Sentada numa cadeira de uma delegacia qualquer, Eulália passa a língua
nos dentes pensativa. Estão quebrados. Ela lembra então do episódio
da noite anterior. Um cliente. Fez de tudo e no fim da noite não quis
pagar os serviços prestados. Devido a sua reação agressiva
e indignada, deu-lhe um soco que lhe quebrou os dentes incisivos e a deixou
desacordada. Quando despertou, sabe-se lá quanto tempo depois, estava
sozinha naquele quarto que fedia a enxofre e mofo. Sua bolsa estava aberta e
todo seu dinheiro havia sido levado. Aborrecida e desgrenhada, ela sai do quarto,
conversa com o dono daquele lugar chinfrim, onde costumava ir com seus clientes,
e acerta o pagamento do pernoite para mais tarde.
Ainda pensativa, lembra da morte da mãe. Assassinada pelo namorado que
acreditava em uma possível, mas não confirmada, traição.
Crimes passionais são sempre tão risíveis... Não
há de ser à toa que está entre os pecados capitais, que
são, diga-se, os melhores de se cometer.
Tais pensamentos levam-na ainda a outro acontecimento. Remete-se ao dia em que
seu pai a acordou no meio da noite, não cheirava à bebida, como
de costume, no entanto, chegou a sua cama cambaleante. Fingimento? Talvez. Disse
que ela estava virando mocinha e que os rapazes em breve começariam a
desejá-la. E que ele, como pai, tinha direito de tê-la antes de
todos os outros. Aos dez anos, não compreendera muito bem o que ele quisera
dizer com "direito de tê-la". Até que ele começou
a passar a mão em suas coxas e tentar beijá-la. Oferecendo alguma
resistência e tentando fazer algum barulho para que sua mãe, que
dormia profundamente no quarto ao lado ouvisse, escutava ameaças sussurradas
pelo pai.
É só do que consegue lembrar. Os demais detalhes foram apagados
por sua memória seletiva. Lembra, porém, que depois foi a uma
delegacia fazer corpo de delito, mas não antes de ir a um hospital com
um forte sangramento. Recorda-se também que seu pai respondeu a um longo
processo e passou um dia preso. Acabou solto por um habeas corpus impetrado
por sua advogada.
Dispersa em seus pensamentos, Eulália estava totalmente alheia aos insultos
e gracejos de dois policiais que tomavam café perto de onde ela se encontrava.
Ainda imersa em reminiscências, ela pensava com que dinheiro ia pagar
o aluguel miserável do cubículo ainda mais miserável que
a abrigava. O maldito cliente da noite anterior não só não
pagou o programa como roubou o dinheiro que ela separara para o aluguel. Teria
que trabalhar dobrado. "Mulher de vida fácil?", pensou e fez
um muxoxo.
Caindo em si, levantou-se e disse ao delegado que precisava ir embora, mas que
a fiança ela pagaria a ele com a única coisa que ela sabia fazer
profissionalmente, porque dinheiro, esse ela não tinha. Ele deu um sorriso
com o canto dos lábios e disse: "Apareço no meu apartamento
mais tarde. Se é que se pode chamar aquele muquifo de apartamento".
Ela deu um sorriso triste e se retirou. Já na rua movimentada e barulhenta
acendeu um cigarro e parou num boteco de esquina para tomar uma cerveja.
Eulália não era bonita, nem jovem, não tinha charme algum
e elegância definitivamente não era o seu forte. Seu olhar trazia
a sombra que traz o olhar das pessoas sofridas e resignadas. Nunca se imaginara
em outra profissão, embora já sentisse a perda numerosa de clientes
por conta da idade avançada. No entanto, se sentia igualmente velha para
uma mudança de vida. Não tinha família nem amigos. Era
uma solitária, mas não por opção. A vida que levava
exigia isso dela.
Tomando sua cerveja pensou que quando morresse não haveria velório,
enterro... provavelmente iria para o IML com um adesivo escrito "indigente"
colocado em seu dedão do pé direito. Tal pensamento a angustiava.
Quem choraria sua morte? Alguém sentiria sua falta? Talvez o dono do
prédio suburbano em que morava, quando fosse cobrar o aluguel e a porta
não fosse atendida. Talvez o dono do motel barato ao qual ela levava
seus parcos clientes. Ou nem eles.
Ao terminar a cerveja, tira da bolsa seu batom vermelho, passa em seus lábios
murchos, cochicha algo ao ouvido do dono do boteco e vai embora sem rumo. Certamente
volta para a vida anônima e não sentida que a angustia mais que
a morte com as mesmas características.