O mundo estava em polvorosa. O que antes era só uma especulação
que atravessara gerações sem que se levasse a sério tal
disparate, agora tornara-se dura realidade. E às vésperas da entrada
do 40 milênio, todos liam, estarrecidos, a manchete bombástica
em todos os jornais virtuais: "PRESO O PRIMEIRO SUSPEITO DE TRÁFICO
DE PIPOCA".
Isso mesmo, depois de ser banida como substância gregária, portanto
nociva, a pipoca voltara para jogar por terra séculos de segregação
virtual. O século 20 era apenas uma longínqua época a que
se dava o nome de século romântico. Então, a doença
letal por contágio era só a aids. Todos ficavam boquiabertos pelo
fato de alguém se contaminar com uma doença que se pegava por
meios tão complicados, sendo o principal deles o relacionamento sexual.
Seria cômico se não tivesse sido trágico, dizia o pessoal
do final do século 30.
Depois da falência total dos antibióticos por causa de seu uso
abusivo e indiscriminado, todas as moléstias que eram antes facilmente
controladas, recrudesceram e voltaram a matar com muito mais eficiência.
A principal dessas moléstias era a tuberculose. Bastavam poucos minutos
sem o uso de máscara para a pessoa ter 95% de possibilidade de se contaminar
pela atmosfera impregnada pelo bacilo. A raça humana caminhava para uma
inexorável extinção. Aquilo que tantos políticos
tentaram - a inglória tarefa de acabar com a pobreza - as velhas doenças
o fizeram com uma competência e rapidez que nem 100 presidentes da república
juntos conseguiriam. A salvação do que restava da humanidade só
veio depois da adoção de uma medida radical tomada pela Organização
Mundial de Saúde: o fim de qualquer tipo de contato físico
entre as pessoas e com a atmosfera. A adoção global dessa
medida só foi possível pelo reduzido número de terráqueos
e a inexistência de pobres que não poderiam comprar os equipamentos
necessários ao isolamento.
No início era uma maravilha. As pessoas com seus trajes de astronautas
locomoviam-se vagarosamente, mas em perfeita segurança. Mas como toda
medida radical tem o seu ônus e seus contrários, essa não
foi uma exceção. Começaram a aparecer os primeiros rebeldes.
Pessoas nostálgicas do convívio mais íntimo com familiares
e amigos começaram a se reunir em subterrâneos da cidade, sob o
risco de suas vidas, para comerem pipoca. Tudo começou quando um filósofo
existencialista de renome elegeu a saudosa pipoca como um signo de felicidade.
Dizia o filósofo que nenhum grupo, antigamente, se reunia em torno de
uma tigela de pipoca caso não houvesse harmonia entre seus pares. A pipoca
era a celebração da alegria, mesmo porque - dizia o filósofo
- a pipoca era mais um brinquedo que um alimento.
Não demorou muito e essa rebeldia foi descoberta com o aparecimento das
primeiras vítimas. Alguns contágios eram tão fulminantes
que a vítima, na autópsia, ainda apresentava fragmentos de pipoca
em seu organismo. Alguns rebeldes que, por milagre, escaparam à contaminação
se entregaram arrependidos. Para esses a pena foi trabalhos comunitários.
O filósofo que enaltecia a pipoca foi denunciado, preso e confinado.
Morreu em pouco tempo.
As autoridades de todo o planeta foram incansáveis no combate ao famigerado
milho de pipoca. Todos os satélites mais poderosos de então foram
direcionados para localizar o último grão da terra. A incineração
do derradeiro grão foi transmitida e comemorada em todo o planeta. A
humanidade estava definitivamente livre desse mal.
Voltara a harmonia. Não havia qualquer risco de mal físico. Isso
mesmo, nenhum mal físico. Só que nem todos morrem acometidos por
moléstias do corpo, mas também por moléstias do espírito.
E se isso é verdade desde que o homem desceu das árvores e começou
a esconder-se em cavernas e armazenar alimentos, não seria diferente
em outras épocas. E quando todos comemoravam a vitória desse ascetismo
tecnológico, uma nova doença abateu-se sobre o povo. À
nova moléstia deram o nome de Síndrome de Isolamento Compulsório
(SIC). A moléstia galopava. Não era segredo que a SIC levava ao
suicídio 100% de seus portadores que aumentavam numa progressão
aritmética. E todos sabiam a causa: o tédio.
Diante da pandemia, coube à Organização Mundial de Saúde
descobrir a cura. Em um curto espaço de tempo veio a público a
descoberta do medicamento com eficácia total sobre a SIC. Muitos contestassem
a excelência dessa descoberta quando ficaram sabendo que a droga curativa
não passava da ancestral e legendária heroína. Sem dar
ouvidos às futricas científicas, ficou decidido que todos fariam
uso da droga para o combate ao tédio letal.
Como era de se esperar, a medida adotada pela OMS chocou vários segmentos
da sociedade, principalmente a igreja. Havia uma farta literatura, tanto ficcional
como científica, que confirmava o efeito antidepressivo e antitédio
da heroína. Um escritor do século 20, William Burroughs, dizia
que era capaz de passar horas e horas seguidas olhando para o dedão do
pé numa boa depois de tomar um pico de heroína.
A injeção era uma coisa tão arcaica para o povo do século
30 quanto a sangria o fora para o século 20. As seringas hipodérmicas
eram restritas aos museus da medicina. Todos os medicamentos eram processados
eletronicamente e convertidos em unidades cibernéticas. Não se
receitava, por exemplo, uma cápsula de 500 mg, e sim, um chip de 500
bytes. Qualquer medicamento era tomado por download. A OMS não teve nenhum
trabalho na conversão da heroína em unidade binária. O
que os cientistas fizeram foi aperfeiçoá-la acrescentando vários
matizes ao seu efeito básico. A heroína estava liberada e incentivada
da mesma maneira que os antepassados incentivavam o uso da camisinha, um arcaico
invólucro plástico que tinha a finalidade de impedir o contato
físico entre o pênis e a vagina durante uma promiscuidade a que
chamavam de ato sexual.
A adesão à medida foi de 100% da população. E a
humanidade nunca mais foi a mesma. A primeira mudança brusca foi a ausência
total de pressa e, a partir daí, tudo mudou. Acabaram-se o suicídio,
o stress, a queixa, enfim, eram seres isolados e felizes, até que um
sujeito pervertido resolveu pensar o contrário.
Leia a entrevista feita com o suspeito na matéria do New York Times de
30 de dezembro de 3000.
Repórter: Diga, exatamente, qual é o seu trabalho?
Traficante: Eu vendo downloads na porta de escolas.
Repórter: Que tipo de downloads?
Traficante: Heroína
Repórter: Você confessa que sua banca de downloads era só
uma fachada para o tráfico de pipoca para as crianças?
Traficante: Ah, eu confesso, já me pegaram no fraga mesmo! Mas eu tinha
heroína também pra quem quisesse!
Repórter: Há quanto tempo você vinha traficando pipoca em
porta de escolas?
Traficante: Faz muito pouco tempo, uns 10 ou 15 anos.
Repórter: Sua clientela é grande?
Traficante: Mais ou menos. Tem um pouco numa escola, mais um pouco em outra,
e por aí vai...
Repórter: E como você conseguiu essa clientela?
Traficante: Ah, sabe como é né!? No início a gente dá
uma pipoca de graça aqui, outra ali, aí quando o garoto vicia
e quer mais, vai ter que pagar.
Repórter: Você sabe se tem mais gente traficando pipoca?
Traficante: Vixe! Tem é no mundo todo!
Repórter: E de onde vem esse milho?
Traficante: Não sei. Eu comprava o milho de um velho chinês, mas
ele não me dizia de onde era.
Repórter: Você tem consciência do mal que está causando
às crianças, pondo-as em risco de contaminação com
a atmosfera?
Traficante: Olha, eu não forço ninguém a comprar. Inclusive
eu sei que muitos garotos compram e levam para os pais.
Repórter: Você não acha que a pipoca pode ser só
o começo? Um comedor de pipoca hoje pode ser um bebedor de cerveja e
comedor de churrasco domingueiro amanhã?
Traficante: Eu acho isso uma bobagem. Eu sei de gente que come pipoca há
vinte anos e nem por isso passou a beber cerveja e comer churrasco.
Repórter: Uma última pergunta: você já ouviu falar
de pessoas que consomem churrasco domingueiro?
Traficante: Ah, isso aí eu não sei, não conheço,
nunca vi! Quem deve saber é a polícia.