A Garganta da Serpente
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A Pilhagem

(João Paulo Parisio)

Um próspero homem de negócios estava sentado à cabeceira de uma longa e negra mesa nua onde se espalhavam as travessas e as bandejas de prata ocupadas por iguarias. Encerrava a lauta refeição pensativamente, ruminando suas mais recentes manobras. Como dispensara os serviçais, sobressaltou-se ao sentir uma mão tocar-lhe de leve o ombro e ali pousar. Havia a seu lado um gentil cavalheiro impecavelmente trajado à cuja minúcia nem um fio de cabelo escapara, que no entanto não conhecia e antes que lhe indagasse fez um gesto com a mão enluvada apontando para o alto com o indicador. Ao voltar-se naquela direção, o homem, que em sua intimidade fora apanhado de tronco nu e separado de sua cartola, e logo com a barriga flácida e a calva lívida que unia como uma ponte em arco os dois tufos desgrenhados e ruivos que surdiam das têmporas à mostra, percebeu que um curioso dispositivo fora instalado logo acima de sua cabeça sem que se desse conta e fora de seu consentimento: tratava-se de uma espada suspensa por um fio preso por sua vez à abóbada do salão. A pouca luz baça vinda de uma janela alta imediatamente às suas costas que adentrava o aposento mergulhado numa obscuridade repousante refletia-se no fio e na lâmina absolutamente imóveis.

Mais uma vez antes que fizesse qualquer pergunta, o jovem cavalheiro, com o mesmo indicador em posição de oratória, informou que, a partir do momento em que a porta fosse aberta, e apontou para ela, no caso de acionar um músculo sequer, inclusive os necessários para a fala, ou mesmo para mover os olhos, o fio seria cortado, e antes que objetasse dirigiu-se prontamente a ela. O homem teve tempo apenas de dirigir o olhar à grande porta em forma de meia-folha que tinha diante de si antes que o cavalheiro a abrisse de par em par, e de imediato um rosário de silhuetas penetrasse a casa, disciplinadas e silenciosas como um cortejo, se espalhasse na sala como uma maré, envolvesse e ameaçasse a mesa como a uma ilha com suas ondas. Se o consequente deslocamento de ar fez o fio e a espada oscilarem reverberando, ou mesmo se a espada agora girava alegre e dardejante em torno de seu próprio eixo, isso é coisa que o homem não pôde verificar. As silhuetas, a quem nem os talheres que ainda tinha em mãos nem a mesa em que as apoiava escaparam, puseram-se a recolher os objetos, e numa ordenação de formigas as que se retiravam eram substituídas por novas. Carregavam-nos acima da cabeça ou nos ombros, até mesmo nas mandíbulas, unindo forças para erguer os móveis. Mesmo nas condições em que se encontrava, ofuscado pela luz de fora, o homem julgou reconhecer vários rostos. Pareciam entretanto obedecer a uma determinação rigorosa para ignorá-lo.

A cerimônia inicial cedeu lugar a um pandemônio de risos e ordens, bravatas e escaramuças, reivindicações e gritos e queixas e tosses. Uma matrona com um pano em volta da cabeça a quem alguém arrancou um rico candelabro lastimou-se: Ladrão, ladrão! Agora tinham enveredado pelos corredores e cômodos, e passavam à sua frente carregando bustos, arcas, piano, castiçais, lustres, escrivaninhas, escabelos, criados-mudos, dosséis, panóplias, quadros, violinos, camas, lanternas, canapés, almofadas, tamboretes, vinhos, taças, frascos, punhais, escadas, cordas, cortinas, cartas, bengalas, cartolas, fraques, sobretudos, botas, panelas, tachos, linguiças, gaiolas, sapatos. O homem pensou na espada, escura, inexorável, no fio, translúcido, sensível. A distância que separava a ponta da lâmina do cume de seu crânio era suficientemente curta para que não pudesse escapar e suficientemente longa para conferir letalidade ao golpe.

Já era escuro quando a pilhagem teve fim e a casa foi esvaziada. O gentil cavalheiro esquecera de avisar-lhe quando poderia mover-se e de que modo o dispositivo seria desinstalado, ainda mais que pela regularidade com que a porta fora fechada de fora, parecia ter sido ele. Mas nada era certo, e o homem permaneceu, atacado de cãibras e reduzido à miséria, em sua cadeira de alto espaldar e entalhada ao fundo da peça nua. O tempo passou e o silêncio zumbia em seu ouvido, assim como não enxergava um palmo adiante. Ocorreu-lhe que podia já não haver nada acima de sua cabeça além do teto e do firmamento e convencendo-se de que o suplício se tornara intolerável, optou por fazer um movimento ágil para a frente, mas tudo o que seu corpo entrevado conseguiu foi um estremecimento a tempo de ouvir um tic e tombar de bruços, contraempalado, o sangue a envolver-lhe lentamente como uma mortalha que tivessem esquecido.

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