A Garganta da Serpente
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A Lua

(João Paulo Parisio)

A Lua é uma lâmina fina, um pêndulo oblíquo imobilizado no céu, flutuando sem algum cordão que a sustente. Imagina como seria se a Lua começasse a balançar no céu, para lá e para cá, e gerasse uma brisa que lentamente empurrasse as estrelas para as bordas do firmamento. E se a Lua, como uma lâmina mesmo, balançando para lá e para cá no Abismo, começasse a descer na direção da Terra, mais e mais próxima a cada movimento inexorável, até que devastasse cidades e searas, derrubasse palácios e montanhas, abrisse na face do planeta um talho comprido que fosse aprofundando a cada nova passagem até que através dele se pudesse ver o espaço, através do qual a Terra sangraria todo o seu ar e por onde entraria o Vazio como bolhas de ar na corrente sanguínea. A Terra ficaria murcha, morreria exangue. Certamente o cadáver da Terra se soltaria da velha rota e partiria numa viagem desgovernada, como uma folha seca que cai no rio e é levada pela correnteza. No percurso a Terra poderia cair na direção de alguma Estrela e se consumir em seu calor, ou desaparecer para sempre no mistério de um Buraco Negro, ou escapar cegamente de todos os obstáculos, todas as pedras e redemoinhos, e chegar ao fim do rio, desembocar no mar.

Tudo isso se a Lua, disfarçada por milênios como lamparina de nossas noites, inspiração dos poetas e dos amantes, anelo dos loucos e dos mares, fosse um carrasco e ao mesmo tempo seu instrumento, se a Lua Cheia fosse um olho que observa e informa o que viu aos Senhores do Universo para que eles julguem o que ouviram. E no dia em que os Senhores do Universo condenassem a Terra à morte, a Lua seria uma lâmina fatal, cimitarra impiedosa.

Pensou nisso tudo, apesar de que jamais seria capaz de traduzir em palavras seus pensamentos, nem sequer em sua própria mente, pois aqueles pensamentos haviam brotado do nada, eram imagens, símbolos, não eram palavras organizadas em constelações, gravitando nas suas órbitas. Não imaginava como sua fantasia pareceria estranha a alguém que a escutasse e, portanto, a esqueceria. Poderia esquecê-la para sempre ou talvez num dia qualquer uma visão real ou uma outra fantasia a evocasse novamente, e ele a continuaria, como um conto, ou talvez a misturasse com outras, e deturpasse, e se confundisse, e a abandonasse novamente nas obscuridades de sua memória. Mas para imaginar aquelas fantasias precisava saber muitas coisas que as pessoas nem suspeitavam que sabia. Mas ele sabia, sabia da Terra, da Lua, do Espaço, que os Buracos Negros têm o formato de um redemoinho, que o Universo era infinito e cismava com a ideia de infinito. Sabia de tudo isso, mas não podia falar.

O velho apareceu no umbral da porta. Ele se voltou, sorriu, e disse com dificuldade, a voz anasalada, os olhos arregalados e brilhantes:

- A Lua é estraaanha...

O velho sorriu sem sorrir, apenas expirou com um pouco mais de força e fez um ligeiro movimento com a cabeça para cima, nem sequer mostrando os dentes. Resmungou que entrasse, e não deu atenção às suas palavras nem à Lua, pois sabia como era simples e limitada a mente de um debilóide. Entrou, pensando nas dívidas, na carga que chegaria à mercearia na manhã seguinte, pensou utilizando-se de palavras e números, mas ao fundo piscava o velho medo da morte, de não amanhecer. Viu-o entrar, obediente como quase sempre era, aprisionado em sua mente mal desenvolvida. Havia muito o velho não lembrava da Lua, da Terra, do Infinito. Tinha pena do menino aluado.

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