Seu Jerônimo era um velho só que vivia num casebre isolado,
numa rua isolada de um bairro isolado, numa cidadezinha isolada. Só, mas nem
tanto. Havia, claro, seus conterrâneos e um ou outro contemporâneo que, quando
lhe cruzava o caminho, cumprimentava-o muito gentilmente. Era uma pessoa
querida na vizinhança. Baixinho, magricelo, beirando seus oitenta e quatro
anos, trabalhara a vida toda na roça e agora curtia sua míngua aposentadoria,
mas que dava para garantir-lhe o pão e o café todos os dias.
Naquela manhã de domingo estava arrumando-se de modo
especial para sair, uma ocasião importante o aguardava. Levantou-se cedo, tomou
um longo banho, barbeou-se, passou o pente nos fios de cabelo que lhe restavam,
limpou a dentadura e foi para o quarto. Lá, escolheu seu mais belo terno.
Estava meio amassado, mas não iria perder tempo passando porque já estava em
cima da hora. Vestiu-se, banhou-se no seu perfume de alfazema e calçou seus
sapatos pretos brilhantes número trinta e cinco. Todos os domingos eram assim:
ia até o centro da cidade comprar o jornal, mas no meio do caminho daria uma
pausa para realizar seu verdadeiro intento. Por essa razão o domingo já
amanhecia encantador. Todos os sons eram bem vindos, por mais irritantes que
fossem a outras pessoas. Se o vizinho estivesse batendo com o martelo do outro
lado da parede de seu quarto ele aproveitava o ritmo das marteladas para já
levantar da cama dançando, dando giros com os olhos fechados, abraçado ao
travesseiro. O café poderia estar até sem um grão de açúcar, mas descia
saboroso feito mel. Se encontrasse o sofá ou a tv com excreção de seus gatos,
ele os chamaria para o colo, alisaria suas cabeças e diria: “danadinhos...”
sempre num tom amoroso e complacente. Nada, portanto, tirava o bom humor de seu
Jerônimo nas manhãs de domingo. O céu sempre estava mais azul, os passarinhos
estavam cantando mais alegres, até a vizinha que nos dias normais lhe parecia
uma bruxa, nos dias de domingo, sem que ele compreendesse, parecia-lhe quase
uma branca de neve. Digo quase porque, mesmo a imaginação, nesses casos, tem um
certo limite.
Já estava pronto. Deu uma última olhada no espelho, passou
novamente o pente. Tudo em perfeita ordem.
Saiu caminhando lentamente pela calçada. O dia estava belo.
A maioria das casas por onde ele passava oferecia aos olhos sequiosos dos
transeuntes o charme e a delicadeza de seus jardins, flores de todas as cores e
desenhos espremendo-se num espaço exíguo, algumas se precipitando muro a fora.
Mas todas belas, conferindo à cidade feia, monótona e sem graça, sua vivacidade
natural. Seu Jerônimo andava sempre assim, comendo durante o percurso todos os
jardins de todas as casas. Quando via que seus passos eram mais ligeiros que
sua ingestão e que, consequentemente, no próximo jardim ainda estaria de boca
cheia, ele então parava por alguns instantes e ia mastigando cuidadosamente
cada flor, uma a uma, retirando de cima delas os possíveis beija-flores e
insetos. Terminada a refeição, partia para a próxima casa. Mas nem só de
jardins vivia seu Jerônimo. Seu cardápio era diversificado. Quando via crianças
na rua, mesmo aquelas magricelas e pálidas que eram a maioria em sua cidade,
mas que lhe abriam sorrisos, ele também os devorava apressadamente. Às vezes
ficava inculcado, indagando-se se não cometera um ato de crueldade ao devorar
justamente uma das únicas coisas que as crianças pobres e subnutridas de sua
cidade ainda possuíam: aqueles sorrisos amarelos que queriam desenhar-se
felizes. Mas logo se convencia que não, não cometera maldade nenhuma, afinal,
ele também necessitava daqueles sorrisos e, caso fosse necessário ele pedir
expressamente a qualquer daquelas crianças um sorriso para ajudar um pobre
velhinho, com certeza nenhuma delas se recusaria a dar. Assim prosseguia seu
Jerônimo, alimentando-se dos jardins, dos sorrisos de criança, e também do azul
do céu, de todas as nuvens, das árvores frondosas, de tudo que a natureza
poderia proporcionar-lhe na altura de sua idade. Mas o prato principal, o
alimento indispensável de sua alma, a sua fonte de proteínas e carboidratos, de
fibras e minerais, de energia vital, ainda estava por vim. Estava um pouco mais
à frente, mais precisamente na casa amarela da rua Sto Antônio, número oito, em
frente à padaria de seu Sebastião. Era lá que seu Jerônimo encontraria a razão
fundamental de sua alegria e tamanha disposição. Era lá que o objetivo seria
alcançado, que o desejo não seria frustrado, coisas que a uma certa altura da
vida podem ser classificadas como privilégio.
O fato é que seu Jerônimo há muito cultivava um sentimento
nobre para com Rosalva, a moça da casa amarela da rua Sto Antônio. Falo nobre
porque não se tratava necessariamente de um sentimento malicioso, erótico. Na
presença de Rosalva o sentimento, aliás, era de muito respeito e ele fazia
questão de demonstrar isso. Ela não era seu alvo matrimonial. Era apenas uma
jovem senhorita de seus vinte e poucos anos que representava para ele várias
coisas, embora eu nunca as tenha descoberto totalmente...
Seu Jerônimo seguia com seus passos lentos em direção ao
centro e ia contanto as casas até chegar à rua Sto Antônio. Logo do início da
rua ele já enxergava a casa amarela que se destacava das demais por sempre
estar com a pintura nova. Foi numa dessas manhãs de domingo que seu Jerônimo
conheceu Rosalva. Na ocasião, ele encostou-se justamente naquela parede,
cansado que estava, e resolveu bater à porta para pedir um copo d’água. Quem
saiu ao seu encontro foi a bela moça que o atendeu com toda educação. Os dois
ficaram ainda algum tempo jogando conversa fora. A partir daí, seu Jerônimo
decidiu implantar como hábito rigoroso a visita a Rosalva em todas as manhãs de
domingo quando saía para comprar o jornal. A moça com toda gentileza, muitas
vezes o convidava para entrar e os dois ficavam ali na varanda conversando enquanto
ele recuperava as forças para continuar sua peregrinação. Existem pessoas
idosas que sentem uma certa dificuldade de conversar com os mais jovens. Mas
com seu Jerônimo era diferente. Além de ser um homem muito comunicativo e
brincalhão, tratou logo de captar o universo ao qual pertencia à moça e
levantava sempre assuntos pertinentes. Os dois, a certa altura, conversavam
quase feito dois jovens, totalmente entrosados e divertiam-se muito. Era
importante para seu Jerônimo sentir-se jovem. O olhar que dirigia à moça era
sempre aquele olhar de quem tentava recuperar nos lugares mais longínquos de
sua falha memória lembranças de sua juventude. Juntava às suas poucas
lembranças a leveza e exuberância de Rosalva que lhe eram concretos, estavam
ali na sua frente a poucos centímetros. Essas imagens misturadas estimulavam
alguma área de seu cérebro e lhe proporcionavam deliciosas sensações. Era
quando abria aquele sorriso saudoso, contemplativo, quase bobo. Se não fosse o
cansaço que sentia e as rugas que via no corpo juraria a Rosalva e a si ter
dezoito anos.
Mas havia naturalmente também a questão hormonal. Como já
explicado, seu Jerônimo não tinha intenção maliciosa para com a menina. Mas,
percebia-se, ainda que vagamente, a apreciação em seus olhos como duas
pedrinhas de brilhante. Rosalva era, de fato, uma jovem muito encantadora.
Mulata, cabelos de índia que desciam até a cintura, olhos pretos arredondados,
lábios desenhados à mão e um nariz de princesa de contos de fada. Era uma
figura, diga-se, emocionante. A admiração devotada à jovialidade da menina
confundia-se com a que ele destinava às suas formas e expressões. Mas era uma
admiração sempre disfarçada sob o temor de ser mal interpretado. Mesmo assim,
era quase impossível disfarçar a emoção que o velho sentia quando abraçava a
mulata. No aperto, tremia-se, bafejava, sentia o coração acelerar e a pressão
subir. Esses sinais não eram exagerados, mas a menina percebia e até achava
graça. Se permitisse, seu Jerônimo ficaria ali abraçado até o pôr do sol. A caminhada
de ida e volta ao centro da cidade era compensada por esses momentos,
principalmente quando abraçava, pois era aí que o velho descobria-se ainda
vivo, sentia-se novamente homem, relembrava os momentos mais prazerosos que
tivera em sua vida, sentia a energia em forma de calor percorrer-lhe todo o
corpo. Abraçar a mulata Rosalva era, portanto, um gozo e uma terapia para seu
Jerônimo, cujos efeitos se estenderiam por quase toda a semana.
Tão forte era o hábito do velho bater à porta da menina nos
domingos pela manhã, que por volta daquele horário já presumido ela saía até a
varanda e por ali ficava como que aguardando a chegada do amigo. Ele sempre
trazia um presentinho, geralmente um chocolate ou uma barra de doce de leite. A
menina agradecia com um sorriso e um abraço (era o abraço extra). Mas seu
Jerônimo não usava o doce como uma moeda.Não. Era um gesto honesto e sincero. O
abraço era uma consequência de que ele não fazia questão de fugir, mas não era
seu objetivo final. Ele sentia-se na verdade feliz na felicidade dos outros e,
principalmente, na de Rosalva. O velho gostava também de contar muitas
estórias, estórias do tempo em que era criança, que era jovem, que trabalhava
na roça. Contava tudo o que tinha feito e desfeito durante seus longos anos de
vida. A moça sempre o ouvia com toda paciência que o mundo lhe concedera.
Nesse presente dia, quando seu Jerônimo apontou na esquina
não enxergou mais a casa amarela. Em seu lugar viu na verdade uma casa azul.
Estranhou. Consertou os óculos no nariz e verificou atentamente se a casa era a
mesma que ficava em frente à padaria de seu Sebastião. Era. Curioso, começou
então a adiantar os passos. Queria inteirar-se da novidade. Observando melhor,
concluiu que o azul caíra até bem. Teria sido uma ótima ideia de Rosalva e ela
receberia seus parabéns.
Chegou até a porta. Rosalva não estava na varanda. Ele pôs o
doce de leite do lado e bateu palmas. Para sua surpresa, lhe saiu uma senhora
que nunca vira antes na vida. Seu Jerônimo sentiu um frio no coração. Teve medo
de que a moça não morasse mais ali. Mas, talvez não, poderia ser uma tia de
Rosalva que estava ali por esses dias. Poderia ser uma parenta qualquer afinal.
Poderia ser até a vizinha de quem ele nunca notara a existência. Enquanto
isso,a mulher olhava para seu Jerônimo aguardando suas palavras. Mas só via uma
cara de espanto com aquele olhar conflitante. O velho então tomou coragem,
abriu a boca e proferiu a pergunta fatal. A resposta veio imediata, sem
hesitação, porém os ouvidos e coração do velho teimaram em aceitar. Os ouvidos
na verdade criaram mãos que empurravam a notícia com toda força para fora. Eram
várias mãos que se multiplicavam à medida que os segundos passavam. Mas não
foram suficientes. A resposta da mulher que segurava uma colher de pau e
cheirava a frango, conseguiu romper a barreira e implantar-se definitivamente
no cerebelo de seu Jerônimo. O velho estava agora plenamente consciente. A
dúvida cessara. Mas seu coração rejeitava tamanho sofrimento. Despediu-se da
mulher com uma feição de desalento e foi caminhando arrastando os passos de
volta para casa. Esquecera o doce de leite e até o jornal. O doce a mulher
aproveitou. Serviu de sobremesa para as crianças. O jornal não teria tanta
importância. Embora cultivasse o hábito de ler e gostasse de manter-se
informado, aquelas notícias não teriam mais tanta utilidade. Poderiam ficar por
lá mesmo penduradas na banca de seu Tibério, expostas à poeira e às mocas. Esse
foi um dos dias mais tristes na vida de seu Jerônimo. Pouco a pouco, o azul do
céu foi se tornando cinzento. As árvores antes frondosas pareciam agora
murchas. As nuvens eram de qualquer coisa, fumaça talvez, mas não de algodão.
As crianças já não eram apenas magricelas e amarelas, eram como caveirinhas
desfilando nas ruas. Mas o pior foi os jardins. Os jardins de todas as casas,
de todas as ruas pelas quais seu Jerônimo passava em suas caminhadas sublimes
de manhãs de domingo. Os jardins embora continuassem coloridos, estavam agora
sem vida, como se de plástico fossem. Seu Jerônimo nunca aprendera a comer
plástico e não seria agora que o faria. A cidade que já era feia agora parecia
um cemitério. Passou-se um ano e seu Jerônimo não encontrou mais nenhuma outra
Rosalva. Nenhuma outra mulata que lhe ouvisse as estórias e lhe oferecesse seus
braços. Decidiu isolar-se ainda mais. O velho passou a ver cruz em tudo que era
esquina, na frente das casas em cima dos muros, no alto da serra. Passou a ver
almas. Todo mundo pra seu Jerônimo era alma. Acordava de manhã e o café mesmo
agora com todo açúcar do frasco continuava amargo. As marteladas do vizinho não
eram mais ritmo pra sua valsa. Explodiam agora feito bombas nucleares em sua
cabeça. Seu Jerônimo deixou de comprar perfume. Os ternos foram abandonados.
Quase não tomava mais banho nem fazia a barba. Ficou mais magro do que já era,
mais pálido do que já era. Quando saía quase não acertava mais o caminho de
volta. Outras vezes parava e ficava falando sozinho no meio da rua.
A idade e a ausência insubstituível da amiga levaram seu
Jerônimo a um estado do qual não sairia para mais nenhum outro, exceto para o
de defunto. Nenhum parente apareceu para visitar sua cova. Só os amigos do
sanatório ficaram com saudades daquele velho que todo domingo saia de um quarto
a outro, acreditando estar indo comprar jornal e visitar uma bela jovem chamada
Rosalva.