A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Um anjo em nossa casa

(Joana Prado)

Éramos onze. Uma enorme família envolta em problemas financeiros e projetos para o futuro que não eram abandonados mesmo com dinheiro escasso. Hoje somos quase todos formados e, de um modo ou de outro, conduzimos nossa vida com um padrão um pouco melhor que as demais famílias numerosas daquela cidadezinha, cujas crianças tornam-se adultos, em sua maioria, analfabetos. Os homens acomodam-se às vidas pacatas de poucas ambições, as mulheres casam-se com esses homens que conhecem desde crianças. Instaura-se um ciclo centenário, cujo fim é somente para aqueles que como nós, têm um anjo em suas casas que os salve de destino tão infalível.

Estatura que não ia além de 1.55m, tinha olhar sereno, mas atitudes severas e irredutíveis. Perdoar, até perdoava, mas não abria mão de suas convicções, fora assim desde muito jovem quando já exercia sobre seus irmãos uma autoridade só superada pela dos pais. Acostumei-me àquela imagem na nossa casa. Nunca passávamos mais de três meses sem ela, e não queríamos isso, ela era nosso porto seguro, tínhamos ciúmes dela, ,pedíamos insistentemente que voltasse logo, quando, vez por outra, passava algum tempo em casa dos demais parentes. Para nós, a nossa casa era dela, nosso mundo era comandado por ela.

E assim foi durante trinta e seis anos de convivência com nosso anjo. Que há de extraordinário nisto? Os anjos são raros e não moram conosco, nos visitam de vez em quando,e não nos deixam tocá-los. Esse era diferente, por inúmeras vezes deitei minha cabeça ao seu colo e ali, mansinho, chorei minhas mágoas sem deixá-la perceber, e se percebia, soube respeitar o fato de eu querer chorar em silencio. Tantas vezes colhi daquele ser apenas um sorriso e eu voltei para casa mais sossegada. Além de todas esses aconchegos materiais, havia um mais importante ainda: o espiritual! Esse nos dava diariamente, quando , humildemente como todos deviam ser nesse momento, punha seus joelhos em terra e orava por todos nós.

Ensinou-nos a orar também, dentre várias outras habilidades como, fazer crochê, "empunhar redes", passar com ferro-de-brasa, pregar botões, e mais, muito mais de habilidades que hoje já não nos faz falta ter ou não, porém eram atividades que ela, solidariamente se propunha a nos ensinar. Ensinou-nos mais, e nos estimulou a algo precioso: a leitura. Como lia aquele anjo! A Bíblia, explorava do inicio ao final do ano. Era sua companheira diária. Não se dizia salva e nem humilhava aqueles que não cultuavam sua religião, ,lia e orava e cumpriu suas obrigações doutrinárias enquanto pôde. Obedecia a quem devia dentro de sua comunidade religiosa. Nos mostrou continuamente, quem era Deus na sua plenitude e bonança, e nos ensinou a acreditar e confiar.

Esses gestos cotidianos estavam, sem que soubéssemos, sedimentando uma base que nos sustentaria fortemente no futuro. Apesar de nos ter acompanhado até romper o limite de vida permitido ao ser humano, seus ensinamentos não foram uma relíquia guardada, usávamos, e usamos, como arma para nos proteger das intempéries. Quando estávamos por demais debilitados, bebíamos um pouco mais de segurança na fonte de sua presença luminosa e partíamos para novos embates que, na nossa vida de família humilde em busca de um lugarzinho ao sol, não foram poucos.

Ainda guardamos em nossas memórias sua figura frágil, sentada em uma cadeira, à porta. Parecia nos esperar um a um, como se soubesse de certeza que chegaríamos inevitavelmente. Ao entramos, em imenso alarido, levantava-se meio trôpega pelos seus mais de oitenta anos, segurava-se na porta, queixava-se de tontura, com bom humor, e pedia um abraço, pedia outro e outro mais forte, alguns de nós a suspendiam do chão, ela nos chamava doidos e sorria feliz. Cada um sabia que a casa sem ela não era a mesma coisa. Minha mãe, meu pai...todos a queriam por perto sempre, pois aquela figura externamente frágil, exercia sobre nós uma proteção insubstituível, enquanto nos modelava para cidadania.

Meu pai sabia do seu papel fundamental em nossa educação, minha mãe via nela modelo de respeito, presença e companheirismo. Enquanto isso, ela mantinha vivas em nós as memórias da família já dispersa pelo tempo, mas muito presente em suas histórias, cujos relatos ouvíamos atentamente. Vivíamos um mundo moderno, mas ela trazia para nossas vidas suas experiências de desbravadora de interiores do nosso estado. Falava de rios, de peixes em abundância, de animais que hoje só vemos em fotografias e de sua lida diária com a agricultura. Ensinou-nos coisas da convivência e sobrevivência na natureza. Foram relatos que, hoje, formados, experientes, com vasto campo de leitura e conhecimento, jamais conseguimos encontrar de novo.

De tudo o que vivemos com ela nos resta a imposição de sobrevivermos sem sua presença, de resgatarmos somente da memória seu apoio, sua palavra de conforto e seus princípios morais e religiosos. Resta-nos o vazio em nossa casa e a cadeira vazia na calçada. Também nos acompanha uma certa insegurança quando algo se projeta de modo irregular e não podemos mais recorrer a ao seu colo para chorar ou sorrir e, às vezes, até achamos que Deus já não nos guarda tanto quanto antes de chamar seu anjo, nosso anjo, de volta. Mas mesmo em outro plano ela não falha em demonstrar que está conosco. Vi, num sonho, um dia antes do meu filho despencar do quarto andar de um prédio. Seu sorriso sereno, naquela manhã de terror, me deu a certeza de que ele sobreviveria. E sobreviveu! Nosso anjo continua conosco, como todos os anjos, para sempre.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br