A Garganta da Serpente
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Setembro despedaçado

(José Rubens Jr.)

Goiânia não é daquelas capitais brasileiras que costumam receber generosas levas de migrantes nordestinos. Tangidos pela seca e pela fome, normalmente seus destinos passam ao largo desta Capital. Vez por outra, seu clima ameno em grande parte do ano, suas belas praças, o espírito acolhedor de sua população e a relativa facilidade de se arrumar um emprego sem ter muita qualificação rompem essa tendência.

2h da tarde, 39 graus. Suzyykellyy (assim mesmo, com quatro ipsilons) caminha pela estreita calçada, aproveitando as diáfanas sombras das árvores ressequidas pela longa estiagem. Faces, braços, seios, nádegas e coxas estão úmidos. Tudo parece se liquefazer ante o abrasador calor de setembro. Sua pele, negra, brilha ao contato com o suor. Os cabelos - alisados por imposição da patroa - resistem, rijos, ao vento quente que sopra.

Cabisbaixa, só tem pensamentos para as extensas e judiciosas tarefas a que foi incumbida. Vai balbuciando-as, como o desfiar de um longo rosário - "primeiro, o pagamento da energia elétrica; segundo, pegar talão de cheque; terceiro, pegar o sapato da patroa...".

Enquanto aguardava na fila do banco, deixou-se levar pela lembrança de recentes acontecimentos: havia fugido, pois o pai, severo, não aceitava que trabalhasse fora de casa; a irmã mais velha não quis acompanhá-la na aventura, já que estava grávida do namorado, preferindo enfrentar a fúria do pai e o escárnio do pequeno povoado; a mãe, sempre calada, sofria silenciosa com amarga resignação o destino traçado pelas circunstâncias, não demonstrava ódio, nem tampouco se iludia com a ida da filha caçula para tão longe.

Desde que chegara, alimentava o sonho de estudar, ter um bom emprego, uma casa, casar-se... Enfim, movia-lhe a esperança de dias melhores. O atual emprego, numa refinada loja de artigos de decoração, fora arranjado quando ia de porta em porta oferecendo sua tenaz disposição para qualquer serviço. Já havia perdido as esperanças, quando foi contratada pela patroa. Camille era seu nome.

Arquiteta de formação, descendia de uma rica e influente família goiana, o que lhe garantia uma seleta e abastada clientela, sempre inclinada a acolher suas criteriosas sugestões de decoração. Magra, alta, pele clara, de caminhar lento e de gestos suaves, possuía um carisma contagiante mesmo diante de situações embaraçosas com os clientes.

Entretanto, todo esse modo gentil, suave - meigo até - desaparecia quando se tratava de repreender qualquer deslize dos funcionários. Ali se descortinava uma personalidade irascível, capaz de humilhar, espicaçar reputações, ignorar sentimentos puros, velhas amizades, etc. Nada escapava à sua fúria. Com a face rubra, juntava os braços, erguia-os até o pescoço e urrava palavrões, entrecortados por grunhidos iguais a um cão feroz; os empregados coravam. Suzyykellyy já havia provado do veneno, ao esquecer de apagar as luzes do enorme e sombrio lustre quando cerravam as portas ao final do expediente. Baixou a cabeça e suportou calada aquele acesso incontrolável de fúria.

Dona de um reconhecido bom gosto em decoração, mantinha preso ao teto da pequena (porém aconchegante) loja, um enorme lustre, com pesadas lâminas de metal em forma de círculos concêntricos. Entre esses círculos havia dezenas de pequenas lâmpadas, o que lhe conferia um ar imponente, austero e sombrio. Desde o primeiro dia Suzyykellyy não lhe tirava os olhos. Havia algo naquela enorme e pesada peça que a atraía, infundindo-lhe ao mesmo tempo temor e apreensão.

6h da tarde, 38 graus. O regresso à loja se dá em meio a grande tensão - a patroa está possessa por não a terem escolhido a Personalidade do Ano no segmento decoração - uma publicação anual, com matérias pagas sobre assuntos fúteis, fotos de socialites e uma infinidade de propaganda de clínicas de cirurgia plástica. Suas têmporas estavam infladas; um fino suor lhe corria pelas rubras faces; os cantos dos lábios tremiam. Mesmo assim, consegue manter a fleuma e a cordialidade diante de algumas freguesas que lhe consolam pela "falta de bom gosto da revista".

7h da noite, 38 graus. Chama Suzyykellyy até à sua mesa para que lhe preste conta das tarefas a que foi incumbida. Sem esconder o nervosismo, suas mãos trêmulas oferecem à patroa as contas pagas, os talões de cheques e...os sapatos!
- Meu Deus, vieram trocados! - tentou justificar a incauta funcionária.

De súbito, irrompe pela loja uma saraivada de gritos e xingamentos:

- Desgraçada...! Esse par de sapatos não é meu...sua vadia! Não vê que não são meus! Hein! Olha! Olha! Negra desgraçada!!! - gritava e tentava esfregar o sapato no rosto da pobre coitada, cada vez mais acuada contra os móveis.

Dominada por uma cólera incontrolável, tenta atirar o sapato naquele resto de gente que se achava agachada num canto, mas erra no cálculo, solta antes da hora e acerta, no teto, a frágil sustentação do pesado lustre, que desce irresoluto, com violenta dignidade. Suas negras e pesadas folhas de metal encontram então o horror na face da patroa, abrindo-lhe o crânio em três partes.

8h da noite, 35 graus. O calor é intenso, a atmosfera está carregada. Agachada, no canto escuro da cela, Suzyykellyy enfrenta olhares curiosos, dentre eles os de algumas clientes tomadas de grande indignação.

Apenas saudades do pequeno povoado dominam seus pensamentos.

  • Publicado em: 01/05/2006
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