"O ódio é o produto tanto das boas obras como das infames."
(Maquiavel)
Demorei um tempo para entender o que estava acontecendo. Não sentir
as pernas era um mau sinal. Com muito esforço e uma dor quase insuportável,
consegui mover os braços e limpar o sangue que cobria o meu rosto. Mesmo
podendo enxergar, ainda não via a extensão dos meus problemas.
Minha cabeça doía muito e pensar não era uma tarefa, digamos,
muito fácil. Um gosto amargo de ferrugem me embrulhava o estômago.
Bom sinal: ainda tinha estômago. E um pouco de humor. Estava no meu carro.
E o meu mundo estava de pernas o para ar, literalmente.
Havia sofrido um acidente. E estava preso nas ferragens. E pelo pouco que podia
ver, meu Golzinho velho estava tombado. Tentava buscar algum flashback
que me explicasse o que realmente tinha acontecido. Tipo aqueles de Hollywood,
em preto-e-branco. Mas nada passava nesta minha cabeça atordoada. Do
lado de fora tudo o que eu via era mato e, bem ao longe, uma estrada. Meu coração
começou então a bater mais forte. Tentei manter a calma. Pois
acho que antes de morrer, o coração bate mais forte e depois pára.
E eu não queria morrer. Tinha um bom motivo para isso, embora não
lembrasse qual. A rodovia ao longe. Mato. Foi fácil deduzir: por algum
motivo havia saído da estrada e capotado. E o carro caíra numa
vala. Destas malditas que existem ao redor das estradas. Meu coração
batia um pouco mais devagar, mas estável.
Estava com sede. Sinal de morte iminente? Não sei. Mas acho que a morte
se torna uma obsessão quando se está todo arrebentado e preso
nas ferragens de seu carro no meio do nada. Tentei mover as pernas (aquelas
que eu não sentia), mas foi em vão. Acho que todo o meu sangue
já havia descido até a cabeça, nesta hora. Minha avó
falava que isso podia matar, mas ela era meio exagerada e a situação
não era tão ruim. Era só esperar pelo resgate. No meio
do nada.
Passaram-se alguns minutos. Algumas horas. Cheguei à conclusão
de que o resgate não iria me encontrar tão facilmente. Eu estava
longe da estrada. Era noite. E principalmente porque não passava um filha-da-puta
sequer naquele fim de mundo. Bom, neste momento, o medo de morrer pelos ferimentos
passou. O medo agora era morrer de fome, de sede ou de vontade de ir ao banheiro.
Ou talvez de enlouquecer.
Foi aí que resolvi buscar outro flashback daqueles. Lembrar algo
de bom que havia acontecido antes. Puta-que-o-pariu! Estiquei o braço,
abri o porta-luvas e lá estava o bilhete premiado da loteria. Vários
milhões. Carro novo (importado, lógico). Mulheres. Uma lancha.
Mulheres. Viagens. Mulheres. Uma guitarra igual a que Hendrix tacou fogo em
Woodstock! 4, 8, 15, 16, 23 e 42! Bom, agora eu tinha certeza. Eu não
poderia morrer mesmo.
O tempo passava e nada. Minha boca estava totalmente seca. Comecei a ficar
com muita sede. Foi aí que tive a ideia mais estúpida de
minha vida: rezar. Sei que nunca acreditei muito nestas coisas, mas nesta situação,
valia tudo. Pedi para Deus um copo de água. Sempre ouvi que um copo d'água
não se nega a ninguém. Deus me respondeu rapidinho. Começou
a chover. Algumas gotinhas. Algumas gotonas. Um puta temporal. Daí eu
vi que a bosta tava feita. A vala começou a encher de água. E
meu Golzinho também. Minha sede ia passar e eu ia morrer afogado!
Merda! Merda! Merda! Eu tinha que pensar rápido. Deus não era
tão ruim assim e tinha me dado um pouco de inteligência. Foi dolorido,
mas consegui fechar o vidro da janela. Reparei que faltava uma unha em um dos
dedos. Rapidamente contei. Bom, pelo menos, os dez dedos estavam ali. Os da
mão. Os do pé, infelizmente não podia ver. Sei que foi
uma cagada capotar o carro e os vidros ainda estarem inteiros. Mas não
era hora de questionar o meu destino. Ali estava eu: com sede, arrebentado,
preso nas ferragens e com o carro sendo submerso pela água.
Tentei evitar pensamentos do tipo: o vidro pode estourar, a água invadir
o interior do carro e eu morrer afogado e de ponta cabeça. Mas eu tinha
um trunfo: eu era rico agora. E até onde eu sei os ricos sempre se dão
bem. Podia então estar sonhando. Não haveria acidente nenhum.
Não haveria dor, nem unha faltando, nem morte iminente. Seria um pesadelo
e eu só precisava acordar. Mas merda! Se fosse um sonho eu também
não teria ganhado na loteria. Estaria vivo, pobre e fodido.
Ainda chovia, mas o temporal tinha virado uma pequena garoa. Estava perdendo
as esperanças quando vi uns faróis na estrada. Como não
tinha aprendido a lição, resolvi rezar novamente. Deus mostrou
sua eficiência e o carro, que já havia passado do ponto mais próximo
ao meu acidente, deu meia-volta e encostou. Estava salvo. E rico. Daria um presente
para meu salvador. Pelo menos 100 reais. A sede passou e tive a impressão
do meu dedão do pé se mexer. Estava salvo, rico e com o dedão
do pé!
Achei estranho quando o motorista saiu do carro carregando uma marreta. Foi
neste instante que um flashback forçado sacudiu minha cabeça.
Destes irritantes que num filme explicam o final surpresa para os espectadores
mais burros. Eu não havia ganhado na loteria. Eu havia roubado o bilhete.
Roubei de um nerd maldito do meu serviço. O cara nem gostava de mulher.
Pra que iria querer tanta grana? Quando meus pensamentos ficaram coloridos de
novo, ele já estava dentro da vala, com a água até o joelho,
a boca espumando e uma marreta gigante nas mãos. Não sei por que
entendi que ele não estava ali para me salvar. Foi só o tempo
de ouvir o estouro na janela do meu lado. Em segundos a água invadiu
o interior do carro. E lá estava eu: pobre e afogado.