Meu querido,
Lembro com uma clareza incomum de nossas conversas, nossos olhares tímidos
no começo, os sorrisos que diziam muito e nos divertiam menos do que
encantavam. Dos ciúmes bobos e infantis que nos cegavam para a beleza
das outras coisas. Lembro do quanto você se divertia com meus presentes
enigmáticos que você só ganhava se os desvendasse. Os livros
que nos demos e emprestamos, esses eu tenho até hoje, numa prateleira
especial. Cuido deles como de filhos, animais de estimação ou
algo que o valha.
Recordo-me, não sem dor, do quanto fomos felizes. As viagens que fizemos,
as fotos que tiramos... um dossiê de uma vida. E quando penso em tudo
isso, me pergunto como você pôde me abandonar... deixar tudo que
você dizia amar e querer para sempre. Por isso eu não te perdoo.
Perdoo você pelas brincadeiras infames em horas impróprias,
pelas risadas nos meus momentos de mau humor, pelas vezes que me acordou de
madrugada para jogar xadrez porque estavas insone, pelos livros que me pediu
emprestado e não leu, pelo meu cd preferido que você deu de presente
a um amigo e por tantos outros pequenos delitos.
Você sabe que mereceu isso, não sabe? Eu avisei que não
toleraria ser abandonada. O seu problema foi nunca ter levado a sério.
Estou indo ao cemitério te deixar flores, como faço todos os anos.
Comprei copos de leite, sei que você gosta. Esta carta vai acompanhá-las.
Não é a primeira, mas talvez seja a última. Conheci um
rapaz. Ele parece interessante, gosta das mesmas coisas que eu, tem planos semelhantes...
acho que temos potencial para dar certo. Se no ano que vem não chegarem
flores para você, é porque eu me mudei. É possível
que eu vá morar em Istambul. Surgiu uma boa proposta de emprego lá,
estou analisando. Ele se ofereceu para ir comigo. Talvez eu aceite.
Adeus, querido.
Feliz aniversário.
Sua Elfa.