A Garganta da Serpente
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Rapariga em Flor

(João Paulo Parisio)

Chamo-me Kedélia. Já me disseram que parece nome de flor não nome de guerra. Já me disseram que que eu era cadela sabiam, queriam saber meu nome. Que perfume teria? É nome de batismo. Eu sou rapariga confessa, à luz do dia. Conheço a lama da alma dos homens, eles a despejam em nós e se sentem limpos pela manhã. Assim não precisam importunar suas patrícias. Ninguém reconhece a função social das prostitutas, o papel das putas. Somos importantes como os guerreiros e os agricultores, as esposas e os patriarcas. Somos as felás da felação, soldados da sodomia. É claro que estamos preocupadas com o avanço das burguesas sobre nossos empregos. Elas não se interessam mais pela nossa maior aliada, a Bíblia, nem temem mais pelos castigos do Bom Pastor. Manada sonâmbula. Mas a nossa classe sempre sobrevive, somos como os ratos e as baratas: na adversidade nos encontramos, estamos em casa. Somos gratas às moças de família, embora não seja recíproco. Não deve ser. Somos parte da mesma dieta, mas não comemos umas às outras. Nutrem por nós um ódio platônico e uma admiração secreta. Bem-aventuradas as freiras que nos execram cheias de inveja e as carolas que despertam tão cedo a curiosidade sobre nós na cabeça de meninos verdes. Certo é que sem nós nenhuma sociedade sobreviveria, é através de nós que ela elimina suas impurezas. Somos sua válvula de escape, a abertura do esfíncter. Se a sociedade é um organismo, somos as células do trato digestivo. Tenho pra mim que foi por causa de uma greve das prostitutas que Sodoma deu no que deu. Experimente um prefeito expulsar as prostitutas de seus domínios e assista à escalada da criminalidade, especialmente entre quatro paredes, à proliferação de incestos e estupros, assassinatos e suicídios. O apocalipse. Mas os prefeitos são sábios, sabem que podem sumir mendigos e apagar batedores de carteira e ladrões de galinha, mas de alto a baixo o meretrício deve ficar intocado, virgem. Quem sofre de prisão de ventre sabe como se sente intoxicado, como faz falta a flora intestinal. Somos imprescindíveis, a pirâmide depende de nós em todos os seus níveis. Lidamos com a merda do mundo, mas não nos confundimos. Somos os escaravelhos, somos flores saprófitas. Sintetizamos a escuridão. Kedélias crescem no estrume e seu perfume não diz nada da matéria que redime. Por isso os egípcios nos veneravam e os japoneses, tão assépticos na vida e na morte, cultivavam camélias. Em várias acepções.

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