O nome que constava de seu RG e das faturas de suas contas era Antônio
Carlos alguma coisa, como tantos Antônios Carlos espalhados pelo mundo.
Como ele era diferente, chamavam-no "Bizorro". Não era besouro,
escrito e pronunciado certo, como também ele em nada lembrava o inseto,
pois não tinha carapaça, nem antenas e nem ocelos. Trabalhava
espantando os mesmos de cima das carnes frescas dos frangos que vendia. E vez
ou outra sempre apagava um cigarro aceso em um dos que encontrava caminhando
pelo balcão dos botecos.
O Bizorro também era conhecido pela sua terrível queda por um
rabo de saia. O terror das solteironas e encalhadas, sempre andava pela praça
com uma amante a tiracolo, algumas mais novas, outras de longa data, e mais
umas em fase experimental. Não era casado. Sobre as suas amásias,
rolava de bar em bar a famosa história do cano que Bizorro tomara uma
vez. Conhecera uma quarentona solteira e marcara um encontro com ela numa daquelas
pensões de vizinhança de rodoviária. Esperando-a numa alcova
cheirando a mofo, Bizorro tomou uma pílula de Viagra, para que assim
que ela chegasse a espada já estaria desembainhada. Pois bem, esperou,
viu o tempo passando no relógio, quatro, cinco, seis, sete horas da noite,
e nada, o taverneiro lhe importunando para incluir na sua conta uma diária
extra.
Os colegas juram ter visto Bizorro voltando para casa a pé, curvado para
baixo, trôpego, as pernas juntas comprimindo o ventre, parecendo um corcunda
atacado duma dor-de-barriga fatal.
- Ô Bizorro, aquele dia cê passou apertado, hein?
- É mentira isso aí, acha que é verdade, isso não
aconteceu não! Cês tão inventando, nem conheço essa
mulher que vocês falam e nem tomei esse remédio aí!
Bizorro também era muito desconfiado. Era capaz de lavrar um BO acusando
a própria sombra de perseguição.
- Bizorro, tô de olho em você, hein?
- Mas de olho por quê, eu não fiz nada! Não tem que ficar
de olho em mim não, acha, quem deu ordem pra isso?
- Ô Bizorro, toma jeito...
- Tomar jeito do quê, não faço nada de errado, sou honesto,
não tenho inimigo, não devo nada pra ninguém!
- Nem vou falar nada...
- Mas não é pra falar mesmo, uai, que que cê ia falar de
mim aí?
Bizorro deixou saudades, pois todo dia de manhã vinha ele ao bar para
tomar um café bem preto, fumegando, coado na hora. Bebia café
como se fosse água gelada, tanto que tinha até mesmo um bule só
seu, que tinha uns desenhos de plantações, duma casa de fazenda
e dum trator, guardado junto à louça do boteco, que já
era chamado de "Bule do Bizorro". Um belo dia, quando o balconista
acabava de filtrar o café do dia, com o recipiente já cheio do
líquido escaldante, chegou aos seus ouvidos a fatalidade: Bizorro tinha
falecido àquele momento, o coração machucado pelo fumo
e pela bebida. Acordou com um vácuo gelado no peito, a amante da ocasião
o levou ao hospital cantando os pneus de seu Kadett, mas mesmo com os choques
dos médicos, ele não resistiu.
Em luto, nenhum dos fregueses se atrevia a abrir uma cerveja ou a jogar uma
cacheta. A casa fechou antes de escurecer, a fim de prestar as últimas
homenagens a um de seus mais queridos frequentadores. O café que
estava no bule foi dividido entre os vários amigos de Bizorro, numa forma
de homenagear o companheiro. O recipiente de onde bebia, em sinal de respeito,
foi deixado a um canto da despensa, no alto dum armário, envolvido por
um pano de prato. Ninguém, além de Bizorro, tinha o direito de
beber o café dali.
Lendas surgiram em torno daquele bule. Se alguém colasse o bico no
ouvido, poderia ouvir o vento ecoando dentro dele, junto com a voz sumida do
Bizorro. Diziam também que, todos os dias, sempre na hora em que ele
chegava para tomar da sua xícara, o bule, mesmo vazio, esquentava espontaneamente,
soltava fumaça e cheirava a café. Um dia, um dos balconistas disse
que, ao varrer a despensa, vira no chão gotas negras, que escorreram
do bule. Por isso ninguém ousava falar mal de Bizorro, pois se conta
que um dos bêbados vira o recipiente soltando fumaça quando ele
reclamara do defunto e outro, depois de ficar uma noite inteira desancando o
falecido, foi alvejado por um bule idêntico àquele quando voltava
para casa. Por essas e outras, o dono do bar sempre cuidava de lavar periodicamente
o bule, para evitar a revolta de uma assombração.
Estava com o bule secando ao lado quando o rapaz entrou. Não era nenhum
malandro pé-rapado e feliz como o Bizorro, pelo contrário, era
um rapaz novo, bem-vestido, os cabelos espetados e o topete pontudo rebrilhando
de gel, com cara de rico. Puxou duma banqueta, pediu um rabo-de-galo, começou
a entorná-lo petiscando umas salsichas no vinagre. Chamou o dono e começou
a relatar as suas mágoas de bêbado triste: - Ela nem quer saber
de mim! Eu tento chamar a atenção dela de todos os jeitos, tento
agradar, ela nem se importa, me ignora, faz que não me conhece! Mas por
que as coisas têm que ser assim, eu gosto tanto dela, arrasto um caminhão
de melancia!
Chorava e bebia sem parar. Depois arriscou uma xibóca. Experimentou uma
dose de Cynar com bastante gelo. Um uísque vagabundo. Terminou no licor
de fios de ovos e na farmácia, beberagens extremamente agressivas para
alguém que ainda tinha o fígado jovem. De tão embriagado,
começou a beber da água da pia, aproveitando que o balconista
tinha saído. Já pingava da cabeça aos pés quando
percebeu que aquele bule ali ao lado era muito mais prático. Com ele
cheio d'água, virou-a goela abaixo, tomando direto do bico. Quando o
dono do boteco percebeu, o bule estava vazio novamente.
- Cê bebeu água nesse bule?
- Xim, elhe tava aí preto i ieu peguei, enchi di água, i bebi!
Maish eu num tô beudo não...
A qualquer momento, o garoto ia vomitar e desmaiar, para suportar uma quantidade
daquelas de álcool só mesmo o saudoso Bizorro. Mas num piscar
de olhos ele se recompôs e, sem ressaca, andando com as pernas firmes
no chão. Socou o balcão e pediu, com a entonação
exagerada do Bizorro:
- Me vê aí uma paçoquinha e um bolovo que eu tô precisando
de energia pra dar conta da mulherada!
A receita da potência! O garoto saboreou o ovo empanado e o tablete de
doce de amendoim e, depois de um trago de cachaça, pegou o pandeiro e
começou a batucar um samba qualquer. Para se ter uma habilidade daquelas
com o instrumento, só mesmo o Bizorro.
O garoto passou a vir ao bar todos os dias, sempre para tomar uma dose, ou para
saborear um bolovo com um tablete de paçoca. Nas jantas de sexta-feira,
ele se oferecia para matar e depenar as galinhas. Sem pensar duas vezes, ignorando
as bicadas e esporadas, pegava a ave pela cabeça e, sem se apiedar pelos
guinchos do animal, torcia-lhe o pescoço dum tranco só, estalando
o osso. Depois a punha de ponta-cabeça, amarrada nas calhas, decepava-lhe
e deixava o sangue escuro esguichar na bacia. Arrancava suas plumas com a mesma
velocidade com que o Bizorro encontrava as pequeninas penas encravadas.
Não havia dúvidas de que o Bizorro tinha renascido mais jovem,
ali entre eles. Tanto que o bule deixou de ser assombrado e agora preparava
toda as manhãs o café do ressuscitado. Um dia, enquanto lhe enchia
a xícara, o dono resolveu fazer um teste:
- Olha, tô de olho em você, toma jeito, rapaz...
- Mas tá de olho por quê, não faço nada de errado,
sou honesto! E tomar jeito do quê, não fiz nada...
Mas constatou que o Bizorro tinha nascido novamente quando ouviu do próprio
pai do garoto, senhor endinheirado que sempre trocava de carro e tirava férias
na Argentina, que o doido do seu filho não queria mais saber de estudar
numa universidade, ele agora queria mesmo era vender frangos.
Tal qual o falecido, ele também tinha uma gama múltipla e bem
sortida de amantes. Tinha tomado o lugar de seu antecessor como o anjo salvador
das solteiras encalhadas e das viúvas melancólicas.
Mas de todas elas, a mulher que lhe roubou o coração de boa-vida
fora a Jana, uma mulata de dezoito anos que fazia a faxina no seu casarão.
Soube-se, um tempo depois, que mesmo tendo idade para ser filha, a menina já
tinha andado no Corcel decrépito de Bizorro. E agora quem se emaranhava
nos seus brilhantes cabelos encaracolados era o Bizorro jovem e rico. A empregada
mal conseguia concluir o serviço direito, pois mal começava a
lavar a cozinha e vinha lá seu amante lhe abraçando por trás,
pregando-lhe um susto ao envolver-lhe a cintura. Desastrado, acabava sempre
derramando um balde de água na sua camiseta e, admirando os bicos salientes,
derrubava-a no chão úmido e ficavam lá os dois fazendo
espuma e bolhas de sabão.
Lógico, esse namoro dos dois em pouco tempo chamou a atenção
do Quebra-Queixo, que sempre se considerou o senhor de Jana, mesmo nos tempos
do Bizorro velho. Rodeando o quarteirão do sobrado com sua bicicleta
e levando um pedaço de ripa nas mãos, ele sabia que ali dentro
daquela casa de burguês a sua mulher estava nos braços do pequeno
milionário.
Quebra-Queixo honrava a alcunha por dois motivos. Um, porque ele adorava o
doce desde pequeno, vivia azucrinando a avó para que ela lhe preparasse
um tacho, para que, com a alegria dum moleque se lambuzando, ele se fartasse
até dar dor-de-barriga. Outro, porque Quebra-Queixo derrubara numa única
noite vinte alunos na sua escola que lhe quiseram ameaçar. Num deles,
falta um pedaço de língua até hoje.
Trabalhava o dia inteiro dirigindo tratores, e naquele momento ninguém
sabia distinguir de qual máquina era a tração, uma vez
que Quebra-Queixo tinha quase o tamanho do veículo. Chegava em casa cansado
e, quando corria para os braços de Jana, sempre a encontrava com sono,
uma nova doença talvez, que deixava marcas rubras de chupões no
pescoço.
- Olha, Jana, eu sei que cê tá andando com o riquinho lá!
Se eu pego aquele chaveirinho magrelo que anda te catando, eu quebro ele no
meio!
- Larga mão, Quebra, cê é nervoso só porque ele é
menor que o Bizorro, se fosse ele, você afinava, né, dava pra trás,
né? E larga mão de ser machista que eu não que nem os seus
amigos da mesa de baralho!
Um dia, o garoto resolveu presentear sua amada com uma mesa de madeira de lei,
cheirando a verniz de tão nova, pois a menina reclamava que a da sua
casa já estava rachada e com os pés calçados com tocos.
Comprou o móvel e, assim como o Bizorro tivera feito com uma de suas
antigas amásias, levou a mesa dentro do ônibus circular. Ao largá-la
sobre o corredor, teve que aguentar os protestos do motorista e do cobrador,
além de brigar com todos os passageiros que ousassem se apoiar nela durante
o trajeto. Chegou na casa de Jana e, jogando a mesa pelos fundos e pulando o
muro, pegou-a de surpresa na cozinha, enquanto ela enchia de sementes a cuia
do papagaio.
De tão agradecida pelo presente, a mulata lhe agarrou pela camiseta e
o arremessou sobre a sua cama, e quase arrebentaram o estrado com seus pulos.
Amaram-se tão violentamente, com tanto entusiasmo, que até saíram
doloridos da brincadeira. Porém, alguém os esperava no portão.
Quebra-Queixo.
- Peguei você no pulo, vagabunda! e puxou Jana pelo braço, derrubando-a-
e você, seu magricelo filho duma puta, lazarento, vou te partir as fuças!
- Tua bunda que vai! chamou Quebra-Queixo para a luta, como Bizorro fazia, ele
que não tinha medo de homem folgado, de marido louco de raiva e de ameaça.
O espancamento foi tão brutal que até mesmo os vizinhos tiveram
que interferir, antes que saísse alguma morte. Jana gritava e chorava,
enquanto seu amante era desmontado pelo rival. Levaram o garoto ensanguentado
para o posto de saúde, e surpreenderam-se ao ler o nome de seu pai na
carteira de identidade. Fora transferido então para o hospital mais caro,
levado numa UTI móvel que seu pai pagara do próprio bolso. Já
no leito, por entre canos de soro, eletrodos, agulhas, algodões, caras
brancas de enfermeiros, tubos de oxigênio, ele sentia suas forças
se esvaírem, como se escoassem para o Além. Chamaram o médico,
saltava no colchão com as cargas do desfibrilador. Foi quando ouviu um
som de órgão, um canto celestial daqueles natalinos, e os familiares,
os enfermeiros de branco e o médico ficaram congelados. Uma bola de luz
entrava pela janela aberta, arrastando as persianas com um pé-de-vento,
e dessa esfera brotou um anjo que parecia de porcelana, tão brilhante,
os cabelos longos cobrindo sua face feminina...viu que ele lhe puxava a alma,
mas aquela sombra que saía de seu corpo não era a sua, era o Bizorro,
que dava um tapinha na nuca do anjo e lhe puxava as penas das asas, como se
estivesse troçando dele.
- Mas cês me acharam, hein? Eu tava gostando de viver novamente, mesmo
escondido no corpo dos outros...- ria o Bizorro.
Por um momento, sumiram todos os sinais vitais do garoto, mas depois de uns
momentos de choque ele voltou a respirar, o coração pulsando normalmente.
Naquele segundo, o bule guardado no bar rachava e se despedaçava sem
que ninguém o tocasse.
Jana continuou trabalhando na casa dele, mas se safou da faina com duas licenças,
uma pelo seu casamento com Quebra-Queixo e outra pela sua gravidez. Já
o garoto, este fora fazer um intercâmbio na Austrália e lá
trocara os lençóis com uma coreana rica, filha dum empresário
do ramo petrolífero.