cm, gordo, morto e imóvel. Como pôde crescer tanto?
Pegou o cadáver do bicho pelo rabo, colocou-o dentro de um saco e o depositou na enorme lata de lixo, na frente da casa.
- Já vai tarde, maldito! - disse, com raiva.
Mesmo assim, dormiu mal, ainda pensando naquele rato morto e enorme, na cozinha de sua casa.
Acordou duas vezes, no meio da noite, pensando que ele estava ali, no quarto, tentando matá-lo.
- Meu Deus! Livre-me desse malefício! - murmurou, tenso, e tentou dormir novamente.
O rato!
Dentes à mostra, olhos brilhando, saltava em cima dele. Fugia, tentando salvar-se.
O rato o perseguia! Emitia ruídos estranhos.
Acordou de novo, assustado e não conseguiu mais dormir.

Quinta-feira
Ricardo o abordou, na fábrica.
- Você está bem, Vítor? Parece pálido e com cara de quem não dormiu direito, ontem. O que houve?
- T-Tenho duas novidades.
- Sim?
- Matei o rato. Era um rato grande, o maior que já vi. Assustador mesmo.
Você precisava vê-lo. Não sei como cresceu daquele jeito.
- Deve ter escapado de algum filme de terror. Hehehe!
- Tive pesadelos com aquele rato. Fico pensando que ele pode voltar do inferno para me matar. Não dormi direito pensando no maldito rato!
- Ei, cara, pare com isso! Acalme-se. É apenas um rato. Relaxe. Esqueça o rato e conte-me a outra novidade.
- P-Patrícia vai lá em casa hoje.
- Nossa! Você vai...
- Nada disso. Só beijos e namoro. Ela é especial. E além disso, prometi me comportar.
- É impressão minha ou tenho um amigo que está apaixonado?
- Pode ser...
- É isso aí, meu. Esqueça o rato, já disse. O rato te perturbou, mas pense somente na Patrícia, ok? Volte sua mente somente para tua namorada, certo?
- Ok. - sorriu.
Saiu da fábrica e comprou milho para pipoca.
Alugou dois filmes em VHF. Comédias românticas para seu videocassete. Há meses não o usava, mas essa era um ocasião ímpar, pensou.
À noite, foi até a casa da garota.
- Vamos?
Trocaram beijos e ela entrou no Fusca.
- Aluguei dois filmes. E teremos pipoca.
Patrícia sorriu.
Entraram na casa.
- É sua?
- Alugada. Mas estou guardando dinheiro para comprar uma. Sente-se, enquanto faço as pipocas.
Deixou a TV ligada, o videocassete em condições.
Patrícia sentada no sofá.
Começou a fazer as pipocas.
De repente, ouviu um barulho estranho vindo da sala. Parecia um grito! O que estaria acontecendo?
Correu para lá, já temeroso.
E o que viu o deixou chocado!
Patrícia desapareceu!
No lugar dela, em cima do sofá, o maior rato do mundo!
Teria um metro e meio de altura?
Animalesco, sobrenatural, um ódio sinistro, maquiavélico e insano fluindo daquele par de olhos e reverberando, brilhante!, pelo local.
Arrepiou-se de medo!
- Cadê a Patrícia, rato maldito? - conseguiu gritar, desesperado - Cadê???
O ódio deu lugar ao medo.
Sem saber como, atacou o rato.
Jogou-se em cima dele, no sofá... abraçou-se com aquela monstruosidade.
Apertou, com as duas mãos, o que seria o pescoço do animal, num esforço incontrolável... O rato sacolejava, tentando livrar-se de suas mãos. Tentava mordê-lo. Urrava alto. Tinha o hálito fétido. Enojado, usou de todas as suas forças para dominar o rato. O pescoço! Por entre os pêlos! Apertando...
apertando... Suas mãos doíam. Sentia as garras do rato em seu corpo. Dor! O rato rasgou seu braço. O sangue correu. Mas apertava o pescoço com mais força. O ódio lhe dava forças sobrenaturais.
- Morra, maldito! Morra!
Foi uma luta intensa.
Minutos depois, caía por cima do rato, cansado, desfalecido, ensanguentado.
O rato havia morrido? Sim. Mas... algo estava errado!
O que viu o deixou transtornado.
- Não pode ser! Não pode ser! Meu Deus!!!! - gritou, apavorado.
Desmaiou, em seguida...

Sexta-feira
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Sábado
O jornal da tarde anunciava a seguinte manchete, em sua página principal:
"HOMEM MATA NAMORADA E ENLOUQUECE. Vítor Quibb Lins, 30 anos, matou a namorada, Patrícia Grugger, 21, em sua casa, por estrangulamento com as mãos. Os dois foram encontrados pela polícia, ontem pela manhã, após denúncia do amigo, Ricardo Trevor, que notou sua falta ao trabalho. Vítor foi achado desmaiado por cima do cadáver de Patrícia, no sofá da casa dele.
Momentos depois, uma cena bizarra foi presenciada. Ao ser levado para o hospital, acordou subitamente, os olhos vidrados e, segundo as enfermeiras, começou a gritar, ininterruptamente: "O rato maldito! Matei o rato maldito!!! Matei! Eu juro! Mateeeeiii!!!" Vítor teve que ser amarrado e hoje é hóspede de uma clínica para doentes mentais."

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