Todo mundo sabia que a Doida da Torre morava numa tenda feita com os farrapos
de um velho toldo, ali em cima daquela estrutura de metal, ao lado de um bumbo
gigante e de uma retorcida antena parabólica. Bem onde à noite
piscava uma fagulha cor de sangue. A torre de rádio e TV de nossa cidade
era tão alta, tão imponente, tão sólida nas suas
esquadrias pintadas ora de vermelho e ora de branco, que era vista nitidamente
até dos sítios e fazendas. Com aqueles vários círculos,
que a molecada achava que eram bumbos do tamanho de casas, mais as várias
parabólicas, nós podíamos ouvir rádio e sintonizar
a Rede Globo. A torre trazia a voz do mundo até nós. A sua pintura,
que para nós era muito exótica, dizia o prefeito que era assim
para orientar algum aviador para que não trombasse sua aeronave contra
as esquadrias metálicas. Mas só mesmo um piloto bêbado para
guiar o seu avião para aquele fim de mundo.
O toldo verde da tenda da Doida destacava-se como uma folha viva durante o dia.
À noite a cabana sumia, mas ela estava ali em cima, a luz sinalizadora
era como o seu olho espião. Para nos esconder, precisávamos cerrar
as portas e janelas das casas, pois a Doida, debruçada no cercado do
topo, enxergava até mesmo os gatos e cães perambulando pelas ruas.
Mas nada do mundo escapava à Doida. Por viver ao lado de antenas, parafusos,
receptores e imãs, bastava ela ligar um arame no metal da torre que imagens
e sons chegavam às suas sucatas de televisores e rádios. O que
acontecesse no Planeta Terra ela sabia: um atentado terrorista na Espanha, a
morte de um cartunista norte-americano, a nova guerra no meio do deserto do
Oriente Médio, os robôs japoneses, o último discurso do
presidente da China, uma instalação feita de bicicletas enferrujadas
e garrafas pintadas na Bienal.
Poucas vezes a Doida desceu do seu refúgio aéreo. Nessas ocasiões,
nunca viam-na pendurada nas escadas. Num piscar de olhos, ela pisava as calçadas
com seus pés cascudos, em outro, já estava ela lá em cima
novamente. Nessas suas visitas, muitos moleques corriam subir no topo das mais
frondosas goiabeiras, ou se enfiar por meio dos matagais dos terrenos baldios,
pois as mães, usando a disciplina do medo do que não se vê,
contavam que a Doida perseguia e devorava crianças desobedientes que
não gostavam de comer feijão. Mas ela só percorria os quarteirões,
jogando um velho ioiô num eterno vaivém, sempre serena.
Ninguém sabia quando a Doida tinha aparecido, há quanto tempo
morava no alto da torre, seu verdadeiro nome, porque resolvera se isolar nas
alturas. Só lembravam dela jogando seu ioiô, com a pele curtida
de tanto sol, usando sobre o corpo somente um cobertor xadrez desbotado e esfiapado,
agitando os cabelos cor de palha, rebrilhando ao sol como se suasse em bicas,
mas exalando um aroma de incenso indiano, daqueles de missa de Natal. A Doida
não era nem menina e nem velha, tinha uma idade indefinível.
Uma vez, ainda um molecote que soltava pipa, caía de bicicleta e viva
com a tampa do dedão do pé dilacerada, cismei de subir na torre,
mesmo com as histórias da Doida, com o perigo de ser pego pela polícia
e pelo Conselho Tutelar. Encontrei-a sentada no chão em posição
de lótus, o reflexo das coxas roliças ofuscando meus olhos.
- Eu tenho a resposta para as suas perguntas e as perguntas para as suas respostas-
falou ela, abrindo os braços e inundando minhas narinas com seu cheiro
de missa- você veio me perguntar quem sou eu, não é?
Ela arrancou à força as palavras da minha boca. E veio me explicando
algo complicado sobre viagens no tempo, sobre uma infinidade de portais que
levavam ao passado e ao futuro espalhados pela cidade...que a janela para as
lembranças ou para as conjecturas poderia estar por entre as cornijas
e arcos da Matriz até nos buracos da rua de casa.
O tempo foi passando, fui perdendo o interesse por brincar de esconde-esconde,
por abrir com suspense os ovos de chocolate que vinham com miniaturas-surpresa,
por empinar pipas, por jogar licença-béti no meio da rua e por
pular feito pipoca quando via algum desenho japonês de pancadaria. Minha
acanhada cidade, aquela caixa de fósforos no meio do mato onde se amontoavam
quarteirões, onde só as luzes de mercúrio ficavam acordadas
de madrugada, continuava o mesmo fim-de-mundo, com algumas diferenças:
algumas vielas asfaltadas, algumas casas de outrora com o teto caindo, o reboco
arranhado, os portões enferrujados e as plantas grandes, antigos terrenos
baldios com construções levantadas, ruas com novos buracos, a
igreja da praça com nova pintura, os amigos altos, mudados, tomando cerveja,
trocando o estalo dos traques e bombinhas pelo cantar dos pneus. E eu longe,
morando fora, pois ali era terra onde nada ia para a frente, era morada somente
dos que esperavam a morte.
Desci do carro em frente ao alambrado da torre. Subi como da primeira vez, sem
me importar com a polícia, e encontrei novamente a Doida da Torre sentada
como um Buda, ainda cheirando a incenso.
- Eu sei muito bem o que pensa sem que me revele e sei o que me revela sem pensar-
falou ela, ajeitando uma dobra da manta que escorregava pelo ombro- o futuro
já se transformou em presente, mas ainda há umas migalhas de passado
por aí.
Saí como um louco, buscando o farelo do que já tinha sido e acontecido,
mesmo que ele estivesse amarelo, caduco e comido de carunchos. Entrei num bar,
cujas garrafas nas estantes e cujo retrato do time do Palmeiras ainda continuavam
os mesmos, pedi um ovo de chocolate daqueles que vem com surpresa. Saboreei
o doce, matando a saudade do cacau, e rapidamente montei um tosco centauro de
armadura espanhola esculpido em plástico e pintado a mão. Cortei
umas varetas finas de bambu, colei em folhas de seda, emendei vários
novelos de linhas de pesca e de costura, enrolei-os numa latinha de leite em
pó, e fui até a estrada de terra onde por várias vezes
tinha que esconder o cerol nas touceiras de mato e nos buracos de tatu-galinha.
Quando dei por mim, tinha acabado de "batizar" minha pipa, com a linha
toda desenrolada, formando uma barriga com o vento. Comprei um estilingue, assusteis
alguns pardais, derrubei um caga-sebo, estourei a lâmpada de um poste.
À noite, quando já estava escuro, dei pedradas em alguns gatos
ariscos e procurei pela mancha negra entre os cones luminosos de dois postes,
meu esconderijo preferido para ganhar nas brincadeiras. Deixei o asfalto e o
calçamento fritarem a pele de meus pés, florescendo várias
bolhas brancas.
Pela amanhã, ao acordar com os galos cantando, parecia que nevava em
minha cidade. Vários lençóis alvos flutuavam e cobriam
as casas e esquinas, deixando sua marca úmida nas samambaias e arrudas.
O nevoeiro só deixava enxergar alguns vultos de varandas, lixeiras e
fiações elétricas, além dos contornos das antenas.
A torre agora parecia só um risco negro. Parecia que tinham aspergido
incenso nas rótulas de todas as portas.
Só enxergava o esqueleto da minha terra, os rabiscos, os rascunhos com
marcas de borracha. Ali, obscura na bruma, não sabia se minha terra era
a de antes, se era aquela atual desde a hora do meu sono ou aquela depois do
tempo em que fiquei distante. Nenhum relógio se via na umidade da névoa,
nem as batidas do carrilhão da igreja se ouviam. Mas o nevoeiro, eu sabia,
brotava do topo da torre, de dentro da tenda verde, dos poros do corpo da Doida.
Num instante que jamais se conseguiria medir ou calcular, o tempo tinha parado.
Respirei fundo aquele ar gelado.