A Garganta da Serpente
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Dragões

(Jonas Nascimento)

A vinda do velho Liu à pequena cidade foi a melhor coisa ocorrida nos últimos anos.Amigo e conselheiro logo conquistou aos adultos e com a sua docilidade cativou especialmente as crianças.Todos os dias saía de casa levando debaixo do braço um surrado saco de couro.Caminhava até um lugar afastado onde havia uma árvore cujo nome ninguém lembra e ficava ajoelhado debaixo da sombra,começava então a recitar uma estranha ladainha composta por longas frases permeadas por espaços de atordoante e infinito silêncio.

Muitos ao vê-lo assim monologando cochichavam,viam comprovadas todas as suas suspeitas.Muitos o julgavam louco ou idiota.Mas tudo se tratava apenas de um ritual elaborado pelo espírito de um velho solitário talvez inconscientemente cúmplice dos que lhe atribuíam uma certa excentricidade,ansioso apenas por poder desfrutar ao máximo os momentos proporcionados por tão feliz estado.

A insistência porém logo o fazia desistir da sua intenção.Como permanecer indiferente aos pedidos dos pequenos e dos maiores comovidos por vê-los tristes nas raras vezes em que Liu sem dar ao menos uma justificativa se recusava?

Logo o cercavam acotovelam-se para o ver trabalhar.Tirava então várias folhas de papel colorido e um grande carretel da velha sacola e do bolso da sua bata um toco de lápis com uma lasca de madeira presa ao corpo usada como lâmina.

Embora a montagem de uma pipa seja algo banal assumia ali a aura do inusitado, todos eram levados a crer nisso por sua fama de manusear o papel como o oleiro faz com a argila.Paciente e preciso realmente fazia dele a extensão da sua vontade.De forma própria às suas mãos de artífice,mãos longas e finas e à sua mente repleta de ideias resguardadas por uma névoa impenetrável.Ainda mais oculto era o significado dos versos sussurrados em companhia das crianças,estranhas canções oriundas de terras distantes e pronunciadas em língua ininteligível.

Os mais entusiasmados entre os espectadores corriam para procurar varetas de bambu.Os demais se divertiam tentando adivinhar a provável forma da próxima pipa.Era muito comum acertarem pois havia claramente certa correspondência entre as cores e o animal a ser representado.O papel preto ou pardo tomaria a forma de um gato ou de um cão,o azul e o amarelo logo se transmutavam em grandes pássaros,e o verde e o vermelho em peixes.Curiosamente todos ignoravam a utilidade do grande rolo de linho branco visto muitas vezes suspenso sobre a cabeça de Liu na copa da grande árvore.

Já próximo ao fim da tarde o vento forte atirava a poeira da estrada nos olhos dos viandantes e dava força lançava no ar as atrevidas criaturas de papel tal espetáculo poderia facilmente convencer alguém da existência dos antigos deuses que tinham os céus por morada.

A noite chegava e as pipas eram então puxadas de volta e recebidas como espíritos privilegiados por terem se tornado a expressão visível da felicidade.Satisfeito ele partia,caminhando sozinho na direção oposta dos pequenos companheiros de brinquedo.

Quando desejavam falar com ele os mais velhos o aguardavam em frente à sua casa e tão logo chegava se lançavam na sua direção isso costumava acontecer quando necessitavam de ajuda para tomar qualquer decisão importante para o povoado,isso o fazia se sentir vaidoso e reconfortado como se tivesse sido acariciado pela brisa no calor verão.

Mas nesta noite não o aguardava nenhuma alegria.Já frente às suas portas alguns não se contentavam em gritar,caminhavam sobre os canteiros do jardim esmagando as folhas caídas,amarelas,repletas de sol,e os pequenos arbustos.Estava muito frio os ossos lhe doíam mas ele sorria e ao se aproximar dos visitantes ignorando tudo os cumprimentou como de costume.Sem nenhum motivo aparente o atacaram.Uma chuva de golpes caiu sobre o seu corpo,perplexo não pode pensar sequer numa forma de escapar.Apenas a lembrança persistente das outras vezes em que os recebera com a sua cortesia humilde os fez desistir de o matar ali mesmo.Foi levado até um antigo prédio usado como prisão,lá o jogaram sobre um monte de feno.

Mal amanhecera Liu ergueu-se e caminhou até onde havia uma pequena fresta na parede por onde passava um filete de luz branca,encostou o rosto nela e conseguiu ver a praça do mercado.Tal visão servia como único consolo e maior suplício dos prisioneiros,os levava a pensar no passado e os vergava diante do futuro incerto mas para ele tudo se tornara indiferente muito pior do que a sensação de eterno presente era não encontrar a causa para tudo isso.

- Velho.Esse chamado vindo do outro lado da cela o despertou desse estado de contemplação quase sonambulismo.-Consegue me ouvir?O outro se aproximou e lhe deu uma pequena tigela cheia de água,ele a tomou e bebeu ávido.-Teve muita sorte pelo menos ainda pode ficar de pé.

Continuava calado,estava assombrado com as marcas dos golpes que recebera."Não me deixarão jamais me feriram até a alma".Seu companheiro de cela como se pudesse ouvir falou.-Eu mesmo já passei por isso muitas vezes e posso mostrar o quanto ainda teremos de suportar.

Tirou então a camisa deixando à vista marcas semelhantes aos sulcos cavados na terra pelo arado.Não deveria existir forma mais extrema de desejo de justiça ou vingança incapaz de se mortificar diante disso,no rosto tinha estampada a mais bizarra forma de orgulho deixando claro que tal esforço em nada contribuiu para o tornar mais dócil.Wang,era como se chamava,desejou perguntar a Liu o motivo de sua prisão mas logo viu não ser necessário percebeu tratar-se de um inocente,tal homem não seria capaz de fazer mal a alguém e muito menos se dar ao luxo de ter inimigos.

Há muito se passara a hora da primeira refeição,a fome porém não os incomodava o verdadeiramente cruel era a expectativa principalmente para Liu ignorante da rotina a que deveriam ser submetidos.Já devia ser meio-dia,dois guardas se colocaram frente às grades e o chamaram.Ele se aproximou,abaixou-se e apanhou o prato de sopa passado por baixo das grades.Aproveitando-se disso acertaram em cheio seu rosto com um pontapé,num instante porém se levantou encarando seus algozes.Tinha de se mostrar forte.Os guardas surpresos por tal atitude resolveram ir embora e o deixar em paz.

* * * * *

No sexto dia passado no cárcere foi acordado a golpes de vara.Reconheceu entre os agressores um dos magistrados locais,pela primeira vez ficou verdadeiramente espantado afinal o que alguém de tamanha importância estaria fazendo ali?Sem poder comer ou mesmo lavar-se foi escoltado de volta à sua casa.Teria de ir a pé com uma pesada pedra amarrada na cintura.Cansado de carregar pois a arrastar como ordenaram seria pior tornando a marcha ainda mais lenta ele a soltava ou a deixava simplesmente cair,os soldados embora soubessem ter a obrigação de o livrar da carga ao perceber não ser ele capaz de tal esforço ao invés de ajudar o lançavam ao chão.

Chegando Liu quase desfaleceu.As árvores haviam sido cortadas,o jardim estava arruinado e até as gaiolas,portas e janelas da casa jaziam no chão despedaçadas.Lá dentro não havia mais nada tudo tinha sido roubado a não ser o rolo de linho e uma caixa onde ainda restavam barbante e lápis surpreendentemente lhe permitiram os levar consigo.

Somente agora soube que o acusavam da morte do filho de uma autoridade da região.Como de forma inequívoca tudo depunha contra ele seria executado em poucos dias.Foi levado de volta até ali apenas para um interrogatório,não se tratava de um julgamento mas apenas de uma forma de se saborear a vingança.Nada soube responder ao lhe perguntarem sobre as manchas de sangue no chão e nas paredes caiadas.O jovem foi degolado e a arma do crime seria o velho facão enferrujado encontrado num dos cantos da casa.Retornavam agora.Em redor logo se formou um pequeno cortejo.Alguns curiosos,uns poucos a se lamentar e muitos culpados.

* * * * *

Naquela província havia um homem conhecido por sua crueldade para com os pobres era o cobrador de impostos para ele não importava a difícil situação dos camponeses,como ave de rapina se precipitava sobre todo o grão e toda a prata.Ora isso provocou o povo até o limite da sua resignação e cansados de serem tratados como animais passaram então a conspirar.Mas a pena pela acusação de tramar contra alguém tão poderoso desencorajava mesmo os mais valentes imagine então realizar tal intento.Um terror quase supersticioso tomava os corações daquela gente.Dentre todos eles o mais ardiloso,a intriga e a infâmia também prosperam entre os humildes,os convenceu a escolher outra vítima e para terem certeza da impunidade seria preciso eleger alguém como bode expiatório.Estava decidido então.Matariam o filho do seu inimigo,este costumava frequentar a casa de Liu cuja fama já se propagara muito além da pequena cidade.Vê-se agora, o seu dom foi a sua ruína.

* * * * *

Seriam executados na manhã seguinte,Liu simplesmente sorria ao ouvir qualquer alusão a isto.Já Wang estava intrigado com a atitude do amigo.

-Você é estranho,estamos para morrer e consegue sorrir assim sereno como uma criança.

-Tem então alguma ideia?

-Não e nem você.Não há meio de escapar e criminosos como nós nunca podem esperar por clemência.Desculpe Liu acredito em sua inocência mas os fazer voltar atrás agora é inútil como suplicar pela piedade de um tigre.

-Sabe como se dá caça aos tigres Wang?

Julgando Liu aflito a ponto de dizer coisas sem sentido ele preferiu o silêncio.

-Quando o Filho do Céu resolve tornar menos tediosos os seus dias sempre tomados pelo cerimonial e pelo peso de tantas funções vai ao campo levando consigo muitos homens,caçadores portando armas de fogo ou arcos e ainda outros com tochas mas todos eles são inúteis sem os encarregados pelos grandes rolos de linho.Os atiradores são apenas uma garantia contra qualquer ataque súbito,matar presa tão rara e cobiçada seria indigno e tão secundário quanto o destes é o papel dos portadores das tochas.Os homens do linho tem à mão largas e compridas faixas desse tecido especial e com ele tão logo encontram local adequado,geralmente uma clareira,armam uma emboscada estirando quatro delas no solo formam um grande quadrado ao qual se segue outro e outro e mais outro.Enquanto isso os demais afugentam o tigre na direção dos captores.A presa logo se aproxima,então usando de cordéis elevam os lados da armadilha.A fera recua mas as faixas suspensas formam uma espécie de caixa e a cada tentativa de se libertar consegue apenas se internar ainda mais no labirinto.

Wang balançava a cabeça incrédulo e de lábios entreabertos ameaçou dizer algo,Liu o impediu.

-Aí você me dirá que é apenas tecido quase tão frágil como o papel.O tigre porém ignora a natureza das muralhas e julga estar encerrado entre paredes espessas e intransponíveis,algumas vezes tenta resistir rugindo ou rodopiando em torno de si mesmo desesperado mas não ousa contudo se lançar contra as paredes que se aproximam e o envolvem,assim derrotado se deixa apanhar facilmente.

-Liu...

-Me tomam por um velho incapaz...Serão surpreendidos como o homem ao acordar no campo e que sozinho se depara com a morte,serão esfolados sem poder oferecer a menor resistência.

* * * * *

Manhã.Assim como estavam foram levados para o pátio.A cela ficara vazia a não ser pelo linho retalhado e pelo monte de palha.No cadafalso os condenados trocaram um último olhar,todos na multidão esperavam ouvi-los implorar isto geralmente os divertia e as chicotadas dos carrascos empregadas para os fazer calar eram uma preliminar do espetáculo aguardado.Eles nada disseram estavam firmes e Wang mais atrevido chegou mesmo a assobiar causando temor em alguns por ser esse um mau presságio.

Súbito não sentiam mais o solo sob os seus pés e ao contrário do costume logo que os corpos penderam presos nas cordas os carrascos pularam em seus ombros num procedimento conhecido entre eles por cavalgada,os gritos de euforia se faziam ouvir novamente.Agora no chão puxaram para trás os longos cabelos das vítimas e cortaram as suas gargantas.Para impressionar as autoridades presentes resolveram esquartejar os corpos ali mesmo,numa dança macabra deceparam as cabeças dos prisioneiros com os facões e os desmembravam.Mas logo ficaram assombrados com o fato de não haver sangue,eram como os bonecos de argila feitos para as crianças e assim como eles se transformaram em pó.O medo tomou a todos logo não havia mais ninguém na praça de execuções.

Ainda maior foi o horror sentido pelos guardas da carceragem.Uma espessa e fétida névoa negra tomou conta do local,viram então emergir da antiga cela de Liu duas bestas com garras e presas enormes,chifres bifurcados e corpo de serpente que fugiram rompendo as grades.

Logo a notícia se espalhou pela província,no princípio sem muito crédito pois tais histórias eram tão comuns quanto mentirosas.Restava apenas o inexplicável desaparecimento de várias pessoas naquela e em outras cidades deixando aflitas muitas famílias.Não se podia vislumbrar impunemente o terror provocado por aquelas duas nuvens negras no céu mensageiras de vida e morte a pairar sobre os campos deixando o seu rastro de sombra nos arrozais.

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