A Garganta da Serpente
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Os gatos satânicos

(JRM Torres)

I

- Não me mate! P-Por favor... não...

Apontou a arma (um revólver calibre 38) e puxou o gatilho.

O som do tiro reverberou malignamente no local, a explosão foi como uma mensagem da morte. O projétil penetrou no peito, do lado do coração, rasgando roupa e carne e fazendo jorrar o sangue. Um tiro foi suficiente. O corpo estremeceu, mãos foram levadas ao peito. Um misto de grito e gemido, num estertor gutural, se fez ouvir. Gemidos de dor e agonia. O desespero de quem sabe que a morte chegou.

O corpo caiu.

Estremeceu por alguns segundos - olhos horrivelmente abertos, boca escancarada, como que à procura do ar que faltava - e depois ficou imóvel, o buraco ensanguentado bem visível na claridade daquela tarde.

O assassino deu uma olhada e ficou satisfeito.

Mais um cadáver.

Desta vez seria encontrado naquele terreno fétido, abandonado, onde as pessoas (ignorando a placa de proibição) jogavam o lixo do bairro.

Terreno extenso, maior do que um campo de futebol. Ao redor, a estrada de terra batida e... mato. A casa mais próxima estaria a um quilômetro de distância.

O lugar perfeito.

Breve receberia o pagamento para mais um trabalho realizado.

Sorriu discretamente.

O assassino vestia calça jeans, camiseta preta e jaqueta verde. Sua inseparável jaqueta verde. Velha e surrada, sua companheira de muitas

jornadas.

Já ia entrar no carro quando avistou... os gatos.

Dois gatos!

Um preto, com uma mancha branca num dos olhos. Outro marrom, também com uma mancha branca num dos olhos. Os dois tinham manchas brancas, ambas no olho esquerdo.

Que estranho, ó xente!, pensou.

Um gato preto; outro marrom. Seriam um casal?

Surgiram do nada e pararam diante do cadáver. Deram uma cheirada.

Olharam-no, por alguns segundos. Depois, desviaram os olhos do cadáver e o encararam. Um do lado do outro. Sentados sobre as patas traseiras, olhando-o fixamente, como se reprovassem o que fizera.

Por alguns segundos, ficou incomodado por aqueles olhares. Possuíam uma aura... como poderia definir?... inquietante, digamos assim. Olhares inquietantes, era a palavra adequada. Gatos com os olhares absolutamente inquietantes.

Nunca os tinha visto antes. E não gostou daqueles olhares.

Não gostou da afronta que via neles, como se os gatos não o temessem. Como se o desafiassem. Parecia que os gatos o odiavam. Sim. Teve a impressão de que havia ódio nos olhares dos gatos. Um ódio esdrúxulo, pernicioso, nocivo!

Eles estavam ali, calmos, imóveis, mas seus olhos diziam tudo.

Sem saber como, também sentiu ódio e repulsa pelos gatos. Era como se eles houvessem invadido sua privacidade, numa tétrica ousadia. Gatos foram feitos para temer e respeitar os homens; não para afrontá-los.

E foi por estar com ódio e nojo dos gatos que pensou em matá-los.

Chegou a levantar a arma e apontar. Dois tiros e seriam dois gatos mortos. E adeus olhares inquietantes, raiva, repulsa, sentimentos mútuos e negativos.

Eles iriam parar na baixa da égua! Mortinhos da silva!

No entanto...

Estremeceu!

Seu corpo, de modo súbito e involuntário, começou a arrepiar-se! Arrepios esquisitos!

Sentiu um princípio de frio. Um frio incômodo. Frio?!? Em pleno sol do sertão? Como? O que poderia explicar essas coisas? Seus olhos vacilaram.

Seus lábios tremeram. Ficou pálido! O braço estava erguido, o cano da arma voltado para o primeiro gato, o preto. Bastava puxar o gatilho, só isso.

Simples e decisivo.

Mas... não conseguiu puxar o gatilho!

Por quê? O que estava acontecendo?

Suas mãos. Vacilavam. Não tinham forças! Seu corpo tremia. O frio penetrava seus ossos, tirando-lhe o raciocínio.

Os gatos continuavam ali, imóveis, como estátuas.

De repente, viu-se baixando o braço. Sem entender como. O maldito braço baixou, sem que ele desse o comando. A arma apontava para o chão. Outro mistério.

O frio passou. Sim. Inexplicavelmente. O tremor foi embora, tão rápido como chegou.

Os gatos! Levantaram-se, viraram as costas e foram embora. Em passos apresados, entraram no mato e... desapareceram.

Notou que suava.

Enxugou o suor do rosto e respirou fundo.

- Merda! - gritou, desabafando.

Acostumado a matar pessoas e não conseguiu matar dois gatos. Por que não puxou o gatilho? Por que os gatos o olharam daquele jeito? Teria havido mesmo os gatos? Ou não? De onde veio aquele frio?

Talvez tivesse imaginado tudo aquilo. Quem sabe delírio de matador. Gatos que não existiam. Frio ilusório. O sol cozinhando seu cérebro. Pode ser, pode ser. Bem, precisava de uma cerveja danada de gelada, isso sim. Tinha que esquecer aquilo.

Olhou o relógio e percebeu que já estava a mais de meia hora naquele terreno. Precisava sair dali.

Entrou no carro.



II

Recebeu o pagamento (grana suficiente para viver de modo confortável por muitos meses) no mesmo dia, numa cidade vizinha (lugar neutro e seguro, claro) e, após ter feito a viagem de volta, comemorou tomando cerveja num bar, na sua cidade natal, no início da noite.

Estava numa cidade nordestina, pequena, discreta, a cerca de cinquenta quilômetros da capital daquele Estado.

Empresários, fazendeiros, maridos (e até esposas!) o contratavam para serviços mortais. Um telefonema, uma conversa num bar, a combinação do preço, a forma e o local do pagamento, a foto da vítima (ou descrição), o local onde poderia encontrá-la e pronto. Uma vida a menos, dinheiro na conta. Sorriu, ante a ideia.

Seu carro era um opala cinza, de duas portas, com mais de vinte anos de estrada. Carro gente fina, arretado de forte e que nunca o deixava na mão.

Às vezes precisava sequestrar a vítima na capital e levá-la para um terreno abandonado, nas cidades da vizinhança. Às vezes matava na capital mesmo, com tiros ou facadas. De vez em quando por atropelamento. Seu opala já matou gente, com certeza. Carro bão, sô.

Dependendo da situação, simulava roubo ou suicídio.

As vítimas eram pessoas insignificantes e que não faziam falta à sociedade.

Raramente matava um figurão, gente de grana. Muito raramente. E contava com vários contatos no submundo da capital, amigos seus, que o indicavam, quando havia um serviço mortal a ser feito. Eles davam seu telefone para a pessoa contratante, após se certificarem de que não era trote ou armadilha.

Matou muita gente (mais de vinte, sim senhor!), mas os jornais nunca associaram as mortes como de autoria de uma só pessoa.

Os motivos? Talvez por ser inteligente o suficiente para não deixar assinatura. Ou por mudar os métodos. Ou por simular roubo seguido de morte.

Ou por estar no nordeste, terra sem lei. Ou por matar pessoas desconhecidas e, em alguns casos, em débito com a lei. Ou por ter sorte. Ou por contar com a ineficiência da polícia. Ou... sei lá.

O certo é que estava se dando bem e há muito tempo.

Haveria remorsos ou arrependimento em sua alma? Vixe! Nenhum. Absolutamente nenhum. Matava porque era um negócio rentável e seguro. Matava por que seu organismo o impelia a isso. Foi feito para matar. Tinha, confessava, até um certo prazer em matar. Mínimo, é bom dizer. Nada que pudesse descontrolá-lo.

Nunca matou ninguém por vingança ou pelo simples prazer. Sempre matou por dinheiro. E dificilmente o faria por outro motivo que não fosse grana. Ou seja, conciliava seu instintivo matador com o lucro que obtinha disso. Era uma questão de inteligência, acima de tudo.

Outro item que facilitava sua vida era o fato de nunca ter sido preso, nem ter se envolvido em brigas, acidentes ou escândalos. Considerava-se um sujeito frio e calculista e que media muito bem as consequências de seus atos. A calma era sua maior arma.

Pelo menos até o surgimento dos gatos.

Os gatos... não queria pensar neles.

Era moreno, alto, magro, solteiro, quarentão e morava só. Morava numa casa grande (amarela, de um pavimento, três quartos, garagem, quintal, com uma varanda chique na frente, como gostava de dizer aos amigos) e confortável.

Gostava de morar ali.

Para os vizinhos e familiares, ele era vendedor ambulante, que vendia de tudo um pouco: roupas, panelas, relógios, facas, bugigangas de plásticos, brinquedos, etc. Colocava tudo no opala e saía pelas cidades vizinhas, mostrando sua lábia e oferecendo seus produtos de casa em casa. Ninguém desconfiava de sua outra atividade. Quer dizer, na verdade ele era vendedor mesmo. A arte de matar era sua segunda profissão, um bico, digamos assim (riu, ao pensar nisso), coisa que fazia de vez em quando.

Já foi casado, mas não deu certo. O casamento durou seis anos. Seis anos de brigas e discussões. Mulher chata da moléstia! O incrível é que nunca bateu na mulher, porém sentiu vontade (várias vezes!) de matá-la a tiros. Sentiu vontade, mas não matou. Tiveram um filho, mas a mulher se mudou pra capital, com ele. E hoje estava casada com outro, tendo até mais dois filhos. Seja feliz, muié. Tem sorte em estar viva, diacho.

Com relação ao filho, o via cerca de cinco ou seis vezes por ano. Duas quando o garoto vinha visitá-lo, durante as férias escolares. Nas outras vezes, quando ia à capital, para vê-lo, na casa da ex. Isso sem contar os telefonemas que trocavam. Adorava o filho, apesar de achá-lo delicado demais para ser seu filho. Só esperava que ele não fosse... bicha. Deus me livre!,pensou. Tinha 15 anos e era alto para a idade. Estudioso, educado e tranquilo. No item tranquilidade puxou ao pai. Bem, pelo menos esperava que não se tornasse um matador de gente. Um outro assassino na família seria catastrófico. Nem bicha e nem assassino.

Mas... e se ele decidisse ser um promotor ou policial? O que poderia acontecer entre eles? Já pensou ser preso pelo próprio filho? Estremeceu e afastou a ideia. Não. Seu filho não poderia ser bicha, nem assassino, nem promotor e nem policial. De jeito nenhum.

Estava na primeira semana de novembro, logo depois do dia de finados.

No mês de dezembro, seu filho viria visitá-lo, para passar o Natal com ele.

Ansiava por essa visita, que lhe dava uma alegria indescritível. Seu filho adorava a casa, por ser enorme e ter videogame e computador. Era um assassino, reconhecia. Porém, acima de tudo, era pai. Paizão. Nossa! Como adorava ser pai.

Estava feliz.

Sua vida seguia um rumo verdadeiramente positivo.

Quer dizer, antes dos gatos.

Os gatos satânicos.



III

Naquela noite, chegou em casa, bêbado, por volta das duas horas da madrugada.

Deixou o opala na frente da casa.

Teve dificuldade em destrancar a porta. Maldita chave! Maldito buraco da fechadura, muito pequeno naquela hora. Sorriu. Entrou, cambaleante, e seguiu direto para o banheiro. Foi ligando luzes pelo caminho. Urinou. Não tomou banho, apesar do calor. Estava doido demais para se molhar. Em seguida, a cozinha. Depositou a arma em cima da mesa da cozinha. Ingeriu água gelada.

Nem sabe como conseguiu abrir a geladeira e encher um copo com água. Coisas da vida. Despiu-se e ficou só de cueca.

Jogou-se na cama de casal, na suíte da casa.

Não demorou muito e apagou geral, imerso na embriaguez da bebida e do sono.

Fez zzzzzzzzz, sem sonhos.

Acordou por volta das dez horas da manhã, ressacado e com dor de cabeça.

Abriu os olhos, bocejou, esticou os braços, espreguiçou-se e viu... os gatos!

Parados, juntos, na porta aberta. Olhos fixos nele. As manchas brancas, sob a pouca claridade do quarto, tinham um aspecto horrível! Pareciam ter vida!

Assustou-se. Sentiu novo tremor e... frio. Mais uma vez o frio chato. Quem abriu aquela porta? Como conseguiram entrar na casa? Onde estava sua arma?

Não lembrou onde a deixou.

Quando ousou movimentar-se, os gatos foram embora. Ou desapareceram? Não sabe ao certo. Levantou-se e percorreu a casa, na tentativa de encontrá-los.

Incrivelmente, as portas e janelas estavam trancadas. E nem sinal dos bichos. Estranho! Teriam aqueles gatos o seguido até sua casa? Estariam no bar à sua espera? E também na boate? Impossível! O que pretendiam?

O frio passou. Se foi, juntamente com os gatos desgraçados.

Não soube o que pensar.

Acreditava em Deus, mas não era do tipo fanático. Frequentava a igreja católica uma vez por mês, quando tinha saco. No entanto, não acreditava em feitiços e bruxarias. De jeito nenhum, ó xente. Devia ter uma explicação lógica para a presença dos gatos no terreno e em sua casa. Iria investigar.

Provavelmente alguém poderia ter deixado os gatos ali, para azucriná-lo. Era uma ideia. Mas... e o frio?

- Merda! - vociferou, com raiva.

Parou de pensar nisso (ou tentou não pensar) e foi preparar o desjejum.



IV

Dois dias depois, os gatos aparecerem.

Mais uma vez abriu os olhos e lá estavam eles, parados na porta aberta.

Imóveis.

Apoiados nas patas traseiras. As manchas brancas. Assustadoras. De manhã cedo. No quarto. Dessa vez estava sóbrio e quando pegou a arma, deixada sobre o criado-mudo, os animais sumiram. Os procurou pela casa e... nada.

Portas e janelas trancadas. Não entendia como eles poderiam entrar na casa.

E tinha certeza de que trancara a porta do quarto - à chave! - antes de deitar.

Notou que suas mãos tremiam.

Enquanto tomava café, refletia.

O negócio se tornava mais esdrúxulo do que pensava. Gatos que abriam porta, que entravam numa casa completamente trancada e que desapareciam subitamente não estava previsto no percurso de sua vida. Isso é coisa de filme de terror, meu Deus! Stephen King. Edgar Allan Poe. Hollywood. E não numa cidade pacata do sertão nordestino.

Rebuscando sua mente, à procura de um motivo, lembrou-se de três incidentes com gatos, que protagonizou no passado. Quer dizer, provavelmente tais incidentes nada tinham a ver com o que estava acontecendo agora, mas lhe vieram à mente mesmo assim. Talvez fosse coincidência. Ou talvez não? Os gatos povoavam sua mente, na verdade. Todos os gatos do mundo! Merda! Como odiava esses bichos! Sempre odiou.

Lembrou-se que, quando tinha dez anos, jogou pedra num gato, num terreno abandonado, localizado ao lado de uma casa verde. O gato estava ali, de bobeira, sujo e feioso, olhando para ele de modo sarcástico. Era uma criança tranquila, mas, com nunca gostou de gatos, sentiu raiva daquele. De onde veio a raiva, não sabia. Talvez pela forma como o bicho o encarou. O certo é que, num ímpeto selvagem, pegou uma pedra com aproximadamente 10 cm de diâmetro e... jogou. A pedra atingiu o animal em cheio e notou que ele urrou, deu um pulo e fugiu, cambaleante, provavelmente sentindo muita dor.

Não sabe se o bicho morreu por causa da pedrada. Porém, gostou do que fez.

Gostou mesmo. Aquele urro foi delicioso, um bálsamo para seus ouvidos.

Acredita, até hoje, que foi a partir daquela pedrada que percebeu que seria um matador de gente. Um assassino profissional. Um ladrão de almas. O deus-morte do nordeste. Sorriu.

O outro incidente deu-se dez anos depois, quando tinha vinte anos.

Menino novo e inexperiente. Estava com o Mateus, seu amigo de infância.

Voltavam de uma festa, bêbados, e haviam enchido a cara de batida de maracujá. Ambos usavam armas, revólveres calibre 22, que colocavam no cós da calça. Coisa de interior nordestino, claro. Voltavam a pé e passava das cinco horas da madrugada. Andavam, cambaleantes, na maior zoeira, rindo e soltando piadas.

De repente, avistaram um gato preto (quer dizer, não tinha certeza de que era preto - poderia ser marrom ou cinza ou... sei lá), que rebuscava uma lata de lixo tombada. O gato, entretido na tarefa de procurar comida, não os viu. O local? O mesmo terreno abandonado, ao lado da mesma casa verde. Na época não havia percebido a coincidência.

Sem saber como, numa veneta doida, sacou o 22 e apontou para o gato. Afinal, sempre os detestou. Desde menino que considerava os gatos seres preguiçosos e nojentos. Cresceu bem longe deles, pois não os suportava.

Mateus, mesmo bêbado, resolveu intervir:

- Não faça isso, cara. Deixa o bicho em paz. É apenas um gato.

Continuou apontando a arma para o gato, tentando firmar a mão.

- Só irei assustá-lo. - disse, mas sabia que pretendia matá-lo. Queria realmente matar aquele gato e ninguém poderia impedi-lo. Só não sabia porque queria matar o gato. Até hoje não soube explicar, a si mesmo, porque atirou.

Mas o certo é que puxou o gatilho e o revólver explodiu. Seria apenas um gato asqueroso a menos na cidade. Simples. A uma distância de cinco metros, como excelente atirador que era, mesmo bêbado, dificilmente erraria.

Mas o certo é que errou o alvo. Isso mesmo. Errou o maldito gato. E por uma fração de segundo, o gato se virou para ele e ficou olhando. Um olhar...

inquietante? O gato sequer se assustou com o tiro. Incrível!

- Desgraçado! - gritou, com raiva.

E deu mais três tiros. Três tiros precisos e mortais. Ou quase. O gato pulou, ágil, e foi embora. Desapareceu atrás da casa verde. Nenhum dos tiros o pegou. Nenhum! Como foi possível?

- Você errou. - Mateus disse, sorrindo.

- Cale essa boca! - gritou, raivoso - Já disse que só queria assustá-lo.

Mateus nada disse, mas sabia que o amigo queria matar o gato.

Repentinamente, uma velha abriu uma das janelas da casa verde e ficou olhando para eles. Foi a única que ouviu os tiros; ou foi a única que teve a coragem de querer ver o que estava acontecendo.

- O que foi? - gritou para a velha, num rompante de ira. Até arrependeu-se de ter gritado, mas já era tarde demais.

A velha, fria e calculista (morena, rosto enrugado e antipático), ficou em silêncio e apenas o olhou. Um olhar... inquietante? Ou havia ódio neles?

Parecia uma bruxa medieval. Que velha assustadora, sô! Nunca a tinha visto antes. Depois soube que a velha vivia sozinha e que tinha por companhia...

gatos. Isso mesmo. Ela criava pelo menos uns dez gatos, um mais feio que o outro. Meu Deus! Parecia uma louca. Era viúva e vivia da pensão que o marido deixara. Também lia as mãos das pessoas, fazendo previsões do futuro e outras mandingas de cartomantes. Além de fazer partos caseiros e benzeduras.

Um negócio sinistro.

Arrepiou-se e nem quis mais olhar a velha. Tinha tentado matar um dos seus gatos e notou que ela não gostou nem um pouco. De repente, sua raiva passou e o que sentiu foi sono e um cansaço mórbido. Voltou a andar, Mateus do seu lado, para o quarteirão onde residia.

O gato não tinha nenhuma mancha branca num dos olhos, tinha certeza disso.

Mateus morreu no ano passado, com câncer no pulmão. Fumava muito, o sujeito.

O terceiro incidente se deu quando tinha trinta anos. Mais uma vez dez anos depois. Este se deu na estrada. Dirigindo seu opala na periferia de uma cidade vizinha, à noite, atropelou e matou, sem querer, um gato. Foi sem querer mesmo, pois não o viu atravessar a rua, na frente do carro. Sentiu apenas o forte impacto nas rodas do veículo. Esmagara o bicho e, dando uma olhada para trás, viu vísceras, órgãos triturados e sangue, muito sangue.

Lembrou que, na época, não sentiu medo e chegou a sorrir, mesmo sem saber porquê. Sorrindo, seguiu destino e deixou o cadáver do gato para trás.

Voltando ao presente, novamente se perguntou se tais incidentes teriam algo a ver com os gatos que o seguiam.

Acreditava que não. Quer dizer, esperava que não tivesse.

A velha... a casa verde... os gatos...

Três incidentes com gatos, com dez anos de diferença de um para o outro... E agora estava com quarenta anos... quarenta anos...

Estremeceu!

Afastou os pensamentos e terminou de tomar o café. Suas mãos tremiam.



V

Os gatos o atacaram!

E como aconteceu?

No dia seguinte, sábado, levantou cedo. Limpou a casa. Deixou as roupas sujas na lavanderia. Reabasteceu o opala. Almoçou num dos

restaurantes do bairro. Ouviu música. Viu TV. Cochilou.

À noite, resolveu dar uma passada na boate do bairro.

Noite quente. Boate lotada, fumacenta e barulhenta. Forró arretado de porreta na área, coisa que adorava. Bebeu todas, conversou com os amigos, dançou e levou uma das mulheres para um dos quartos localizados nos fundos da boate.

Entre beijos e carícias, fez aquele amor gostoso. Ela era meio gordinha, muié balzaquiana, porém muito carinhosa. Depois que o negócio foi feito, a deixou na boate mesmo. Claro que efetuou o pagamento da "gatinha", né?

Cinco horas da madrugada e entrou do opala cinza.

Não quis manobrar o carro para o interior da garagem (dava muito trabalho para abrir o portão) e, como estava numa cidade pacata, resolvei deixá-lo estacionado na calçada mesmo.

Saiu do carro, trancou a porta, passou pelo portão pequeno, atravessou o gramado e aproximava-se, meio cambaleante (pois bebeu pouco, dessa vez) da porta da frente quando...

Um ataque!!!

Duas formas estranhas pularam em cima dele. Vindos do telhado. Os gatos! Os gatos miseráveis! Guinchavam estranhamente. Ruídos animalescos!

Urros do inferno!

Surpreso e assustado, tentou livrar-se. Os gatos arranharam seu rosto! Com força. Eram mais fortes do que pensava. Um deles meteu as garras em seu olho direito. Sentiu o sangue escorrer!

Sentiu dor! Lutou com os bichos. Caiu de costas no gramado da casa.

Subitamente, os gatos pularam fora.

Por alguns segundos, permaneceu deitado no gramado, o olho direito fechado.

Desnorteado. Rosto ensanguentado. E, diante dele, os gatos! Parados.

Sentados sobre as pernas traseiras. Olhou para os gatos e se perguntou porque eles interromperam o ataque. Poderiam tê-lo matado, se quisessem. Reconhecia que não tinha condições de escapar com vida do ataque. Mas os gatos apenas o olhavam, como se quisessem transmitir alguma mensagem. Que mensagem seria? Pareciam dizer "nós podemos matá-lo a qualquer momento".

Estava tonto, vulnerável, e, naquele momento, não teria condições de revidar, mesmo estando armado. A arma! No cós da calça. Lembrou-se dela agora. Como pôde ter esquecido da arma?

Quando tentou pegar a arma, os gatos se movimentaram e foram embora. Pularam, ágeis, o muro da frente da casa e sumiram de vista. Sabiam da arma, claro. Como?!?

Levantou-se, ensanguentado, e foi parar no hospital.

Deitado na cama do hospital, pela primeira vez sentiu medo.

Alguma coisa estava errada.



VI

Nos cinco dias que se seguiram, após ter recebido alta do hospital, o rosto inchado e com dois esparadrapos, sua vida tornou-se um inferno.

Passou a não dormir direito e os tremores na mão se sucederam. Começou a tomar comprimidos e seu apetite diminuiu. Em consequência, emagreceu uns cinco quilos. Já era magro, agora então...

À noite, trancava toda a casa e deitava com a arma na mão. Estava decidido a atirar nos malditos gatos, caso eles aparecessem. Ouvia ruídos e despertava, assustado. Suava. O rosto doía. Teve pesadelos com gatos. Não queria ter tais pesadelos. Mas tinha. Merda! Via gatos em todos os lugares. Gatos horríveis, com horripilantes manchas brancas nos olhos. Sentiu medo. Estava preparado para morrer baleado ou por alguma doença sinistra, mas não assim, vitimado por gatos assassinos e maquiavélicos. Não queria morrer sob as garras de gatos, os animais que mais detestava na Terra.

Passou os cinco dias recluso, quase sem sair de casa. Seu rosto estava feio demais para exibi-lo. Pensou nos gatos. Sabia que aqueles não eram gatos normais. Pareciam ter sido treinados por alguém para esse tipo de coisa. Perseguição e ataque. Ou seja, algum inimigo, provavelmente alguém que sabia de sua vida de assassino (talvez o parente de uma de suas vitimas, quem sabe?), utilizava esse método ímpar de vingança. Ou seja, os gatos matavam e o cara (seja quem for) não aparecia na história. Com certeza tinha cópias das chaves de sua casa. Sabia que temia e detestava os gatos. Sabia dos seus hábitos. Quem seria essa pessoa? E como localizá-la? Recusou-se a acreditar que os gatos seriam mal-assombrados ou enfeitiçados. Isso era impossível! Eram gatos de carne e osso, mortais e vulneráveis. Breve iria matá-los, não tinha dúvidas com relação a isso. Era uma questão de tempo.

Não tinha pais vivos. No entanto, possuía um irmão, que morava numa cidade vizinha e que, por coincidência, veio visitá-lo rapidamente, mesmo sem saber de nada.

Tranquilizou o irmão, que se assustou quando viu seu rosto inchado. Inventou uma história, de que teria brigado com uma mulher e isso pareceu convencer o irmão, que foi embora. Menos mau, pensou.

Três amigos e uma amiga também o visitaram. Para eles contou sobre os gatos. Quer dizer, contou apenas que foi atacado e não que os gatos o seguiam há dias. Essa parte não interessava pra ninguém. Afinal, não queria que o chamassem de louco ou mentiroso.

Optou por resolver esse problema sozinho, sem ajuda de ninguém.

No sexto dia, o rosto melhorou (ficando apenas algumas pequenas cicatrizes) e ele voltou a sair de casa. Também voltou a dormir relativamente bem.

Os dias passaram e os gatos não apareceram mais.

Era o mês de dezembro, o mês do Natal.

Quatro dias antes do Natal, recebeu o telefonema do filho.

E foi aí que descobriu as verdadeiras intenções dos gatos. Ou do seu inimigo.

E apavorou-se com isso!

Meu Deus!, pensou, em pânico. Não é possível que o dono dos gatos pudesse... que ele...



VII

Foi a conversa mais dolorosa e difícil que teve com o filho. Doeu no fundo do seu coração. Criou uma história patética, de que teria que viajar no Natal, para resolver um problema particular. Não, filho. Não poderia ser adiada. Sim. Você poderia vir em janeiro, mas depois do ano-novo. Sinto muito, filho. Estremeceu ao perceber a tristeza na voz do garoto. Sabia que ele queria vir no Natal, que pretendia passar pelo menos três dias ali, naquela casa enorme, curtindo uma liberdade que a mãe não permitia.

No entanto, sabia que, se seu filho viesse, seria morto.

Assassinado pelos gatos!

Arrepiou-se, ao pensar.

Foi por esse motivo que os gatos não o mataram, quando do ataque naquela madrugada. O dono deles, seu inimigo mortal, conhecia sua vida em todos os detalhes. Sabia que seu filho costumava visitá-lo no Natal. E preparou tudo para o Natal.

Queria matar os dois. Pai e filho. Num ataque satânico e sangrento. Seria a vingança perfeita. Filho da puta! Se um dia descobrisse quem era... Iria dizimá-lo em mil pedaços, por tudo o que o fez passar.

Por isso, preferiu ter um filho chateado e decepcionado do que um filho morto. Esperava viver o suficiente para poder explicar tudo ao filho, no futuro.

Bem, só lhe restava, agora, preparar-se para o confronto.

Sabia que os gatos viriam no Natal. Tinha plena convicção disso. Os gatos viriam, mas teriam uma surpresa. Ele iria se preparar.

Começou os preparativos para a batalha.

Comprou, na capital (procurou ficar bem longe da casa onde o filho morava), o seguinte material: uma espingarda de calibre grosso; tarrafa de pesca; uma pistola; um maçarico médio; muita munição; e corda. Talvez nem precisasse de nada daquilo.

Colocou tudo no quarto.

E esperou. Depois que matasse os gatos, iria investigar, na capital, para descobrir quem seriam os donos dos mesmos. Iria pegar também esse desgraçado!

Teve mais pesadelos com gatos. Terríveis! Nauseabundos! Chegou a tremer de medo!

E eis que chega o dia 24 de dezembro, véspera de Natal.

Dia fatídico! Sentiu frio e uma sensação... mortífera, no peito. Depressão. Tristeza. O dia estava nublado, anunciando que viria chuva por aí. Dia triste. Dia de morte. Teve a sensação de que os gatos já estavam por perto... esperando... o momento certo...

Levantou-se, tenso, fez suas necessidades fisiológicas, tomou banho e preparou o desjejum. A pistola no cós da bermuda, claro. Atento. Temeroso. Terminava de tomar o café quando ouviu o barulho da campainha. Assustou-se. Quem seria? Um de seus amigos, talvez. Respirou fundo e, em passos lentos, foi até a sala.

Quando abriu a porta, levou um susto!

Meu Deus!,pensou. Não pode ser!

Seu filho!

Estava ali, diante dele.



VIII

As explicações foram dadas e agora o filho se encontrava sentado no sofá, olhando para ele. O garoto simplesmente havia telefonado para seu irmão, é mole? Ligou para perguntar se tudo estava bem com o pai. Quer dizer, o garoto não acreditou nesse negócio de viagem misteriosa, em pleno Natal. Deduziu que algo estava errado.

Ligou para o tio e soube da doença. E resolveu vir, para dar uma força.

Menino bão da moléstia, sô, refletiu, orgulhoso. Possuía a inteligência do pai. Infelizmente, naquele caso. E agora? O mal estava feito. Tentou dissuadir o filho a voltar, mas não conseguiu convencê-lo. Teve que corroborar a mentira que dissera ao irmão, sobre a briga com uma mulher. Acrescentou que não queria deixá-lo preocupado e outras abobrinhas fúteis. Para amenizar tudo, o garoto disse que só iria passar dois dias ali. Os dias 24 e 25 de dezembro. Iria embora no dia 26. Tudo bem.

Respirou fundo e resignou-se. Bem, o negócio era torcer para que os gatos não aparecerem.

E, enquanto o garoto tomava banho, escondeu todas as armas e o material dentro do guarda-roupa, no quarto.

Não iria falar nada sobre os gatos e esperava que os animais não aparecessem.

De certa forma, estava feliz pela vinda do filho, pois detestava passar o Natal sozinho. Os dois saíram e fizeram compras. Arroz, chester, macarrão, frutas, legumes e outros ingredientes para uma apetitosa ceia de Natal.

Por volta das dez horas da noite, os dois jantaram o chester assado, com arroz, macarrão, frutas, salada, vinho e refrigerante. Colocaram o papo em dia. O garoto entrou numa academia de natação e estava se saindo muito bem. Ganhara o torneio juvenil de xadrez da escola há duas semanas. Não sabia ainda o que pretendia ser na vida. Gostava de ler e talvez optasse pela carreira de jornalista. Não bebia, não fumava e nunca experimentou nenhum tipo de droga. Muito bom.

Meia-noite os dois foram até a principal praça da cidade, para o foguetório do Natal.

A maioria dos moradores da cidade se reunia ali. Seus amigos cumprimentaram o garoto. A multidão vibrou com o barulho dos fogos. Um grupo musical animava a praça. Forró, lambada, rock, MPB, pagode, axé e etc. Havia muito vinho e muita cerveja. Todos dançando, na maior alegria. A festa se prolongou até amanhecer o dia.

Pai e filho chegaram na casa por volta das sete horas da manhã do dia 25.

Estava feliz, pois a companhia do filho o animava.

Por alguns momentos, esqueceu os gatos.

Na verdade, esqueceu completamente os gatos.

Tomou banho e jogou-se na cama.

Dormiu direto, até que...

Acordou por volta das quatro horas da tarde, ao ouvir... os gritos.

Vários gritos!

Gritos de dor! Desesperados! Agonizantes!



IX

Levantou-se, ainda embriagado de sono.

A princípio, ficou desorientado, sem entender o que se passava. O que estava acontecendo? Que barulho seria esse? Ruídos de luta? E por que estava sentindo frio? Os gritos pareciam vir do outro quarto e cessaram, abruptamente.

De repente, lembrou-se. Seu filho estava na casa.

- Meu Deus! - murmurou.

Assustado, colocou o calção e pegou a espingarda. Saiu do quarto, bem desperto, preocupado, e atravessou o corredor em passos

largos. Entrou no quarto, apontando a espingarda para...

A cena que viu o deixou completamente chocado!

Seu filho.

Imóvel. Jogado no chão. De costas. Braços abertos. Perna esquerda sobre a cama. Olhos arregalados. Só de cueca. Sangue por todos os lados. Em cima dele... os gatos. Um preto. Outro marrom. As malditas manchas brancas nos olhos. Um deles com um pedaço de carne na boca. Outro rasgava pedaços da barriga do seu filho, como se fosse a carne mais suculenta do universo. Uma imagem horrpilante!

- Não! - gritou, em desespero - Não! Não! Não! Não! Não! Não!

Não conseguiu se mexer. Não conseguiu tirar os olhos do cadáver de seu filho. Seu ente querido. O ser humano que mais amava no mundo. Morto. Dizimado pelos gatos. Lágrimas de dor desceram de seus olhos. Sentiu ódio. Sentiu medo. Suas pernas tremeram. Naquele momento, sua vida perdia o sentido. O que tanto temia aconteceu.

Quando logrou despertar do transe, foi atacado pelos gatos.

Um ataque brutal e surpreendente.

Os gatos saltaram em cima dele e o derrubaram no piso do corredor. Tentou apontar a arma para um deles. Em pânico, puxou o gatilho. O barulho ensudercedor do tiro reverberou pela casa. O projétil atingiu uma das paredes do corredor. Notou, nos olhos dos gatos, um brilho amarelado, de uma intensa e arrepiante fosforescência. Não eram olhares inquietantes. Estes pareciam olhares de... ódio. Sim. Ódio era a palavra certa. Nunca tinha visto aquele brilho antes. Brilho horripilante. Sobrenatural! Tétrico!

Sentiu dor. Os gatos o mordiam. Arranhavam. Perfuravam. Emitiam urros estranhos, animalescos, sobrenaturais. Sentiu dor quando um dos gatos mordeu sua orelha. Além da dor, embriagou-se de nojo, ao sentir aquele fedor horrível. Fétido! Nojento! Os gatos fediam horrivelmente! Como se fossem cadáveres em decomposição. Zumbis satânicos! Os pelos pareciam estar em processo de derretimento. Alguns caíam. Os gatos eram tão fedorentos quanto mortais.

Sua visão ficou turva. Cinza. Delirou! Teve a impressão de que os gatos eram enormes. Como se fossem leões gigantes. Visões da morte! Chegou a apertar o pescoço de um deles, mas o animal se desenvencilhou com facilidade. Dentes em seu pescoço. Em seu ombro. Em seu peito. Arranhões profundos em sua carne! Dor! Muita dor! Sangue! O sangue jorrava de suas feias perfuradas! Estava ficando tonto.

Largou a espingarda. Não tinha mais forças. Tentou levantar-se e não conseguiu. Começou a arrastar-se pelo corredor, com os gatos agora em suas costas. Mordendo. Arranhando. Não suportou a dor. Tonto, arriou ali mesmo, no corredor. O sangue fazia poças insanas no chão.

- Não... não... - foi o que conseguiu murmurar, em agonia - não... não... não...

Sentiu a aproximação da morte.

O sangue saía de seu pescoço, líquido viscoso e escuro, juntamente com sua vida.

Os gatos, então, subitamente, se afastaram.

E desapareceram. Rápidos e em silêncio.

Como se nunca tivessem naquela casa entrado.

Não os viu mais em nenhum lugar.

Levantou a cabeça, tentando ver seu inimigo. O dono dos gatos. Ele poderia parecer a qualquer momento, para saborear sua vingança. Cadê esse filho da puta? Onde estava? Por que não aparecia agora?

Mas... não havia mais ninguém na casa. Apenas aquele fedor de carne podre permanecia, enojando-o.

Estava sozinho... ensanguentado... e morrendo...

Estranho...

Não conseguia respirar!

Imerso em dor, medo, sangue, desespero...

De repente, pensou na velha. Involuntariamente, a imagem da velha bruxa lhe veio à mente. A bruxa da casa verde! A velha e seus gatos. Mulher feia, solitária, de olhar frio. Rosto enrugado e antipático. Mulher odiosa, que o olhara fixamente, cheia de ódio e... e... Por que pensara nela? O que ela tinha ver com tudo isso?

E chegou a uma terrível conclusão. A resposta lhe veio à mente de modo chocante, fazendo-o arrepiar-se todo. Lágrimas de medo desceram de seus olhos. Estremeceu. O tremor o dominou, em meio à mais horrível de todas as dores. As dores na alma! E ele percebeu que...

Não havia nenhum inimigo! Incrível! Não havia nenhum dono dos gatos! Não havia o sujeito que sabia de seus hábitos, que o seguia, que possuía as chaves de sua casa e que treinara tais gatos para atacá-lo. Essa pessoa simplesmente não existia. Não existia!

Então... de onde vieram os gatos? Por quê o perseguiam?

Por que ele? Por quê, meu Deus!, pensou, apavorado.

Morreu sem obter a resposta.



X

Os corpos foram encontrados no mesmo dia, uma hora depois.

A vizinha ouviu o tiro e, juntamente com o esposo, foi ver o que se passava. Os dois viram os corpos e sentiram o fedor. O terrível fedor de carne podre! A mulher desmaiou.

Um choque para a pequena e pacata cidade do interior nordestino.

A hipótese de que o pai teria assassinado o filho e se suicidado em seguida (e vice-versa) foi descartada. Alguns pêlos de gatos foram

encontrados na casa, mas os investigadores o ignoraram.

O irmão do morto contou à polícia sobre o ataque da mulher.

Os amigos do assassino morto optaram por não revelar, à polícia, o fato dele ter sido atacado por gatos. Na verdade, preferiram acreditar na história do irmão, de que ele teria sido atacado por uma mulher.

Perguntas foram lançadas ao vento: quem matou os dois? Um animal selvagem? Um ladrão homicida? Um psicopata? A mulher misteriosa, citada pelo irmão? Onde estaria ela?

A polícia, após meses de investigações, e sem conseguir encontrar a tal mulher, arquivou o caso. Jamais se descobriu quem foram os autores daquele crime terrível.



XI

No dia seguinte, muita gente da cidade compareceu ao duplo enterro. Amigos. Curiosos. A ex-esposa estava lá, em prantos. O irmão do assassino falecido (bem como outros familiares) também. O cemitério estava lotado.

Ninguém notou os dois gatos, um preto e um marrom, ambos com manchas brancas nos respectivos olhos esquerdos, sentados sobre as patas traseiras, perto de uma árvore e que observavam tudo, a uns vinte metros de distância.

Nos olhos, um brilho... satânico.

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