Um próspero homem de negócios estava sentado à cabeceira
de uma longa e negra mesa nua onde se espalhavam as travessas e as bandejas
de prata ocupadas por iguarias. Encerrava a lauta refeição pensativamente,
ruminando suas mais recentes manobras. Como dispensara os serviçais,
sobressaltou-se ao sentir uma mão tocar-lhe de leve o ombro e ali pousar.
Havia a seu lado um gentil cavalheiro impecavelmente trajado à cuja minúcia
nem um fio de cabelo escapara, que no entanto não conhecia e antes que
lhe indagasse fez um gesto com a mão enluvada apontando para o alto com
o indicador. Ao voltar-se naquela direção, o homem, que em sua
intimidade fora apanhado de tronco nu e separado de sua cartola, e logo com
a barriga flácida e a calva lívida que unia como uma ponte em
arco os dois tufos desgrenhados e ruivos que surdiam das têmporas à
mostra, percebeu que um curioso dispositivo fora instalado logo acima de sua
cabeça sem que se desse conta e fora de seu consentimento: tratava-se
de uma espada suspensa por um fio preso por sua vez à abóbada
do salão. A pouca luz baça vinda de uma janela alta imediatamente
às suas costas que adentrava o aposento mergulhado numa obscuridade repousante
refletia-se no fio e na lâmina absolutamente imóveis.
Mais uma vez antes que fizesse qualquer pergunta, o jovem cavalheiro, com o
mesmo indicador em posição de oratória, informou que, a
partir do momento em que a porta fosse aberta, e apontou para ela, no caso de
acionar um músculo sequer, inclusive os necessários para a fala,
ou mesmo para mover os olhos, o fio seria cortado, e antes que objetasse dirigiu-se
prontamente a ela. O homem teve tempo apenas de dirigir o olhar à grande
porta em forma de meia-folha que tinha diante de si antes que o cavalheiro a
abrisse de par em par, e de imediato um rosário de silhuetas penetrasse
a casa, disciplinadas e silenciosas como um cortejo, se espalhasse na sala como
uma maré, envolvesse e ameaçasse a mesa como a uma ilha com suas
ondas. Se o consequente deslocamento de ar fez o fio e a espada oscilarem
reverberando, ou mesmo se a espada agora girava alegre e dardejante em torno
de seu próprio eixo, isso é coisa que o homem não pôde
verificar. As silhuetas, a quem nem os talheres que ainda tinha em mãos
nem a mesa em que as apoiava escaparam, puseram-se a recolher os objetos, e
numa ordenação de formigas as que se retiravam eram substituídas
por novas. Carregavam-nos acima da cabeça ou nos ombros, até mesmo
nas mandíbulas, unindo forças para erguer os móveis. Mesmo
nas condições em que se encontrava, ofuscado pela luz de fora,
o homem julgou reconhecer vários rostos. Pareciam entretanto obedecer
a uma determinação rigorosa para ignorá-lo.
A cerimônia inicial cedeu lugar a um pandemônio de risos e ordens,
bravatas e escaramuças, reivindicações e gritos e queixas
e tosses. Uma matrona com um pano em volta da cabeça a quem alguém
arrancou um rico candelabro lastimou-se: Ladrão, ladrão!
Agora tinham enveredado pelos corredores e cômodos, e passavam à
sua frente carregando bustos, arcas, piano, castiçais, lustres, escrivaninhas,
escabelos, criados-mudos, dosséis, panóplias, quadros, violinos,
camas, lanternas, canapés, almofadas, tamboretes, vinhos, taças,
frascos, punhais, escadas, cordas, cortinas, cartas, bengalas, cartolas, fraques,
sobretudos, botas, panelas, tachos, linguiças, gaiolas, sapatos.
O homem pensou na espada, escura, inexorável, no fio, translúcido,
sensível. A distância que separava a ponta da lâmina do cume
de seu crânio era suficientemente curta para que não pudesse escapar
e suficientemente longa para conferir letalidade ao golpe.
Já era escuro quando a pilhagem teve fim e a casa foi esvaziada. O gentil
cavalheiro esquecera de avisar-lhe quando poderia mover-se e de que modo o dispositivo
seria desinstalado, ainda mais que pela regularidade com que a porta fora fechada
de fora, parecia ter sido ele. Mas nada era certo, e o homem permaneceu, atacado
de cãibras e reduzido à miséria, em sua cadeira de alto
espaldar e entalhada ao fundo da peça nua. O tempo passou e o silêncio
zumbia em seu ouvido, assim como não enxergava um palmo adiante. Ocorreu-lhe
que podia já não haver nada acima de sua cabeça além
do teto e do firmamento e convencendo-se de que o suplício se tornara
intolerável, optou por fazer um movimento ágil para a frente,
mas tudo o que seu corpo entrevado conseguiu foi um estremecimento a tempo de
ouvir um tic e tombar de bruços, contraempalado, o sangue a envolver-lhe
lentamente como uma mortalha que tivessem esquecido.