A Garganta da Serpente
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Dispensado

(João Gabriel Doria)

Roberto estava louco para chegar em casa, tirar o terno e tomar um banho. Hoje a casa seria só dele. Sua mulher estava numa viagem oficial e só voltaria no fim do mês, isso lhe daria ainda duas semanas sozinho. O que ele achava ótimo. Não que ele não gostasse de ficar com ela, é que ela era muita mulher para ele. Inteligente, bonita, sexy e Ministra de Relações Exteriores. Ele simplesmente se sentia muito inferior a ela. Aquele tempo sozinho serviria para ele tomar as rédeas da sua vida.

Já em casa, com o terno sobre a poltrona, uma cerveja na mão, Roberto liga a secretária eletrônica. – bip – “Beto, preciso falar contigo. É importante. Me encontra no bar do Bola amanhã. Até.” O que será que o Pontes queria com ele de tão importante. – bip – “Querido, provavelmente vou voltar mais cedo. A Imperatriz da Áustria está doente e não poderá me receber. Semana que vem devo estar em casa. Vai ser ótimo sair desse frio glacial aqui de Londres. Um beijo.” Ângela voltaria mais cedo, não que Roberto se importasse realmente. Sua liberdade, porém, tinha sido reduzida em uma semana. Não era muita coisa pra quem vivia num casamento daqueles, Roberto não estava acostumado com a liberdade.

– Aqui está. Eu vou dar uma saída rapidinho e já volto. Vocês fiquem a vontade.

– Valeu, Bola

– Pontes, você vai me contar por que me trouxe aqui ou não? Eu tenho uma conta na qual eu deveria estar trabalhando agora, mas eu estou aqui.

Os dois homens estavam sozinhos nos fundos do Bar do Bola. Uma garrafa de cerveja sobre a mesa, dois copos. Um já embriagado, o outro sem ter tomado um único gole. Os cantos sujos do recinto indicavam para Roberto que a conversa não seria fácil. Uma barata passava por baixo de uma estante quando Pontes finalmente se manifestava.

– Eu preciso de você, meu amigo. Tenho uma missão a cumprir e, sem você, ela não vai ser bem sucedida.

– E que missão é essa? Desembucha!

– Eu tenho que salvar os homens do Brasil. Talvez você ache que eu posso estar louco, mas espere eu terminar minha explanação para tirar sua conclusão quanto a isso, sim?

– Claro.

– É um caso complicado, Beto. Que envolve todos os homens e mulheres do planeta na verdade. Temos em nossa sociedade matriarcal, um grande problema, existem dois sexos na espécie humana. Sem um o outro não consegue se manter. É uma simples questão biológica. A espécie humana tem vivido com esse problema desde os seus primórdios. Quando, até a idade Média, os homens eram os soberanos as mulheres eram relegadas a uma inferioridade descabida. Não tinham direitos e precisavam se sujeitar aos maiores abusos. Isso devido a sua menor força física, já que os homens usavam de artifícios brutais para manter seu poder. Quando, enfim, na Idade Moderna as mulheres começaram a se impor mais fortemente nos meios de poder da sociedade, todos tiveram que mudar de tática, a simples força bruta não adiantava mais. O dinheiro e perspicácia dos aristocratas faziam a principal diferença no balanço do poder. As mulheres passaram a ter muita influência e ter cada vez mais poder culminando quando, já na nossa Idade Contemporânea, elas finalmente conseguiram a supremacia e nunca mais a perderam. A tecnologia fez da força bruta algo insignificante na retenção do poder ma sociedade. Os homens foram relegados a um segundo plano, como as mulheres na Idade Média. Vivemos em uma sociedade matriarcal onde são as mulheres que tomam as decisões e os homens ficam apenas olhando e obedecendo. Somos meros peões a mercê das rainhas.

– E o que isso tem a ver comigo?

– Cara, você prometeu esperar eu acabar!

– Tudo bem, manda ver.

– Como eu dizia no início, o grande problema dessa sociedade é a diferença dos sexos. Quando o homem detinha o poder sobre as mulheres, a espécie não estava em perigo. O homem nunca iria se desfazer de todas as mulheres pois somente elas podem gerar os filhos e filhas da espécie. Não existiria Homo sapiens se as mulheres desaparecessem. Minha pergunta é: será que no caso atual, onde as mulheres controlam tudo, a espécie se perpetuaria se os homens desaparecessem.?

– É claro que não. É preciso um homem e uma mulher para fazer um bebê. Isso é uma informação básica. Qualé? Você não foi a escola não, Pontes?

– Eu não estou brincando Roberto. E devo corrigi-lo pois sua resposta está incorreta. O certo seria: o homem é dispensável.

– Como!? Cara, você realmente bebeu demais. Acho melhor a gente parar com essa brincadeira. Vem que eu te levo pra casa. – Roberto já se levantava, pegando o amigo pelo braço para ajuda-lo a levantar, quando, sem nenhum aviso, Pontes se levanta de um pulo fugindo das mãos do companheiro e gritando.

– NÃO! Você vai ter que me ouvir! O homem é dispensável! Eu estou te dizendo a verdade!

– Então me explique como isso é possível. Vamos ver se você me convence.

– Você sabe o que a sua esposa foi fazer na Europa? Não importa o que ela disse pra você, ou o que foi divulgado na mídia. Essa não é o verdadeiro motivo da viagem. Uma companhia de pesquisas biológicas na Alemanha conseguiu o que todas as mulheres do planeta ansiavam a décadas. Uma forma de tornar o homem dispensável. Tudo o que o homem faz as mulheres podem fazer, com uma única exceção. O homem é o único que pode produzir um espermatozóide. Sem ele não existiria nenhuma prole. É por isso, e por isso exclusivamente, que as mulheres nos toleram. E agora nós não somos mais necessários para a produção de descendentes.

– Mas como pode isso? E o que diabos a Ângela tem a ver com isso?

– Ela foi se encontrar com as cientistas que desenvolveram a pesquisa.

– Que pesquisa?

– Como fazer dois óvulos, gametas femininos, se fundirem e formarem um novo indivíduo.

– Isso não é impossível?

– Não mais. Eu não sei realmente qual o processo, mas o que interessa é que funciona. A reprodução fêmea-fêmea será implantada e não nascerá mais homens. O sexo masculino está fadado a extinção.

– Não pode ser verdade.

– Mas é. A não ser que nós façamos alguma coisa para impedir. E você é muito importante nisso tudo.

– Como?

– Você pode ter acesso ao computador da sua esposa e entrar no sistema do governo. Ali você vai descobrir qual é a equipe de cientistas que desenvolveram a pesquisa. Deve existir algum registro do encontro em algum lugar, ele não era secreto. A partir da sua informação eu e meus homens vamos agir e destruir todos os indícios de que essa pesquisa existiu. Seremos necessários de novo e vamos enviar uma mensagem ao mundo. Nós não estamos aqui para sermos desprezados. Um dia ainda vamos reconquistar nossa supremacia, Beto. É por isso que eu me esforço. Uma grande rede de militantes pró-homens se expande pelo mundo inteiro. Temos milícias em muitos países, tropas que lutariam sem pestanejar contra qualquer inimigo. Nossas vidas dependem disso, Beto.

A porta da sala se abre com um estouro enorme. Granadas de gás voam pelo vão enquanto um grupo de elite invade o recinto equipado para a mais perigosa das missões. Quase que instantaneamente Pontes é imobilizado e retirado do local. Roberto fica sem ação, com os olhos em chames devido ao gás. Em um estado alterado de consciência vê tudo como se num sonho, uma sonho mau, mas ainda assim um sonho.

Quando seus olhos param de arder e sua mente volta a normalidade, só então, ele enxerga a mulher sentada na cadeira onde antes repousava Pontes.

– Ângela!? Pensei que estivesse em Londres? O que você está fazendo aqui? E o que significa tudo isso?

– Calma, querido. Não se excite demais. Se quiser, e eu acho que é melhor, pode ir pra casa e descansar ele não vai mais incomodar você. Isso já foi arranjado.

– O que você quer dizer com isso? O que vai acontecer com o Pontes?

– Não pense mais nisso, Roberto. É melhor pra todos assim, e principalmente pra você. Vá pra casa, descanse e nunca mais pense no que foi falado nessa sala hoje.

Ângela levantou-se e saiu da sala deixando Roberto sozinho. Ele não entendia nada do que estava acontecendo. Era a coisa mais maluca que ele já viu em toda a sua vida. O que aconteceria com Pontes? Como ele podia esquecer o amigo? Roberto também se levantou e saiu. Viu o carro da esposa parado em frente ao bar e decidiu voltar com ela para a casa. Ângela tinha sido bem enfática de que ele tinha que esquecer de tudo. Será que conseguiria? Ele não sabia. O sorriso dela ao vê-lo entrar no carro, porém, fez com que por uma fração de segundo esquecesse mesmo de tudo. Quem sabe com o tempo ele não esquecesse realmente de tudo?

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