A Garganta da Serpente
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Morte Negra

(John Dekowes)

F'atuhya não conseguia se desvencilhar dos aborígines, nem dos humanos vestidos estranhamente, que o atacavam. Já havia matado alguns deles da pior maneira possível com os seus braços espinhentos e letais, no intuito de deixá-los assustados, mas eram persistentes, não se davam por vencidos. Muitos começavam a sentir reações estranhas e tornavam-se agressivos contra os seus, só pelo simples contato com o líquido que saía dos seus ferimentos, e ficara na vegetação pelo caminho. O seu traje protetor encontrava-se em frangalhos e a máscara que envolvia toda a sua cabeça partira-se em alguns lugares; respirava com dificuldades e se tombasse ali, ninguém poderia imaginar o que aconteceria com aquele povo, ou talvez com aquelas tribos, ou quiçá com o mundo... Por isso que tentava chegar o mais rápido possível até aquele monte rochoso que vira quando sua nave entrou em pane. Percebera também algumas cavernas e com um pouco de sorte, poderia se ocultar no interior de uma delas. As lanças arremessadas ricocheteavam no escudo protetor do seu traje, contudo, outras menores, que utilizavam lâminas de vidro, essas rompiam a aura eletrônica e lhe rasgavam a carne. Sentia dores lancinantes e urrava feito um animal acuado, apavorado, raivoso. Eles sabiam como ele era; conheciam seus hábitos e como agia, só desconheciam o que aconteceria quando se tornasse muito furioso. Procurava se controlar para não romper as cápsulas de segurança, que já se tornavam críticas... Mas ainda não haviam chegado aos limites do perigo vital. Aos poucos foi se aproximando do monte e viu as cavernas mais adiante. Precisava afastar para bem longe os selvagens. Ergueu o visor de cristal e expeliu uma espécie de líquido esbranquiçado por sobre a vegetação a certa distância. A reserva de "Trynum" acabaria em breve, aquela fora a última descarga. Necessitaria de tempo para se recuperar e isso ele não tinha. Penetrou na caverna e foi logo procurando um caminho que o levasse diretamente às profundezas. Estava sem o seu "visualizador orgânico", e naquela sua fuga desembalada e, às cegas, ia tropeçando, escorregando por barrancos, descidas íngremes, caindo em vazios, chocando-se em solos pedregosos e muito úmidos. A cada baque contra o chão, pressentia algo interno se revoltando, se revirando, enchendo-se de ódio. Quanto mais profundamente fosse, melhor seria para o povo daquele planeta. Sentia pena deles.

Finalmente, depois de horas e horas naquela debandada correria, arrastando-se ou deixando-se levar por rios subterrâneos que se perdiam em fossas obscuras, o que restava do seu corpo encontrou um local firme, seguro e no mais completo isolamento e escuridão.

Por breves momentos ouviu-se um ruído áspero, parecendo uma respiração estrangulada, depois apenas o silêncio dominou. F'atuhya entregava-se passivamente à sua morte cósmica...

Um filete esverdeado e fosforescente surgiu, rompendo as trevas, e foi se enraizando por todo o corpo inerte. O traje todo rasgado entrava em combustão química e ia se diluindo pelo chão. Seu corpo se abriu em chamas, mas não inflamava, apenas emitia uma luminosidade radiante e forte, deixando ver a imensa abóbada da caverna cheia de estalactites e estalagmites como torres se perdendo nas alturas. Em seguida uma bolha pastosa foi se avolumando e eclodiu, corroendo, como um ácido muito forte tudo o que restara do corpo e tudo ao redor. Algo invisível e fétido se espalhou em todas as direções, alcançando os buracos, penetrando pelas raízes, pelas locas, fendas, frestas e por onde passava tudo ia morrendo. Minúsculos insetos, pequenos animais em suas tocas, seres das profundezas se contorciam em espasmos atrozes e mortais quando seus corpos eram invadidos por algo muito nefasto e terrível, que os consumia de dentro para fora, deixando apenas uma carcaça viscosa e sanguinolenta...

*****

O Planeta Yhons fica apenas a 6 anos-luz da Terra. Nas noites de inverno a leste da Constelação do Enforcado, bem junto à língua, percebe-se um grande espiral de vermelho profundo destacando-se contra um céu negro e quase vazio; e envolvendo uma estrela trigeminada, um imenso anel de massa gasosa composta de gelo e poeira radiativa, que é projetado ao espaço numa constante rotação, que aprisiona o planeta nesse turbilhão de energia, em seu interior. E misturados a essa força incessante de massa cósmica habitam os Yhons, mesclados e moldados a uma vida de furor contínuo, que surgem do âmago do planeta, traçam seus destinos baseados na expulsão dos elementos vivos que irradiam para além do cosmo e se incorporam dentro das tênues carapaças protetoras que desenvolvem distantes de toda a convulsão atômica do seu mundo.

Libertos, suas formas de corpos transparentes e fosforescentes vão se adaptando às condições do meio o qual escolheram. Os Yhons são seres de inteligência superiora, e enquanto no primeiro estágio de "estrelinganphor" ou adolescência precoce, suas múltiplas ramificações braçais recolhem do espaço ao redor, emanações radiativas que ajudam a fortalecer seus dons telepáticos. Abandonando essa fase crítica, considerada penosa, partem em busca de um hospedeiro isolado, onde possam se desenvolver completamente. A mutação ou transformação só acontece após alojarem-se num invólucro protetor. Amoldam-se às condições do habitat, inibem suas funções destruidoras, que permanecem isoladas dentro das tênues carapaças primitivas. Na verdade, os Yhons procuram se proteger do mundo exterior e do seu próprio inferno interior, pois ao romper uma dessas carapaças, o vírus letal que sai, através do seu corpo, muta sua estrutura de acordo com a temperatura ambiente e se dissemina através da corrente de ar, exterminando com tudo ao redor. Cada ser do planeta Yhons procurava se preservar dentro de trajes completamente lacrados, com temperaturas opostas às do seu mundo, pois essas mesmas cápsulas primitivas os mantinham vivos, pela constante mistura do ácido que liberava para a sua osmose sanguínea.

F'atuhya, este foi o nome que ganhou dos nativos humanos que o acolheram quando chegou àquele lugar estranho. "O Temor das Estrelas" era o seu significado. Humanos... Assim se classificavam. Humanos viventes no planeta ao qual não pertenciam... Usavam-no apenas por determinado tempo... Humanos, terrestres... Essa era uma interpretação muito dúbia para os símbolos sinápticos que recebia daquelas criaturas. Uma forma de mantê-los afastados do perigo que representava para eles foi o controle de suas mentes. Um ou outro é que ocasionalmente pensava de forma diferente, contudo conseguia dominá-los com facilidade, porém as fêmeas eram mais ariscas e mantinham suas ondas cerebrais em um nível de controle assustador! Acreditava que isso acontecia em decorrência do deflúvio sanguíneo a que se submetiam e juntamente com a forte tensão emocional em que viviam constantemente: uma dupla zona de descargas eletrônicas anormais que percorriam o cérebro delas em sentidos múltiplos, opostos e conflitantes, impedindo a sua manipulação mental. Era novidade tal constatação! O seu poder cósmico ultrapassava barreiras infinitas... Os machos eram mais dóceis e fraquejavam sempre diante de uma ordem direta.

A sua imensa forma desajeitada se encaixava com perfeição dentro do invólucro de substância orgânica que conseguira arranjar. Depois, os largos trajes externos permitiram desenvolver melhor uma estrutura de proteção contra aquela atmosfera hostil e ambiente selvagem. Entre o seu corpo, como poderia se chamar, e a tal vestimenta exterior, existia uma crosta finíssima de resina , e entre ela e o corpo, um líquido esponjoso, gosmento, de coloração fosfórica, quase esbranquiçado, que era o "Trynum", e que podia ser considerado, no bom sentido biológico, como exemplo do plasma humano em decomposição, só que com um conjunto de átomos em disposição espacial diferente e desenvolvido em contínuo processo de quimiossíntese, o qual era expelido eventualmente pelos poros espinhentos ou sobre pressão tensional.

O ser que ocupara aquele corpo anteriormente fora um brilhante guerreiro Vxol que, em campo de batalha, abandonara seu entorno numa fuga pelas galáxias. Um piloto espacial... Vira através das imagens mentais, a distância, seres em trajes como aquele no qual se encontrava, viajando em naves espaciais pelo espaço infinito. Os Vxol sempre foram ótimos hospedeiros!

Os nativos o tratavam como a uma divindade muito especial; em si, todos daquela aldeia e das cercanias participavam de uma adoração todas as vezes que um astro prateado ascendia naquele céu cheio de pontinhos brilhantes - ele observava também as noites límpidas e os astros errantes no espaço infinito, todavia, não sentia nenhuma saudade, nem lembranças - Sacrificavam animais e outras pequenas criaturas num altar diante de F'atuhya, e dançavam vestidos com artefatos coloridos numa caracterização sua, até o outro astro maior crescer no horizonte. Percebia que a sua presença era imutável e para não fazer desfeitas, apenas elevava um dos braços e emitia uma espécie de grunhido, o que todos repetiam em uníssono durante os festejos.

No período em que se manteve completamente enclausurado e naquela aldeia, mostrou-se telepaticamente somente para aquele que era denominado de "O Grande Feiticeiro", o "Curandeiro", o "Sábio", os caminhos da sua senda: de onde tinha vindo, como eram os da sua espécie, como agiam, viviam... E o mapa estelar, que fora rabiscado no chão e depois desenhado nas paredes do interior de uma caverna, para que as futuras gerações lembrassem da sua visita à tribo.

Romper o lacre da sua existência recolhida e se dissipar por aquele planeta ainda desconhecido, por zonas de saber infinito num êxtase de glória trariam agonia e desespero para as criaturas que viviam naquele universo reduzido à desolação e miséria. A sua essência lutava por um mínimo de existência, mas ele temia libertá-la.

Certo dia, o curandeiro falou-lhe a respeito da sua tribo, das necessidades, das dificuldades e principalmente das doenças e mortes... Preocupava-se com a continuidade do seu povo, da sua raça. Suplicava pela ajuda daquele ser divino, pela sua complacência... Para a permanência da vida ou a eternidade da morte... Ele compreendia aquele sentimento. O Feiticeiro lhe descrevia muita bem a situação. Discorria mentalmente com clareza as atrocidades a que fora submetida toda a sua tribo... Falava sobre desolação e desesperanças contínuas...

... Aplacar algumas doenças utilizando uma pequena porção do "Trynum" para salvar vidas. O estertor da morte ele percebia vindo de tudo que o cercava. A crueldade da natureza com aqueles seres não era muito diferente da sua ontogênese. Possuíam parcas calorias, e seus alimentos eram insuficientes de proteínas e outros produtos que pudessem fortalecer suas refeições. Apesar de toda aquela deficiência, nasciam crianças saudáveis - de mães sugadas de energia -, e com o tempo se tornavam também fracas e esquálidas. Ao misturar uma simples gota da sua "osmose sanguínea" na beberagem do curandeiro, poderia influenciar na "gênese evolutiva" daquelas pequenas pobres criaturas que padeciam. O seu interlocutor mental, participante daquela "experiência cósmica" sabia das drásticas consequências, caso não desse resultado: a morte de toda a tribo, e numa extensão até onde os olhos pudessem alcançar, a natureza, em menos de duas luas, estaria fatalmente agonizante e com possibilidades da sua essência se espalhar através de algum hospedeiro, caso encontrasse um saudável. Ele não teria mais controle da situação. Uma coisa era certa, a dosagem seria mínima para que os doentes pudessem resistir; os mortos teriam que ser imediatamente levados para bem longe e seus corpos banhados com algum elemento químico forte e destruídos pelo fogo, antes que seus organismos entrassem em decomposição viral e contaminassem a todos. Não bastaria só enterrá-los!

"N'gnugu'b'elê" foi o que assimilou para o nome dado à beberagem do feiticeiro. Morte Negra seria a tradução mais exata. Grande parte da tribo se salvou da doença e tornaram-se fortes, mais resistentes, inclusive até mentalmente mais cognitivos com F'atuhya. Sabiam que carregavam em seus corpos um poder sobre-humano vindo das estrelas.

Os mortos eram levados em seus próprios trapos de tecidos e jogados numa imensa fogueira. Quando as mães viam seus filhos sendo devorados pelas chamas, caíam nas mais profundas lamentações e choros angustiantes. F'atuhya identificava essas descargas eletrônicas mentais com o furor dos elementos que os expulsavam para o espaço. A perda das suas raízes, o estupor furioso, a sanha animalesca que nascia do pueril, do inocente e convulgia todo o interior, principiando dali a revolta e o desejo de vingança implacável contra o Universo. Ele sentia isso... Por isso que as fêmeas conseguiam insurgir contra a sua manipulação mesmérica. Entretanto, essa prevenção só durava enquanto elas permaneciam procriando; quando a fertilidade acabava, rompia-se a sua estabilidade mental e então, as fêmeas se tornavam joguetes muito mais perigosos do que os machos...

*****

Muito tempo se passou até que um dia, na escolha para o novo chefe da tribo, grupos rivais entraram em atrito, e o ganhador pela sua supremacia, expulsou os perdedores, condenando-os ao ostracismo. Antes de partirem, na calada da noite, mataram o feiticeiro, roubaram o vasilhame contendo o "N'gnugu'b'elê", pois acreditavam que a beberagem daria poder a eles. Sumiram sorrateiramente nas trevas, sempre acoitados pela vegetação, mas durante essa caminhada foram possuídos e assustados por entes fantasmagóricos, que viam através de suas mentes e incitava-os à violência. Nesses ataques, feriam-se uns aos outros e a si próprios. O medo, o terror e o estado de excitação muito alta liberavam grande taxa de adrenalina e um cheiro fortíssimo de suor, e começaram a ser rodeados por feras verdadeiras, reais, que não haviam saído do universo imaginário. Perceberam isso quando o primeiro ataque surpresa dizimou os que vinham mais afastados do grupo. Com o susto repentino, os que estavam mais à frente, ao invés de permanecerem unidos, debandaram-se para todos os lados, tornando-se cada um presa fácil para os animais noturnos esfomeados. E, de vez em quando, das trevas subiam gritos humanos angustiados, sufocado e doloroso, que eram logo abafados por rugidos animalescos em plena fúria do ataque.

O amanhecer surgia, e por todos os lados, numa clareira próxima a um lago de águas esverdeadas, viam-se corpos esfacelados, já em adiantado estado de decomposição e à medida em que a claridade do sol ia avançando, os corpos borbulhavam nos poros e das feridas abertas saía um líquido espumante, esbranquiçado e acidífero, que ia derretendo a carne restante.

Centenas de animais moviam-se pelo descampado alheios a tudo aquilo, pareciam temer uma aproximação, entretanto, pequenos macacos muito curiosos chegavam-se bem devagar, e alguns mais curiosos até remexiam as roupas e futucavam tudo. Uns encontraram um bornal com uma botija de barro fechada com tampa roliça e de tanto rolarem o vasilhame acabaram quebrando-o, e um líquido viscoso escorreu do interior... Mas não penetrou na terra seca; ficou empossado, brilhante e bastante convidativo. Os macaquinhos, como que atraídos, hipnotizados, puseram-se a bebê-lo avidamente até não restar mais nenhum resquício sequer.

E o que se viu mais tarde espantou até os maiores animais, que saíam em desembalado galope para bem distante. De alguns dos primatas que ingeriram do líquido, seus corpos foram tomados de violentos espasmos, e seus ventres se contorciam como se algo vivo e diabólico quisesse saltar para fora; e seus olhos, completamente injetados de sangue reviravam. E as pequenas criaturas pulavam aterrorizadas e cheias de dores, enquanto expunham seus intestinos junto com as fezes, e depois de muita luta e espalhando aquela massa sanguinolenta por diversos lugares, estertoravam e caíam mortos. Um silêncio mortal cobria toda a estepe. A natureza se recolhia em desespero diante do terror que se afrontava...

*****

F'atuhya lamentava o acontecido, e, principalmente, da morte do seu único e verdadeiro amigo, o Feiticeiro, mas os criminosos haviam pago na mesma moeda. E o seu poder psíquico aumentava com o seu "Trynum" se espalhando. Duas coisas eram importantes e imprescindíveis para a sua segurança: os glóbulos oculares e os testículos. Através da visão do hospedeiro podia observar ao redor, conhecer aquele planeta e se proteger mais. Infelizmente, as suas proteínas alienígenas se tornavam ácidas e muito violentas ao penetrar no corpo das criaturas terrestres, afetando rapidamente a visão e os órgãos sexuais. Os primatas e os humanos possuíam uma espécie de enzima nessas partes que fortalecia cada ciclo de evolução, possibilitando de certa forma, desenvolver colônias externas. Muitos humanos possuíam resistências físicas e se tornavam verdadeiros transmissores potenciais indiretos do "Trynum", e que alguns classificavam como vírus... F'atuhya sabia de tudo o que acontecia, mas o pior ainda estava por vir.

A liberação indiscriminada do seu "Trynum" possibilitava reações químicas e genéticas assustadoras. A inteligência do vírus ao adquirir múltiplas formas de ataques, dificultava que fosse identificado e exterminado. Todavia, o mais temido e mortal elemento destruidor ainda permanecia aprisionado dentro de si, alimentando-o, produzindo proteínas para a sua osmose, e aguardando o momento de explodir num ataque fulminante. A diferença entre o seu plasma "Trynum" e o casulo primal é que um significava o resto, o refugo eliminado como efeito da osmose sanguínea, portanto o teor de acidez viral estava bastante enfraquecido na sua composição total. Porém não menos poderoso. O outro, o cerne, no seu potencial, se liberado, espalharia em pouco tempo a pior morte jamais conhecida e vista pelos olhos humanos; e não haveria remédios que combatessem o seu efeito letal, pois quando se visse acuada se camuflaria dentro das células de diversos hospedeiros, permanecendo como que adormecida por anos e anos terrestres.

O perfil do "Trynum" era idêntico na sua voracidade... Depois, lentamente, iria modificando o comportamento psicológico dos seus hospedeiros, tornando-os mais agressivos e ameaçadores. A sua estratégia de sobrevivência não visava a matar seus hospedeiros de imediato, mas quando acontecessem suas mortes, se não fossem ocasionadas pelo alto nível de senilidade desregrada, seriam violentas, e com aspectos repugnantes! De qualquer forma, o contato com o sangue ou respirar no espaço onde se encontrassem os cadáveres era o meio mais eficaz para o contágio, sem falar na disseminação aérea. Quando completamente ativos, em menos de 12 horas poderiam exterminar com populações inteiras, incluindo outras formas de vida.

F'atuhya fazia um diagnóstico do que aconteceria, porém não tinha culpa de ser assim. Vinha de um mundo com estruturas genéticas diferentes, e vir para aquele planeta fora uma mera fatalidade para aquelas criaturas.

Para que nada de mal lhes acontecesse realmente, - restando-lhes apenas o "Trynum" denominado de "Morte Negra", para o qual um dia poderiam encontrar um antídoto -, o ideal seria morrer isolado e calmamente num buraco, bem nas profundezas da terra. As cápsulas primitivas entrariam em colapso e, em estado de involução, até serem absorvidas pela própria proteína. Mas naquele mundo cuja modalidade de tempo/espaço era o oposto ao seu, passar-se-iam milhões de anos antes que conseguissem tal intento. Vivia continuamente em estado de defesa e alerta contra tudo e contra todos. A aproximação mínima sequer dele, de quaisquer espécies de vida daquele mundo, punha em risco a sua sobrevivência. A não ser que já fosse um hospedeiro. O seu amigo feiticeiro fora uma exceção à parte. Não fora um hospedeiro e considerava-o extremamente evoluído.

Ser uma massa disforme acomodada dentro de um invólucro com um terço a menos do seu tamanho possibilitava-o uma locomoção mais rápida em caso de fuga, e a maioria dos seres que ingeriram a beberagem na tribo, se encontravam dispersos pela região, sendo que alguns já entravam em processo de convulsões espasmódicas, vomitando sangue e expelindo seus intestinos pelo ânus. Precisava alcançar mais além, o mundo depois das fronteiras; hospedeiros mais inteligentes e de mentes mais abertas ao novo amanhecer. F'atuhya ansiava conhecer as grandes civilizações, os centros populacionais, mesmo que para isso necessitasse do sacrifício de alguns humanos. Ele não podia ser tão condescendente com as criaturas, mesmo porque a sua essência não lhe permitia. O único gesto de boa vontade que podia demonstrar seria de uma morte rápida, indolor e quase fulminante. Poucos minutos... Seria o máximo de tempo que um humano disporia após as manifestações dos primeiros sintomas...

*****

O conhecimento que vinha recebendo sobre o planeta Terra o deixava maravilhado! Nunca, em toda a sua vida, poderia imaginar que existisse um mundo com tamanho esplendor! Só lamentava que seus hospedeiros não tivessem tanta resistência... Contudo, ficava extasiado assim mesmo, porque era um mundo de natureza próspera e rica, mas fatal para a propagação de qualquer hantavírus, como os humanos começavam a classificar a família de micróbios letais, ou vírus emergentes que se proliferavam pela humanidade largando por onde passavam, pilhas e mais pilhas de cadáveres. O "Trynum" já possuía nome próprio: "N'gnugu'b'elê" ou Morte Negra! E denominá-lo com outras classificações se tornava mais confuso. Mas não tinha culpa dos acontecimentos, porque as condições climáticas e atmosféricas, misturadas com as impurezas e a poluição favoreciam a sua disseminação e a de qualquer outro tipo de moléstia mais grave. Se o hospedeiro fosse um indivíduo forte, saudável, seu próprio organismo seria uma defesa mortal, mas o que podia perceber, em suas profundas incursões, é que o homem se tornara há muito tempo, um ótimo celeiro para seu abrigo. Uma fonte inesgotável de prazer!

F'atuhya sabia de tudo isso e muito mais. O tempo passava e a cada minuto outras formas desconhecidas de micróbios surgiam... Ou vindas do espaço profundo... Ou desenvolvidas em laboratórios genéticos e depois despejadas irresponsavelmente nos depósitos de lixo a céu aberto... E a mutação sequencial dos vírus híbridos em micróbios mortais, e a sua propagação se tornava questão de adequação temporal atmosférica junto ao ecossistema: as partículas cósmicas, a camada de ozônio, o efeito estufa, a poluição do ar, a chuva ácida e as consequentes tragédias causadas pelos produtos químicos jogados na natureza... Por tudo isso, não via razão para a humanidade estar tão apavorada e pessimista...!? Não entendia o porquê do alarde quando surgiam resfriados, gripes e outras moléstias crônicas deixando o corpo dos humanos enfraquecidos e abertos a outros tipos de doenças mais mortais? E, aí estava um problema seriíssimo! O "Trynum" possuía um tipo de ácido mutante muito forte e inteligente, que só podia ser combatido nas suas formas mais brandas - os especialistas utilizavam raios gama e, às vezes, raios ultravioletas ou certos produtos químicos, contudo o resultado era irrisório -, ou então, no núcleo, mas com produtos eficazes e aplicações diatérmicas consistentes. As ondas eletroeletrônicas desestruturavam as "cápsulas primais" com informações de códigos genéticos negativos, mas isso era impossível à execução para um ente humano comum.

*****

Havia um tumulto no interior da aldeia. Acontecia a escolha de novo chefe tribal, pois o outro morrera em luta com um animal. Os caçadores ainda o encontraram com vida e, estranhamente, ele balbuciava num murmúrio moribundo: F'atuhya... F'atuhya... F'atuhya... Seu nome fora pronunciado como última expressão de existência. Uma coisa não agradava F'atuhya. O chefe escolhido viera da cidade e com ele, outras ideias que eram claras, cristalinas e preocupantes a seu respeito... E com muita razão. Um dia, um grupo com lanças e archotes de fogos avançaram silenciosamente e sorrateiros por um lado, enquanto outro bando vinha por outro, em sua direção. F'atuhya pressentiu a presença do perigo e seus braços espinhentos romperam o traje de proteção, e começaram a esguichar o "Trynum". Sua massa interior foi se avolumando até o limite máximo que podia, em defesa do seu núcleo vital. Começou a recuar pelo lado mais oculto e vazio da mata. Por onde passava a folhagem ficava molhada pelo "muco" dos seus braços. Uma lança surgida do nada fincou no seu corpo. Uma reação que nunca havia sentido emergiu naturalmente do seu interior em forma de um som gutural, sonoro e assustador. As imagens que conseguia capturar dos selvagens eram confusas e transtornadas, como se estivessem possuídos por alguma droga alucinógena muito forte, e junto com eles, outras leituras sinápticas com entornos criminosos... Figuras dentro de roupas esverdeadas como os pilotos espaciais... As chamas dos archotes lambiam de fogo a mata ao redor, cercando-o. Queriam tocaiá-lo, mas conheciam-no muito bem para tentarem uma aproximação mais direta. Muitas gerações se passaram com todas falando a seu respeito... F'atuhya fora venerado e protegido por muitas tribos, e agora, era escorraçado e pretendiam a sua morte!

Andar pelo seu caminho era estar fatalmente contaminado, e todos procuravam se acercar em meio círculo, mas ele se aproximava da caverna que vira ao sopé da montanha há muitas eras, quando a sua nave sofrera a pane, se espatifando contra o solo. Os ataques eram violentos com lanças feitas com pontas de ossos, e outras com lâminas cristalinas. Essas doíam mais. Seu traje encontrava-se rasgado e a áurea protetora enfraquecida. Sentia dores horríveis e urrava feito um animal raivoso e acuado. Viu a caverna. Precisava afastar para bem longe os selvagens e estranhos. Ergueu a máscara e esguichou grande quantidade de "Trynum" sobre a vegetação a certa distância; isso os manteria distraídos por um bom tempo. Entrou na caverna e, como havia pensado, um longo túnel cheio de raízes e valões o levaria cada vez mais para o interior. Foi procurando caminhos que o distanciasse cada vez mais dos seus predadores. Perdera o seu "visualizador orgânico" durante a fuga, e ia escorregando por barrancos úmidos, caindo em vazios imensos, até se chocar e rolar pelo chão pedregoso e escuro. Quanto mais profundamente fosse, melhor seria para o povo daquele planeta. Quando suas "cápsulas" se rompessem, no processo de autoproteção, seria o seu fim como Ser do Planeta Yhons, e passaria para uma outra dimensão de vida... Este era o seu destino.

Por um breve momento ouviu-se apenas um ruído parecendo uma respiração estrangulada; depois o silêncio voltou a reinar naquele ambiente de mais completa escuridão...

... Uma forma fosforescente iluminou a abóbada do interior da caverna, em seguida foi se enraizando por todo o corpo, até tomá-lo por completo. Uma espécie de fogo-fátuo ascendia para o alto e para os lados, até que uma bolha pastosa foi crescendo do meio daquela claridade e explodiu, dissolvendo totalmente o que restava de F'atuhya. Um cheiro estranho, uma presença invisível e poderosa despertou e se espalhou rapidamente, avançando pelos buracos... Retornando ligeira para o caminho de entrada, e por onde passava ia deixando o seu rastro fatal: milhares de minúsculas criaturas, animais das trevas se contorcendo em espasmos e caindo mortos, para segundos depois restarem somente carcaças putrefatas. A sombra da Morte Negra avançava célere em busca de outras vítimas; precisava mais do que nunca alcançar o mundo dos humanos, encontrar novos hospedeiros e disseminar-se por todo o planeta! De repente a corrente de ar que a levaria para o exterior estancou num baque, logo após uma violenta explosão.

Um grito selvagem e sobrenatural, raivoso, cheio de ódio ouviu-se, vindo do interior da montanha rochosa... O terror da humanidade ficara aprisionado... Não para sempre, mas apenas aguardando uma vítima incauta para o libertar...



NOTA DO NAVEGADOR: Certos relatos me fazem até prender a respiração e temer a própria sombra. Porém, os seres do planeta Yhons são inofensivas criaturas que perambulam pelo espaço infinito em busca de hospedeiros disponíveis, os quais possam ocultar suas formas físicas: um emaranhado de energias e detritos cósmicos liberados de uma caldeira em constante fissão nuclear. No planeta Terra existem locais onde proliferam formas orgânicas complexas que aguardam mudanças climáticas, cargas cósmicas favorecidas e reações bioquímicas negativas ao ecossistema para romperem seus lacres e espalharem-se, independentes dos vírus criados pelo próprio homem.

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