Ricardo sentiu as transformações ocorrerem em seu corpo.
Escondeu-se atrás de uma árvore, naquele matagal denso, e ajoelhou-se
no chão sujo. Chegou a rezar, para impedir que as coisas acontecessem.
Em vão, pois sabia que o processo era irreversível. Sentia dores
e gemia, enquanto a metamorfose se processava.
Aos poucos, a pele se estendeu, adquirindo uma tonalidade escura. Os pêlos
brotaram, grossos e negros, e espalharam-se por todo o corpo, dos pés
à cabeça. Tudo foi se modificando. O nariz cresceu, tornando-se
afilado e grotesco, a boca se alargou, os dentes cresceram, afiados e sinistros.
Nos olhos, as pupilas se dilataram e a íris tornou-se vermelha. As sobrancelhas
desproporcionais se uniram. A testa se enrugou, os ossos da face se estreitaram,
os cabelos se multiplicaram. Seu rosto adquiriu, então, uma compleição
canina e sobrenatural. As mãos, antes pequenas e normais, tornaram-se
imensas e disformes, os dentes longos e as unhas afiadas se destacando. Garras
cruéis! Pés largos! Olhar insano!
Seu corpo, de modo geral, cresceu assustadoramente. Tinha, nesse momento, dois
metros de altura, largo, peludo e musculoso. Sua roupa se rompeu, ante a mudança
de tamanho. Restava-lhe a calça rasgada, agora um short minúsculo,
que mal lhe cobria os órgãos genitais. Quem ali adentrasse, naquele
instante, iria ver uma mistura de homem com lobo, horripilante e asquerosa.
Aos poucos, a sanidade esvaiu-se de seus neurônios, dando lugar aos pensamentos
maléficos e... à fome. Levantou-se, urrando alto. A fome o dominava,
dolorosa, e era como um maçarico ignóbil, queimando-lhe as entranhas.
Ricardo, o entregador de jornais, que andava de bicicleta pelas ruas daquela
cidadezinha do interior, não existia mais. O ser animalesco que tomou
o lugar dele começou a andar, o corpo curvado, na direção
das casas daquele bairro pobre. A noite era quente, mas um vento frio começava
a soprar do norte. No céu, a lua cheia, límpida e resplandecente,
dava seu show, iluminando o ambiente. A lua mortal, que hipnotizava e dominava,
com sua força invisível.
O animal (ou entidade) aumentou as passadas, movido pela fome, e saiu do matagal.
Apoiava as mãos no chão e seus passos eram desconexos. Percorreu
a rua de terra batida. As casas, rústicas e humildes, eram feitas de
barro amassado, estreitas e de um pavimento, com os telhados compostos de palha
seca. Não havia a presença de qualquer ser humano nas imediações.
Algo previsível. Afinal, a notícia de que um ser misterioso matara
seis pessoas na região se espalhara depressa, naquela localidade do nordeste,
apavorando os moradores.
Dois cachorros, ao vê-los, ganiram de terror e recuaram. Urrou baixo,
para não chamar a atenção, lançando sobre eles seu
olhar de ódio. Entre espasmos violentos, os animais correram, desesperados,
procurando fugir de sua presença satânica. Logo desapareceram atrás
de um das casas. Não queria comer cachorros, pois seu corpo ansiava por
outro tipo de carne. A fome lhe era insuportável.
Percorreu os duzentos metros da rua deserta e dobrou à direita. Fuçava
o ar, seu nariz poderoso com capacidade para perceber e inalar os odores mais
distantes.
De repente, notou a presença daquilo que mais desejava. Havia um ser
humano por perto! Um ser humano ao ar livre, que ousou sair de uma das casas.
Ótimo! Seu corpo estremeceu, a fome penetrando seu íntimo com
um esgar feroz. A ansiedade lhe era insuportável, ante aquele cheiro
tão peculiar e conhecido. Parou no meio da rua e procurou localizar sua
provável vítima.
Logo o avistou. O vulto saiu de um beco, deslocando-se lentamente, parando no
meio da rua, a cerca de duzentos metros local de onde se encontrava. Parou e
ficou de frente para ele, como se o esperasse. Sentiu a saliva escorrer de sua
boca, ante aquele odor delicioso. Antevia o prazer de saborear a carne mais
saborosa do universo! O gosto do sangue! A delícia que seria dilacerar
cada naco daqueles músculos, daquele... corpo. Maravilhoso! Sua fome
estava prestes a ser saciada! Sim. Bastava correr (numa perseguição
alucinante) para cima do vulto e atacá-lo. Seus dentes cortantes e suas
garras afiadas fariam o resto. Não haveria falhas.
Seria sua sétima vítima.
No entanto...
***
Algo estava errado!
***
Percebeu que... não havia medo naquele ser! Seus instintos animalescos
diziam que não havia medo! Inacreditável! Bizarro! Não
conseguia captar o inebriante e vivificante cheiro do medo exalando daquele
vulto. O medo, comum a todos os seres humanos.
O que estava acontecendo? Por que ele não fugia, não procurava
correr, como fizeram os cachorros e as outras vítimas? Por que permanecia
parado no meio rua, numa atitude arrogante e desafiadora? Seria um suicida?
Ou um louco? Um psicopata, imerso nas suas alucinações, de tal
forma que não possuía aquele sentimento tão intrínseco
e dominante? Um homem sem medo? Isso era possível?
Mas isso não tinha importância. Ele iria morrer e teria seu corpo
estraçalhado e seus gritos seriam ouvidos a quilômetros. Sua morte
seria tão terrível quanto à dos demais. Pagaria caro sua
prepotência e imprudência. Ninguém poderia salvar aquele
louco!
Movido pela fome e pelo ódio, movimentou o corpo e disparou, na direção
do vulto, enquanto soltava seu urro animalesco. Foi uma corrida desenfreada,
já sabendo que o vulto correria para se esconder. Ele tentaria, mas não
conseguiria escapar.
Porém, algo estranho aconteceu!
Sentiu, naquele momento, o cheiro da morte!
***
Sentiu...
... quando viu o cano escuro apontando na sua direção. Numa fração
de segundo, compreendeu tudo. Tentou parar de correr, para desviar-se da força
do que vinha pela frente. Não deu tempo. Ele, o algoz, o animal sanguinário
e assassino, foi vítima de sua autoconfiança e... da fome. O barulho
da explosão retiniu, nítido e brutal, em seus ouvidos sensíveis.
Outras explosões se fizeram ouvir. Urrou de dor, ao sentir os projéteis
penetrando seu corpo. Teriam sido quatro? Cinco? Seis? Penetraram sua carne,
rasgando veias e artérias.
Caiu no chão, a dois metros do vulto. Não chegou a vê-lo,
uma vez que seu próprio corpo entrou em agonia. O sangue brotava dos
ferimentos. Não conseguia respirar. A dor! A maldita dor era atroz! Espalhou-se
por cada poro, cada músculo, dominando-o e enlouquecendo-o. Não
tinha forças! Não tinha forças sequer para rastejar. Enquanto
morria, sentiu que Ricardo, o entregador de jornais, retornava do limbo, na
transformação de todas as noites de lua cheia. Urrou de dor e
esse foi seu último gesto.
Ricardo voltou, mas estava morto, juntamente com seu hospedeiro.
***
A lua brilhava, linda e resplandecente, naquela madrugada friorenta.
O homem deu uma olhada para cima (como que agradecendo), baixou o cano da arma
e jogou fora o pedaço de fumo que mascava. Em seguida, retirou, do bolso
da calça, um telefone celular e, sem olhar para o corpo estendido no
chão sujo, começou a apertar - lentamente e com frieza - vários
números.