E se de repente você se pega num desejo incontrolável de algo
que você não sabe o quê. Assim, de repente, durante o trabalho.
Olhar em volta e ver pessoas como você, fazendo coisas como você,
sem saber o porquê. Como você.
Você pensa em tomar um café, contando o tempo no relógio,
paranóico. As mãos suadas, uma ânsia. E é preciso
sair dali.
Então a rua é tomada. A noite começa a cair. Você
segue. Cruza as ruas olhando ao redor, os olhos famintos de procura, você
persegue em cada canto, em cada esquina, a possibilidade de encontrar. Passa
em frente ao bar e recusa um convite. Sobe para o ônibus e nega o troco.
Encosta a cabeça no largo vidro e olha para a paisagem circulante tentando
encontrar outra vida. Não encontra.
Todos os sentidos vidrados, buscando um único objeto.
Olha para fora, buscando na imensidão de rostos desconhecidos e bares
não penetrados algo que lhe faça vibrar por dentro. Talvez aquela
de cabelos encaracolados, de calças pretas e blusa bordô. Ou então
a mendiga que vaga fétida, pela rua fétida, com sua vida fétida,
cheia de ilusões perfumadas. Você olha para dentro do ônibus,
observa os olhares brutos que atravessam os vidros, os concretos, os corações.
Nada parece pulsar. O cansaço estampado nas faces marcadas, a desilusão
em cada suspiro. E percebe que também está assim, que também
é assim.
Olhando ainda mais para dentro, pode achar que não seja muito tarde para
virar gótico, budista, ateu ou qualquer outro rótulo que as pessoas
se colocam para dizer: Estou vivo, estou aqui. Isso lhe fará pensar no
tempo, em todo o tempo, o seu tempo. O passado. O futuro. O presente. O presente.
O passado. Talvez virá uma música que lhe lembrará um perfume,
um rosto, um dia, um beijo, um sentimento. Mas nunca encontra um sentido quando
vasculha os escombros do passado, não encontra um sentido nas obras do
presente. Haverá um feto que comprove o futuro?
O seu terno, a sua bermuda, a sua calça jeans, tudo parece desconfortável
demais, o óculos lhe incomoda a face. Você prefere não ver
a ver o que vê, e não sabe como fazer isso parar. Você quer
a sua casa, mas não tem um lar. Você quer alguém, mas não
tem amor. Você não sabe o que quer e se sente uma criança
mimada que chora por estar com sono.
E Aquilo ainda lhe consome.
Pensa em descer do ônibus, mas pensa o que os outros pensarão,
você sempre pensa no que os outros pensarão, principalmente no
que aquela pessoa que nem sabe da sua existência pensará. Num daqueles
três ou quatro rompantes do ano, em que nada faz sentido e tudo é
permitido: você desce. Respira o ar poluído da cidade grande em
que mora, olha o ônibus partir como chegou, anônimo, como você
em meio às outras pessoas e se arrepende por um instante. Mas é
preciso seguir. E segue.
Destino:
Não é o cigarro que lhe falta, não é a bebida
que lhe falta, não é o amor. Amor? Você também é
um ser do submundo, você também é um estranho no ninho,
amor não é aquilo o que os outros pensam que é. Isto é
o que você pensa, isto é o que as pessoas como você pensam.
O que você pensa? As suas interrogações.
Cruzar as ruas que já conhece, algumas com mais histórias que
outras. Todas fazem parte de você, queira ou não. Siga, segue,
alegria, sangue. Tudo parece fluir para o lado inverso ao desejado.
Desejo?
Você quer chegar até sua casa, o único lugar capaz de
te compreender. Incompreensível. Cruza os passados, os presentes e os
futuros você remói na mente até que se tornem palpáveis,
visíveis, cheiráveis e bons o suficiente para que você esqueça
passado e presente. Como deve ser o futuro.
A ânsia de outro lugar, de outras pessoas, de outras experiências,
de outros, de outras, de qualquer coisa nova que lhe faça acreditar que
ainda vale a pena, mesmo que você não saiba a pena, mesmo que você
não saiba se vale.
Previsões e filosofias acerca do melhor-método-de-se-viver-uma-vida-ordinária-e-saudável-sem-muitas-perdas-ou-ganhos.
É isso o que lhe corrompe. Isso e todas as mentiras que você já
disse em meio à frase: eu sou sincero no que digo.
Culpa: zero.
Um ser, um sei, um quero. Você e o mundo prontos, no meio do Coliseu.
Quem vencerá o duelo? Esta é a pergunta que Alguém faz
todos os dias ao lhe ver acordar com a boca cheia de maus gostos, com os olhos
cheios de esperança e com a alma cheia. Simplesmente cheia.
Você encosta a chave na fechadura e vê: contas a pagar, miséria,
camada de ozônio, paz mundial, corrupção, luxúria,
sorrisos falsos, inflação, colesterol, guerra mundial, cobiça,
anorexia, gula, 90 horas de trabalho semanais, salário mínimo,
cão vira-lata, preguiça, falsidade ideológica, ideologias,
luta de classes, perda de classes, frases de impacto, corações
abarrotados, fila, notícias, futebol, mentiras, verdades, carnaval, solidão,
sexo, ânsia, ânsia, ânsia.
E pensa:
Será tarde para aceitar um convite?