A Garganta da Serpente
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Lagartos ao Sol

(Júlio César Caetano)

Eles estão aqui, ali, em toda a parte. Olho-os e nossos olhares se esgueiram, como se não fôssemos iguais. Mas somos. Não importa a forma, a cor, nada importa, somos iguais e isto nada pode mudar. Alguns passam ao meu lado exalando um cheiro forte demais pra ser sentido; outros, fraco demais para ser notado, mas estão aí.

Uma música lúgubre soa em algum lugar e me desconcentra de meus passos certeiros em direção a. É quente demais, todos sentimos isso: é uma mão abanando que cruza, uma boca ávida pelo líquido gelado, um guardanapo úmido e esmiuçado jogado no chão e todos paramos um instante, independente da pressa, para poder absorver melhor a única brisa agradável que nos atinge nesta tarde incansavelmente quente.
Sinto meus pés suarem por baixo da meia esporte, meus punhos cerrados, como se esperassem alguém para surrar, meus lábios ressecados, descascando conforme o tempo, minhas retinas secas que piscar algum pode satisfazer.

Sem querer tropeço num deles, aqueles que se disfarçam inatingíveis, devidamente trajados - paletós e gravatas - para a batalha da qual julgam já terem vencido. Esquentam seus corpos frágeis dentro de tecido barato, de corte mal feito, de péssimo gosto, mesmo assim, imperiosos. Tentam esconder suas fragilidades em frases bem-formuladas, cheias de clichês.

Diferente de outros e outras, passam tão leves e serenos, como se não se importassem, nem com o calor, nem com o frio, nem com eles mesmos. Mas se importam e se sentem impotentes, preferem a segurança do obscuro, da alienação, passam em suas roupas largas, por vezes sujas, fingindo que não, mas almejando aquele terno mal feito e aquela gravata mal enlaçada. Olham-me com desprezo, faço parte daquilo que eles não. Eu preso; eles livres. Livres? Talvez por isso desfazem o desprezo da face e continuam, acreditando que desacreditam ou - não importa.

Eles e aqueles de uniforme, qualquer que seja, precisam mostrar que estão aí, não importa o que fazendo. Estão fazendo, estão recolhendo, estão multando, estão assassinando, estão vendendo, estão entregando, estão querendo... estão todos querendo, alguns tentam disfarçar, outros não fazem tanta questão.

Ainda é cedo, já está tarde. Pode ser pra mais tarde, era pra ontem. Os dedos agitados procuram as notas, os números do celular, a senha para o guichê correto, a nota que falta soar, o bilhete premiado. Os pés fogem, já não possuem coordenação para valsas, precisam ir, um paralelo ao outro, assim como os meus, suados embaixo de meias esportes, de seda, de lã, novas, furadas, com cheiro ou não. Os olhos precisam enxergar além e se esconder também, e fitam o vazio ou aquilo que pode vir a ser, estejam absortos em lentes escuras, em lentes de aumento ou ao natural.

Ninguém pode fugir, todos sabem. Seja o que observa tudo de cima do maior prédio, dentro de sua sala com ar condicionado, seja aquele que está embaixo, cavando um túnel para transportar pessoas que ele nunca verá. Não importa, o suor nunca nos deixará. E não adianta esgueirar o olhar, o paletó e a gravata afrouxarão, as roupas largas e sujas ficaram ainda mais largas e sujas, os uniformes cederão, o ar não será mais condicionado, as lentes cairão - escuras ou não -. Nesta hora eles verão que não há diferença, não haverá mais punhos para cerrar, nem pés para calçarem meias. Somos todos lagartos querendo um pouco de Sol.

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