As árvores são esqueletos trêmulos na tristeza da tarde.
O ar é cinza e frio. É essa a paisagem que vejo quando lembro a figura de van Gogh, as suas
ideias, o seu sonho artístico.
Sempre o chamei van Gogh. Conheci-o na venda do Moisés. Eu tomava um
aperitivo e olhava distraído um velho exibindo a cada freguês um
quadrinho, que logo me pareceu sem interesse: cores baças, um vaso e
duas flores pendidas. Era uma natureza-morta apagada, esfumada, as figuras sujas e sem graça.
- O senhor está olhando com ironia nos olhos, mas eu sei - era o velho
encaminhando-se para meu lado.
Aponta o quadro: - Gostou?
- É interessante - eu disse.
- Não, não é - ele diz. - Eu sei, eu disse que eu sei.
Ri. Depois, sério, pergunta:
- O senhor é um artista, não é?
- Sou - respondi. - Sou poeta.
- Eu sabia, eu sabia. Você fica se disfarçando, mas não
me engana. - Faz uma pausa e explica: - Vou chamá-lo de você. Somos
colegas.
- Sim, claro - eu digo.
- Pois sim! Você é um poeta? Você é um emparedado.
As palavras escondem, não mostram a face real do homem. Eu sei o que
é um emparedado. Essa gente aí, como todo mundo, ninguém
entende nada. Eu sei. Eu sou um artista como você. Um emparedado.
Penso em meu livro O Emparedado, mas não tenho tempo para relacionar
essas ideias com os meus poemas, muito menos para responder. O velho
van Gogh, o que lhe interessa é falar.
- Um emparedado - abre os braços em cruz. - Esse ar cinzento, a cidade
de pedra, a estreiteza mental. Eu sei o que é um emparedado. Tenho ou
não tenho razão?
Pergunta, mas não me deixa responder.
- Por isso o poeta se cala. O poeta usa palavras: um disfarce. As palavras são
um espelho, mas as imagens são sempre deformadas. Não tenho razão?
Tento explicar. Van Gogh fala e fala. Olho a sua roupa larga, desleixada; o
seu jeito de ignorante; o seu quadrinho, que me parece insignificante, como
o dono.
- Ah, está gostando da pintura? Pois isto não quer dizer nada.
O que você está vendo aqui?
Tento responder. O que lhe diria? Penso: "Estou vendo um quadro".
Não digo nada.
- Pois você está vendo um quadro - ele diz. - E um quadro é
um quadro. Pois esse é todo mal. Um quadro é um espelho que deforma
a realidade. É como um poema. O que nós temos no final das contas?
Imagens gastas.
A minha opinião não lhe interessa. Eu não lhe interesso:
olha para além de mim, os olhos pasmados.
- Sabe quem eu gostaria de ser? Com quem me pareço?
Quero dizer, não sei por quê: "Van Gogh". Ele antecipa-se:
- Van Gogh. Ele não era um louco? Eu também sou. Que grande louco
esse van Gogh! Nunca vendeu um quadro, não é? Eu também
não. Nem quero vender; meus quadros eu dou; meus quadros eu jogo fora.
Não, não pense que eu não respeito o que eu faço.
Por isso eu gosto de lixo: eu detesto o lixo dos entendidos míopes. Míopes?
Eu quero a cegueira.
Não o entendo. Quero acabar logo a conversa. Não é possível.
- Então eu não sou van Gogh? O diabo do homem pintou a angústia,
o desespero. Eu não quero mostrar sentimento nenhum. Eu quero um quadro
frio como a vida. A vida não é fria? A imagem da vida deve ser
fria. Eu quero pintar o nada. O nada é o espaço vital do homem
de hoje. Van Gogh inventou a cor. A cor de van Gogh tem consistência,
você sente o peso da cor do homem, a coisa sai do quadro, tem vida própria.
Muito bem: é lindo, é doloroso e lindo. Pois veja só: eu
quero inventar a não-cor. Você está me entendendo? Não.
Não está.
Sorri. Despedimo-nos amigavelmente. Prometo mostrar-lhe algum poema; ele, um
novo quadro.
Passam-se os dias. Somos vizinhos e encontro-o com frequência; mas
ele não me vê, cruza ao largo, não me dá sequer a
oportunidade de cumprimentá-lo.
Entrego-me às minhas atividades. Às minhas aulas. À feitura
de um e outro poema. À constante reflexão sobre o problema da
criação artística. De como a arte é uma imagem deformada,
como queria o meu van Gogh, e é a nossa própria imagem. De como
o espelho pode estar partido, mas é una a imagem refletida nos múltiplos
fragmentos.
Acontecimentos sucedem-se; foi um ano grave em minha vida - morreu meu pai,
nasceu meu filho. Mas o esquisito personagem a que chamei van Gogh, não
posso esquecê-lo. Vejo-o diariamente. Paro e olho-o, o passo trôpego,
as maneiras abobadas. Sorrio e continuo o meu caminho.
Um dia resolvo-me, paro em sua frente.
- Licença - diz.
- Boa tarde - eu digo.
- Está bom. Agora eu quero passar - ele diz.
- Não me reconhece? - eu digo.
Ele empurra-me e entra em sua casa, a dois passos da minha. Nada perdido, penso.
O tempo se nos dá em partículas, é o espaço humano
de que a consciência perde e recupera resíduos imperfeitos. Divago;
o caso é que, meia-hora depois, na mesma venda onde primeiro nos encontráramos,
sou tomado pela surpresa de um abraço efusivo.
- Há quanto tempo, meu amigo - e o meu van Gogh colhe-me nos braços,
quase me levanta no ar. - Meu irmão! Como vai a poesia? Ah, a poesia
lava a alma. É a única razão para viver. Sem a poesia,
que seria do mundo? "Um vácuo atormentado de erros", como dizia
um filósofo. Mas a filosofia não vale nada, meu amigo. São
teorias que afastam o homem da realidade. Abstrações. Abstrusas, obtusas, oclusas - não é, irmão, você
que sabe mexer com as palavras? Eu mexo as tintas. Ah, um desperdício,
irmão. Abstrações. Estou desconsolado. O mundo não
tem conserto. "A miséria não tem fim".
Estou sem palavras. Ofereço-lhe um conhaque, bebida que eu o vira tomar
várias vezes. Ele recua, diz que não bebe. Tiro de uma pasta dois
poemas que ele, acompanhando com os dedos, com movimentos do corpo, lê
muito pausadamente, mexendo os lábios grossos, erguendo e abaixando as
sobrancelhas; depois, repete de cor, como a mostrar interesse, ou treino de
memória, mas pronuncia mal as palavras, diz os versos sem ritmo, como
se lesse uma nota fiscal. Comentou o uso de um artigo, a posição
de um adjetivo, por que esse e não outro; fez um ou dois comentários
pertinentes, ao menos assim me pareceram. Depois falou:
- Não gostei. Você é um poeta, está certo. Um poeta
reconhece-se de longe. Mas seus poemas são bem ruinzinhos, hein?
Falou, e logo pediu desculpas. Que não quisera ofender. É que
eu tinha a obsessão da forma. O apuro formal é necessário,
disse, mas não deve transparecer.
Saberia o homem o que estava falando? Bom. Não era novidade e, se algo
me interessava, era a sua pintura.
- Sim, como não? Tenho um quadro. Estou no caminho. Já lhe falei
do meu projeto, não? Venha, venha comigo; tenho uma cachaça especial
lá em casa. Você vai ver que cachaça!
No caminho, uns duzentos metros, explicou-me por que fazia quadrinhos: o trabalho
é mais difícil; o resultado, mais perfeito. Era preciso eliminar
a cor; que houvesse uma pintura, mas sem nenhum colorido; que se criasse a imagem do nada. Van Gogh, explicou-me
com detalhes, era um apaixonado do desenho, espinha dorsal da pintura; ele,
novo van Gogh, também apaixonado do desenho, buscava não fazê-lo:
todo desenho seria um apelo à pintura.
Estamos parados junto ao portão, ele falando e remexendo os bolsos. Quando
por fim encontrou as chaves, abre o portão sem usá-las. Numa pequena
despensa no quintal, sobre um cadeira, à guisa de cavalete, um quadrinho,
7,5 x 12,25 cm (é a medida que me deu). Mas não falamos logo do
quadro; antes enche dois copos de pinga, elogia-a repetidamente, ri, derruba
várias caixas vazias, sempre ruidoso, não fala coisa com coisa,
bebe, enche de novo o copo.
Tomo o quadro na mão. Estarei na casa de um maníaco? De um bêbado
qualquer?
- Deixe isso aí - diz. - Não, não. Pode levar; faça
com isso o que quiser; isso não vale nada.
Aborrecido, despeço-me e saio. Amizade acabada; o que é que eu
esperava, afinal?
Alcança-me no portão; desculpa-se. Se gostei?
Que é que vira no quadro? Árvores, mal adivinhadas, na cerração.
Mas não eram árvores; eram pessoas. Ou seriam árvores mesmo?
Não importa: era uma pintura.
Mostra-me como mal se delineava a imagem, um disfarce. A ausência de perspectiva
- um engano de ótica - buscada.
O cuidado minucioso com a criação, técnica pontilhista,
sombreada de manchas. Diz que van Gogh foi ofuscado pela cor; então,
a cor se tornou um ser vivo. Um trigal, o amarelo crescendo, e iludindo o espectador;
o verdadeiro espírito de van Gogh estaria nas pinceladas violentas, as
manchas que destroem a falsa impressão de estabilidade. Explica-me como
sentir um quadro: deixar-se penetrar por ele; se você se sente dentro
da pintura, o quadro é bom; ou se a pintura está dentro de você. Com
ele, o meu van Gogh, isto não se dá; ou não se dará
quando atingir um estágio mais avançado de seu trabalho.
Promete-me novos quadros, e cumpre a palavra.
Recebo cinco novas obras; ainda as tenho comigo, inúteis. Mostrei-as
a alguns críticos de arte, que torceram o nariz, como se fosse pilhéria
minha.
O autor explicou-me as primeiras. Uma eram maçãs, cerejas e um
rato degolado; confessei que não via figura alguma, e ele sentiu-se encantado.
Nem o sangue eu via? Mas ainda não era a negação da cor,
disse. Como não o era a outra: pombas no meio da rua comendo migalhas
de pão; eu via apenas algo como um espelho baço, mas certamente
estava enganado.
As outras, não sei o que são. O meu van Gogh morreu. Contaram-me
que morreu suavemente; foram-se-lhe apagando as cores da face, quando convalescia
de uma gripe, e expirou. Recebi um pacotinho com três telas, e um recado: tarefa
cumprida. Para mim, o que diferencia as telas é tão-só
o tamanho: uma menor que a outra; a terceira, pouco maior que uma tampinha de
garrafa. E que vejo nelas? Cerração. Ondas densas de cerração,
e vagas ao mesmo tempo. Um cinza frio.
Abro a janela. Esqueletos tremulam na tarde triste, estendem os braços,
gesticulam. Árvores desfolhadas.
Estou vendo o meu van Gogh, torto, o ar ingênuo, declamando o seu discurso
sem fim.