Uma estação antiga, estruturas de ferro trabalhadas em rococó. O tempo lasso, arrasta-se nos ponteiros longos e bem desenhados do relógio, entalhe que retrata a o esmero de quem o criou. Os bancos remetem a pracinhas ou coretos do século XIX, não oferecem conforto, promovem uma visão singela de suas formas, que aguçam a imaginação dos mais românticos, a quem sabe, escrever uma história de amor nos moldes byronianos. Em contraste, um trem elétrico avança freneticamente, movimentos rápidos de passos, a pressa rompe a leveza antes conservada pelo silencio e a brisa fria de manhã de julho. Não posso deixar de perceber que isento a isso, segue um casal. Ele, olhar curioso e atento de proteção, ela, semblante terno das avós de contos de fadas, embora seus cabelos grisalhos estejam tão curtos que quase se vislumbra o couro, antes, cabeludo. Não têm pressa, apenas o suficiente para embarcar na composição. Sigo-os com o olhar, viagem toda, não trocam palavra, vez por outra ele a olha de cima a baixo como se constatando sua frágil presença, ainda, ou talvez força daquilo que se imprimiu inconscientemente, como tatuagem, no tempo. Protegeu-a sempre, pela lógica, e ainda não perdeu o hábito de vistoria. Ela parece não se dá conta da existência desse olhar antigo, atento, donatário. Olha sem interesse para as pessoas de pé sacolejando no Jundiaí Francisco Morato. Nada parece especial. Olha por olhar, ouso imaginar seu senso crítico e penso que traça paralelos entre esse e outros tempos, talvez eu queira isso. Invadindo sua memória, projeto imagens que desfilam entre um e outro mundo separados pelo tempo. Talvez a mesma estação, ruas menos lapidadas, encantadas por barulhos de leiteiros e padeiros que acordam o dia. Esperar o trem era um acontecimento. Tudo programado, uma longa viagem até a modernidade. Extasiar-se diante da beleza da estação, do relógio, do apito, acomodar-se educadamente nos bancos de entalhes belos, caprichados. Encontram os amigos, partirem juntos. Discutem o que farão "na cidade", é divertimento festivo tomar conhecimento do que todos já sabem, mas ainda é notícia fresquinha, mesmo nas páginas do jornal, cujo nome parece mais uma insígnia de tão bem elaborado, parece entalhe feito a mão. Mulheres de uma lado, homens de outro, naturalmente. Os olhares se cruzam, as vezes furtivamente. As roupas, seguem o risco europeu, francês, principalmente. Os odores são de lavanda, de pomadas dos penteados comportados que dão ar de higiene aos rostos moços, viçosos. Um convite ao prazer brasileiro do cafezinho de todas as horas. Nada descartável. Tudo na mais branquinha louça, se nao porcelana mesmo, para os de primeira classe. Isso também era composição das cenas. Mas eram todos comportados, socialmente contidos, não faziam vergonha e nem eram envergonhados. O casal, está lá. Ele mãos nos bolsos do calça do paletó, ela segura, nas mãos delicadas recobertas por luvas finas e de tom pastel, uma pequena bolsa, que move repetidas vezes, refletindo seu misto de timidez e ansiedade olha para ele, sem conseguir dominar o tom vermelho do seu rosto jovem, inquieto. Sonha e ele a mantém assim, com promessas que permearão suas vidas como alimento cotidiano, com o tempo, transformado em utopia cada vez mais consumida pelo viver, sobreviver, trens, salários, filhos, netos. Esqueceram de si, o tempo transformou seus rostos, ele talvez tenha percebido num dia qualquer, de repente, ao esbarrar em um espelho antigo, esquecido na parede desgastada, escurecida, como o relógio, os bancos, as estruturas de aço da estação. Ela quiçá, acompanhou tão diariamente, a construção do seu novo semblante, que sequer deu por conta dos sulcos deixados pelas experiências que só a vida pode oferecer como soro do envelhecimento.Uma voz ao autofalante, não, não são mais autofalantes, são caixas de som, embutidas nas estruturas modernas do trem, agora elétrico, arrasta-me do meu devaneio. O casal, meu protagonista, prepara-se para ficar na próxima estação. Olho-os, e sinto a solidão de cada um, como se já se fizessem sós de si e de seus mundos. Desejo que se deem as mãos, assim fecho meu delírio com um quê de final feliz, não o fazem. Caminham lado a lado, ela ocupa apenas a direita, ele também mantém as duas livres, mas, para minha decepção, não se dão as mãos, fico torcendo da minha janela, eles se afastam, o trem em movimento leva-me de lá, eles somem lentamente na estação, uma brisa leve, movimenta a camisa semiaberta dele e a saia longa e fina dela, sigo para outras estações, aquela imagem na cabeça, e a pergunta desconcertante, "por que não se deram as mãos?" Tantos anos, tão longo convívio. Talvez chegue o tempo em que não precisamos mais nos dar as mãos fisicamente, nos tornamos um só, por sabermos mais estarmos a sós, mas arrisco também e vil possibilidade de o arado das dores, do viver dia a dia, ter cavado sulcos entre aquelas duas mãos, e estarem juntos não seja mais que uma questão de sobrevivência mútua. A vida separa as mãos, as mesmas que uniu com alarido, separa sorrateiramente, e, muitas vezes, não percebemos a distancia em que se encontram as mãos que caminham lado a lado, há tantos anos. Mas elas estão ali, ocultando entre si um passado inteiro, medindo palmo a palmo as marcas deixadas entre um tempo e outro, uma estação e outra, um ponteiro e outro dos relógios antigos bem entalhados, que medem bons e maus momentos. Mas é preciso caminhar acompanhados para a próxima estação, mesmo que apenas lado a lado...mas por que não de mãos dadas? O relógio, a estação e os bancos bem trabalhados, vararam tempos, encontram-se na mesma estação, de mãos dadas como tempo. Por que não de mãos dadas, se as trazemos livres? Ou vazias...é o trem da vida!