A Garganta da Serpente
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Epitáfio de um amor platônico

(José Marcelo Siviero)

Vinha há semanas com aquilo pulsando na cabeça. Era uma ideia quase fixa, parecia que tinha sido gravada em pedra. A cada segundo que passava, a agonia aumentava. A fuga do tempo doía, doía muito, e o dia de amanhã era sempre esperado num suplício. Quando ele chegava, era um alívio, que não durava muito. Logo depois se tornava outro suplício, como um círculo vicioso.

No início, era o amor. Amor que nasceu como libertação, como uma forma de defesa. Tinha lido uma vez numa poesia do amigo Zé que para se ter amor, é preciso ser herói. Amor e heroísmo são a mesma coisa. E não era qualquer herói não, tinha que ser como aqueles cavaleiros das Cruzadas, como caubóis do velho oeste, como bombeiros sem medo de prédios em incêndios, como aqueles heróis japoneses que não tinham medo da morte e se sacrificavam em lutas contra monstros e vilões de plástico e borracha.

Logo depois de ter sido ferozmente desprezado por uma garota ingrata, raivosa e antipática, que o desdenhou para preferir um gordão molenga que tinha carro e falava mal dela pelas costas, ele viu que merecia coisa melhor. Muito melhor. A loirinha de cabelos espiralados, olhos negros, sorridente, simpática, cheinha sem exageros, era aquela. Educada e doce, era uma pessoa que emanava luz.

E começou. Gostava dela em segredo. Aproximava-se, puxava conversa, cumprimentava, sorria, trocava algumas palavras e alguns sorrisos. Os momentos de distância eram dolorosos. O tempo se esgotando, muito mais. Então, aconteceu o que um amigo intitulou de "As Quatro Semanas que Abalaram o Mundo". Não, não era filme.

Tinha somente esse tempo para juntar forças, criar coragem e declarar seu amor. Os dias foram passando, os fins de semana se sucedendo. E nada. A cada segundo, a hora fatal se aproximava.

E, como nos seriados japoneses de que tanto gostava, os episódios caminhavam para a conclusão:

- Olha, eu preciso conversar em particular com você uma hora dessas. Você poderia me lembrar?

- Sim- ela respondeu.

- Olha, já estou de saída, amanhã a gente pode falar em particular?

Ela balançou a cabeça numa afirmativa.

Chegou o dia. Pânico, coração descontrolado, sangue frio quase cristalizando-se nas veias, suor descendo testa abaixo, garganta seca como o deserto de Atacama em dias áureos. Chamou-a:

- Preciso falar agora em particular com você. Pode ser agora?

- Pode ser sim. O que é?

- É um negócio meio complicado...meio difícil...talvez fosse até fique brava comigo...

- Nossa! exclamou ela, os lindos olhos se arregalando.

- Bom, então eu vou falar- chamou para mais perto. Ela obedeceu, puxando a amiga, que já percebeu do que se tratava e ia saindo pela tangente.

- Mas é um negócio em particular mesmo...

- Bom, então me fala via ICQ- disse ela- Vou estar online às nove horas.

Concordou. Era onze e vinte e oito da manhã quando assinou a sentença de seu destino. Enfim a hora temida e ansiada chegou. O nome dela em azul, a troca de mensagens eletrônicas. E foi pelos cabos que as palavras dela chegaram. Conta-se que naquela noite as caixas de som do computador emitiram um soluço, as placas ficaram comovidas e os elétrons chegaram até a chorar.

- Agora que me caiu a ficha, acho que você confundiu um pouco as coisas- escreveu ela- não vou te iludir, mas acho que o que rola entre a gente é só amizade.

- Não- choramingou ele- Meu Jesus Cristo!

Não se sabe se foi uma queda na conexão, ou uma interceptação de algum hacker, ou até algum sistema de criptografia, mas sua tentativa de comunicação com o Céu não deu certo.

O tempo passou. Lágrimas secaram, feridas reduziram-se a apagadas cicatrizes, ressentimentos e mágoas acabaram caducando. Voltaram a se encontrar. Eram amigos, conversavam bastante. Riam muito juntos. Contudo, sempre que se abraçavam para se cumprimentar, uma lápide de mármore surgia do nada e caía bem em cima de suas cabeças, pegando-os sempre em cheio. E quando olhavam o epitáfio gravado na pedra, abraçavam-se e choravam. Até ficaram íntimos nessa troca de lágrimas, ranho e soluços.

E o epitáfio era, gravado em tipos maiúsculos: CTRL+ALT+DEL.

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