Éramos onze. Uma enorme família envolta em problemas financeiros
e projetos para o futuro que não eram abandonados mesmo com dinheiro
escasso. Hoje somos quase todos formados e, de um modo ou de outro, conduzimos
nossa vida com um padrão um pouco melhor que as demais famílias
numerosas daquela cidadezinha, cujas crianças tornam-se adultos, em sua
maioria, analfabetos. Os homens acomodam-se às vidas pacatas de poucas
ambições, as mulheres casam-se com esses homens que conhecem desde
crianças. Instaura-se um ciclo centenário, cujo fim é somente
para aqueles que como nós, têm um anjo em suas casas que os salve
de destino tão infalível.
Estatura que não ia além de 1.55m, tinha olhar sereno, mas atitudes
severas e irredutíveis. Perdoar, até perdoava, mas não
abria mão de suas convicções, fora assim desde muito jovem
quando já exercia sobre seus irmãos uma autoridade só superada
pela dos pais. Acostumei-me àquela imagem na nossa casa. Nunca passávamos
mais de três meses sem ela, e não queríamos isso, ela era
nosso porto seguro, tínhamos ciúmes dela, ,pedíamos insistentemente
que voltasse logo, quando, vez por outra, passava algum tempo em casa dos demais
parentes. Para nós, a nossa casa era dela, nosso mundo era comandado
por ela.
E assim foi durante trinta e seis anos de convivência com nosso anjo.
Que há de extraordinário nisto? Os anjos são raros e não
moram conosco, nos visitam de vez em quando,e não nos deixam tocá-los.
Esse era diferente, por inúmeras vezes deitei minha cabeça ao
seu colo e ali, mansinho, chorei minhas mágoas sem deixá-la perceber,
e se percebia, soube respeitar o fato de eu querer chorar em silencio. Tantas
vezes colhi daquele ser apenas um sorriso e eu voltei para casa mais sossegada.
Além de todas esses aconchegos materiais, havia um mais importante ainda:
o espiritual! Esse nos dava diariamente, quando , humildemente como todos deviam
ser nesse momento, punha seus joelhos em terra e orava por todos nós.
Ensinou-nos a orar também, dentre várias outras habilidades como,
fazer crochê, "empunhar redes", passar com ferro-de-brasa, pregar
botões, e mais, muito mais de habilidades que hoje já não
nos faz falta ter ou não, porém eram atividades que ela, solidariamente
se propunha a nos ensinar. Ensinou-nos mais, e nos estimulou a algo precioso:
a leitura. Como lia aquele anjo! A Bíblia, explorava do inicio ao final
do ano. Era sua companheira diária. Não se dizia salva e nem humilhava
aqueles que não cultuavam sua religião, ,lia e orava e cumpriu
suas obrigações doutrinárias enquanto pôde. Obedecia
a quem devia dentro de sua comunidade religiosa. Nos mostrou continuamente,
quem era Deus na sua plenitude e bonança, e nos ensinou a acreditar e
confiar.
Esses gestos cotidianos estavam, sem que soubéssemos, sedimentando uma
base que nos sustentaria fortemente no futuro. Apesar de nos ter acompanhado
até romper o limite de vida permitido ao ser humano, seus ensinamentos
não foram uma relíquia guardada, usávamos, e usamos, como
arma para nos proteger das intempéries. Quando estávamos por demais
debilitados, bebíamos um pouco mais de segurança na fonte de sua
presença luminosa e partíamos para novos embates que, na nossa
vida de família humilde em busca de um lugarzinho ao sol, não
foram poucos.
Ainda guardamos em nossas memórias sua figura frágil, sentada
em uma cadeira, à porta. Parecia nos esperar um a um, como se soubesse
de certeza que chegaríamos inevitavelmente. Ao entramos, em imenso alarido,
levantava-se meio trôpega pelos seus mais de oitenta anos, segurava-se
na porta, queixava-se de tontura, com bom humor, e pedia um abraço, pedia
outro e outro mais forte, alguns de nós a suspendiam do chão,
ela nos chamava doidos e sorria feliz. Cada um sabia que a casa sem ela não
era a mesma coisa. Minha mãe, meu pai...todos a queriam por perto sempre,
pois aquela figura externamente frágil, exercia sobre nós uma
proteção insubstituível, enquanto nos modelava para cidadania.
Meu pai sabia do seu papel fundamental em nossa educação, minha
mãe via nela modelo de respeito, presença e companheirismo. Enquanto
isso, ela mantinha vivas em nós as memórias da família
já dispersa pelo tempo, mas muito presente em suas histórias,
cujos relatos ouvíamos atentamente. Vivíamos um mundo moderno,
mas ela trazia para nossas vidas suas experiências de desbravadora de
interiores do nosso estado. Falava de rios, de peixes em abundância, de
animais que hoje só vemos em fotografias e de sua lida diária
com a agricultura. Ensinou-nos coisas da convivência e sobrevivência
na natureza. Foram relatos que, hoje, formados, experientes, com vasto campo
de leitura e conhecimento, jamais conseguimos encontrar de novo.
De tudo o que vivemos com ela nos resta a imposição de sobrevivermos
sem sua presença, de resgatarmos somente da memória seu apoio,
sua palavra de conforto e seus princípios morais e religiosos. Resta-nos
o vazio em nossa casa e a cadeira vazia na calçada. Também nos
acompanha uma certa insegurança quando algo se projeta de modo irregular
e não podemos mais recorrer a ao seu colo para chorar ou sorrir e, às
vezes, até achamos que Deus já não nos guarda tanto quanto
antes de chamar seu anjo, nosso anjo, de volta. Mas mesmo em outro plano ela
não falha em demonstrar que está conosco. Vi, num sonho, um dia
antes do meu filho despencar do quarto andar de um prédio. Seu sorriso
sereno, naquela manhã de terror, me deu a certeza de que ele sobreviveria.
E sobreviveu! Nosso anjo continua conosco, como todos os anjos, para sempre.