A gaivota pairou sobre o jardim e ninguém reparou na graciosidade do
seu planar, tão suave, tão diferente do frenético bater
de asas dos pardais, dos pombos, da passarada urbana do costume, acelerada e
barulhenta.
Pais e filhos, os mais novos com o olhar alienado pelas furiosas explosões
no monitor da consola, os mais velhos de olhos postos no vazio e cabeça
na última linha de um extracto de conta que lhes denunciava excessos
e prenunciava tormentas. Mas ninguém naquele oásis verde no meio
do betão reparou na gaivota que se deixava embalar pelo vento, silenciosa.
Uma ave apenas, igual a tantas outras. Tão vulgar que não lhe
notavam a presença elegante mas bizarra, tão longe do mar ela
voava.
O velho marujo reformado encostou-se ao beiral da varanda para fumar um cigarro.
Melancólico e desagradável, tornara a vida da família num
inferno. Até ao dia em que a tripulação daquele barco meio
naufragado se fez a outros mares em busca da bonança que lhes negara
anos a fio. Ficou só. Ao leme inútil de uma embarcação
sem rumo, de uma existência encalhada na saudade mal contida do cheiro
do mar.
Arriscou a vida para salvar a de um colega, numa noite de ira dos deuses e das
águas com que queriam afogar o mundo inteiro num devastador temporal.
Viveu o outro mais alguns meses para acabar destroçado na traseira de
um camião. E ele, herói por um dia, deixou na borrasca a perna
e a alegria em troca de uma pensão de miséria e de um apartamento
minúsculo num bairro social a quarenta quilómetros do oceano.
Agora, apoiava numa prótese barata o corpo que restava e lhe suplicava
todos os dias que se reunissem sem demora ao membro ausente mas feliz. Era isso
que o afastava do
litoral, um medo interior, a incerteza de que o instinto de sobrevivência
conseguiria contrariar a força do desespero e o apelo longínquo
das ondas que escutava como uma oração. Na casca vazia de um búzio
dourado que recolhera no dia da despedida, mesmo à beirinha do cais.
Cantava o fado baixinho, lamento abafado. E bebia tristeza feita vinho pelo
gargalo frio de uma garrafa transbordante de dor.
Pela primeira vez em cinco anos, o canário do doutor Saraiva parou de
cantar. A criaturinha, que pensavam ser fêmea e pouco dada a cantorias,
soltara o bico numa imponente alvorada de Verão e a todos surpreendera
com a sua costela de rouxinol.
O doutor, formado em medicina e catedrático em bicharada, pousou o matutino
nos joelhos e espreitou sobre os óculos a gaiola do empertigado tenor.
O pássaro, nada. Um aglomerado de penas amarelas, imóvel no poleiro.
Levantou-se, ajeitou o roupão e dirigiu-se à janela das traseiras
onde o passarito observava o mundo para lá das grades, o céu e
as nuvens que o destino lhe negara à nascença e aos quais enviava
melodias bonitas de encantar. Sonhava liberdade e cantava-a ao vento, sereia
com asas que o egoísmo dos homens proibira de voar.
O dono assobiou ao desafio, tentativa vã. Depois, olhou para o cinzento
escuro no horizonte que a sua janela alcançava. Escuro como o futuro
previsível da maioria dos vizinhos indesejados que o município
lhe despejara em casas baratas mais um jardim feito à pressa, na parte
mais discreta da urbanização fina onde vivia.
Um escândalo que sempre denunciara, a par das muitas iniciativas que a
sua retórica de burguês letrado e lesado na mais valia do seu património
imobiliário incitou e que tanto haviam contribuído para tornar
ainda mais confrangedora a posição de todas aquelas famílias
pobres mas orgulhosas, paredes meias forçadas com tão hostil vizinhança.
Vinha aí tempestade...
O velho marujo Agostinho foi o único a estranhar a presença de
uma gaivota no bairro. Passara muitos dias a navegar na companhia de bichos
daquela espécie e conheciam-se bem. Bateu-lhe depressa o coração
quando a viu, como se o mar tivesse enviado uma mensagem de esperança.
Então ocorreu-lhe que a ave andava perdida, como ele, longe da sua fonte
natural de vida. A morrer aos bocadinhos.
Invadiu-o um desgosto imenso, quando a olhou nessa perspectiva por entre uma
baforada de fumo. E o fumo lembrou-lhe o nevoeiro que tanto temia junto de costas
rochosas, da emoção de ser o primeiro a distinguir a custo por
entre a bruma a luz distante e salvadora de um farol, de encher os pulmões
e berrar bem alto as boas notícias a estibordo.
E o som estridente de bandos de gaivotas que anunciavam a proximidade de terra
firme ecoou-lhe nos ouvidos e no peito, nesse curto instante mágico em
que recordou a sensação de balançar no convés ao
ritmo das ondas, caganita de gente atrevida e capaz de enfrentar a imensidão
poderosa do reino de Neptuno em casquinhas de noz invariavelmente fragilizadas
perante a força brutal de um valente vagalhão.
Orgulhava-se de ser um navegador, herdeiro dos bravos que tanta glória
e riqueza trouxeram de terras exóticas e distantes para o pequenino Portugal.
Fôra grande o país nas proezas e nos benefícios que só
cruzando oceanos se conseguiriam obter. Gostava de ter vivido esses dias. Amava
o mar acima de todas as coisas.
Porque raio andaria ali o bicho?
O doutor decidiu levar o seu querido canário a um especialista. Uma
moderna e sofisticada clínica veterinária instalara-se numa loja
da urbanização e, acreditava ele, fora uma benesse para a zona.
Pelos menos para ele e os seus bichinhos.
Vestiu a gabardina pressentindo temporal, pegou na gaiola e saiu. Não
sem antes verificar cada uma das três fechaduras de segurança do
portão que instalara no apartamento, uma divisória blindada entre
o desconfiado e a seita de marginais mais próxima. Lamentavelmente, a
lei não lhe permitia electrificar o sistema.
Desde a vinda daquela populaça medonha não conseguia sentir-se
seguro. Sair à rua constituia uma aventura que lhe punha as batidas cardíacas
a galope. Não acreditava em pressentimentos e outras charlatanices próprias
dos fracos de espírito, mas algo o inquietava. A todo o tempo. Decidira
mesmo suspender funções na clínica privada onde aplicava
os dotes de cirurgião nos corpos degradados de gente com posses. Tremiam-lhe
as mãos e isso já lhe criara complicações em dois
ou três liftings. E numa lipo-aspiração. Sem contar com
a desastrosa estreia nos implantes de silicone nos seios de uma senhora empenhada
em disputar aos cinquenta o mesmo campeonato das de vinte. Foram mais de vinte,
de facto, as vezes que o seu colega e amigo, proprietário da clínica,
se viu forçado a retalhar o peito da criatura para extraír, pedacinho
por pedacinho, as reminiscências do desastre e evitar a barra do tribunal.
Um dinheirão, mesmo assim.
A paciência do amigo não esticava tanto como as peles das abonadas
pacientes e a receita, inevitável, prescrevia uns tempos de recato a
cuidar da bicharada. Até lhe ofereceu um cágado, dois casais de
periquitos e uma generosa mão-cheia de peixinhos, aquário incluído,
para o manter entretido e fora dali. Neto Alves, o amigo, nunca lhe virara as
costas nos momentos de aflição, sempre que no hospital alguma
bronca abria inquérito e se impunha uma mexidela nuns cordelinhos para
abafar as consequências. Descuidava-se, de quando em vez, preocupado com
a saúde dos animais que tinha em casa. E lá ficava alguém
a contas para a vida pelas incúrias na marquesa. Chamavam-lhe acidente
que negligência soava mal, custava caro e desprestigiava a classe e a
instituição. Mas deixavam-no operar, outra e outra vez, porque
havia falhas no quadro de pessoal e afastá-lo constituiria reconhecimento
implícito das culpas que lhe assistiam. Quando dava para o torto convergiam
nas versões, corporatizavam a questão e a vida prosseguia, que
remédio...
Sem cura para a dor que o consumia, o Agostinho Marinheiro prendia a atenção
em tudo o que lhe impregnava as narinas com a brisa fresca da marzia. A gaivota
que por ali andava coitada, ao engano, bem valia o sacrifício de se arrastar
até à rua mais as muletas e a cadela (o pior foram as misturas...)
que o desequilibrava, a todo o tempo, como num convés em mar picado.
Cobriu a calvície com a boina ressequida, bebeu mais um para o caminho
e saiu devagarinho, queria ver de perto aquela amiga.
Seguiu-lhe o voo com olhos sedentos e tentou acompanhar com o corpo em terra
a ave marinha que lhe parecia cansada e quase, quase a pousar. Estava certo
no palpite. A pobre, exausta, aterrou sem nexo na calçada e ali se deixou
ficar, dorida, à espera de coisa nenhuma.
Quando o Agostinho, a custo, lá chegou, a verdade maldita e chocante
tinha a forma de uma pata destroçada e já pouco haveria a fazer.
A gaivota coitadinha, ofegante e moribunda, voara sem destino que o seu estava
traçado. Nos sulcos do rosto queimado pelo sol de muitas viagens, as
lágrimas atropelaram-se em catadupas e pingaram-lhe a grossa camisa de
flanela. O velho empedernido, agora doce como uma mãe, deixou-se tombar
no passeio, pegou-lhe com jeitinho e acariciou-lhe a penugem com dedos rudes
e gretados feitos algodão. Tentou consolá-la.
- Tem calma, pequenina, que eu trato bem de ti.
- Olhe que o melhor é amputá-la para evitar a infecção...
O Saraiva, doutor, muito hesitara até intervir. Também ele assistira
à trapalhona aterrisagem e logo concluíra do que o animal padecia.
Desacelerou a passada, poisou a gaiola mais o canário que emudecera e,
com pose de entendido, emitiu o seu ilustre parecer.
Sentado na berma da estrada, com os braços em missão de embalo,
Agostinho até estremeceu. E o outro continuava.
- Se quiser, eu trato disso. Tem um canivete aí à mão?
O velho pela má sorte desembarcado percebeu naquele instante que a sua
vida acabava ali. Como a da gaivota infortunada, cabeça ao pendurão
sobre o braço que a amparava.
Reconheceu aquela voz de imediato, que os momentos muito ruins não se
expõem ao oblívio nas memórias de quem os sofreu. E Agostinho,
da desdita que o marcara, apenas guardara, bem presente na lembrança,
o timbre maldito do desgraçado cuja pressa de cortar o privara de melhor
escolha que outro faria em idêntica situação.
O monte inerte de penas, pousou-o com a delicadeza de uma gueixa. Depois, levantou-se
a custo, recusando a ajuda que o outro lhe oferecia. Fixou o olhar no rosto
do doutor, queria perceber-lhe na expressão qualquer pormenor que lhe
justificasse a natureza daninha. Nada viu senão um fuinha sem alma, acobardado
pelo ar bizarro e vagamente familiar daquele inválido que o mirava.
O médico arrependeu-se de imediato da sua veia oculta de veterinário.
Apanhou a gaiola e olhou em volta para buscar um vizinho, um conhecido que constituísse
pretexto para seguir depressa dali para fora. Sentiu a pressão das mãos
do outro no cimo da gaiola que encostara ao peito num gesto inconsciente de
protecção. Petrificado, deixou-o abrir com a mão direita,
lentamente, a portinhola por onde o canário haveria de se escapulir.
A esquerda aguardou que o pássaro saisse e voou da algibeira bem destra
para, pela portinhola, entrar de navalha em riste e a espetar bem fundo por
entre as grades, no peito do doutor. Que se limitou a gemer baixinho, no caminho
certo para o chão. Ajoelhou, largou a gaiola, tombou para o solo e morreu.
A chuva começou a cair nesse preciso instante, cinzento a forrar o céu.
O temporal cobriu com um manto denso de chuva e nevoeiro a cena final daquele
estranho cruzar de caminhos, como o pano desceria sobre o palco no epílogo
de uma tragédia assim.
A polícia recolheria testemunhos consonantes entre os muitos vizinhos
espectadores da matança. Todos descreveriam o crime com rigor, até
ao momento da eclosão da tempestade. Depois, só viram uns vultos.
E quando o dilúvio parou, dezoito horas mais tarde, apenas o corpo do
doutor e a gaiola vazia permaneciam no local. Ninguém voltou a ver o
Agostinho.
Contudo, dias mais tarde numa praia bem distante, seis pescadores desportivos
jurariam a pés juntos às autoridades locais terem ouvido um canário
a cantar, momentos antes de um velho manco desaparecer no meio do mar, para
lá da rebentação das ondas.
(Junho 2001)