Corria como se fosse um velocista, mas, ainda que cem pernas tivesse, não
fugiria à sensação de pavor que o dominava. A cem metros
de casa, nos estertores da noite, só pensava em escapar do monstro que
o atacara. Naquele beco escuro, nenhuma viv'alma poderia acudi-lo. Banhado a
sangue, o punhal em sua mão direita denunciava a violência do confronto
que se dera havia poucos segundos.
De como tudo ocorrera não se lembrava. O choque apagara da memória
o momento, deixando-lhe de herança maldita o turbilhão de imagens
desconexas a confundir sua mente. Será que havia golpeado o maldito?
Ele, ao menos, não estava ferido. Não se recordava de nada. Sabia
apenas que devia fugir. Era como se seu instinto, personificado na figura de
um provecto conselheiro, sussurrasse ao seu ouvido: "Escape. Corra mais
rápido. Ou ele virá lhe pegar".
Em frente ao sobrado onde vivia sozinho, buscou coragem para se virar. Por
um instante, pensou ter visto a sombra do algoz, vindo célere em sua
direção. Um engano. Um segundo depois, no entanto, uma lata de
lixo de metal caiu ao seu lado, como se tivesse sido empurrada. O barulho lhe
fez lembrar um gongo. As batidas de seu coração se descompassaram
mais ainda, dando a sensação de que este lhe saltaria pela boca.
Mas logo se revelaram os responsáveis, dois ratos saídos do esgoto,
que - pressentiu - estariam ali como arautos da morte.
Já possuído pelo pânico, girou rapidamente a chave. Abriu
a porta num rompante. Trancou-a com rapidez. Ofegante, subiu a escada de lado.
Não queria deixar a retaguarda vulnerável, mesmo que atrás
de si não houvesse ninguém. Menosprezar as habilidades do monstro
poderia ser fatal. O ranger da madeira dos degraus aumentava a sensação
de medo, a exemplo do que sói acontecer em casas supostamente mal assombradas.
Certificou-se de que estava vazio o apartamento - às escuras para não
chamar a atenção do perseguidor. Caminhou vagarosamente até
o banheiro, esculpindo cada passo na escuridão. Trancou a porta. Acendeu
a luz. Pôs o punhal ensanguentado ao lado da pia. Lavou as mãos,
tingidas de vermelho, e o rosto. Fitou-se no espelho, invadindo o próprio
olhar.
Tal qual um alarme da alma, as sirenes dos carros de polícia lá
fora o fizeram retornar a si. Só então veio à lembrança
a imagem de Clara em seus braços, aquela tez angelical refletindo a vida
a se esvair. E uma vez mais o austero conselheiro imaginário pareceu
lhe falar, agora para ensinar que o difícil é escapar ao mal quando
ele está dentro de você.