A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Caso do rato

(José Carlos Brandão)

Morar em casa térrea nesta cidade é uma temeridade. Primeiro, há o caso dos ladrões; educados pela lei da selva e acostumados a chupar prego, não há grade que os segure. Depois, há o caso das inundações, com tudo que elas trazem junto: perfumes, vírus, insetos, bichos. Bichos, sim senhor; pois, que eu saiba, ratos ainda são bichos. E assim como se diz que os ratos são os primeiros a abandonar o navio, mais que certo é que são os primeiros a abandonar os esgotos. Os terrestres - os que moram no térreo, precisava explicar? - que se cuidem.

Todo cuidado é pouco, provo e comprovo. Pois ratos não são os maiores portadores de doenças? Garantido. Mas se todo mal fosse esse, dava-se um jeito; não que seja fácil, mas é aquela velha história: o que os olhos não veem, o coração não sente.

Então há mais? O que de mais grave o rato pode trazer além de doença? Não, não digo que seja mais grave; no entanto, o bicho pode trazer o pânico total. Há o pânico das epidemias, endemias, pandemias; assim, mal surgiram notícias de cólera na região, ouvi alguém prevenindo alguém: "Olha. Os jornais sempre exageram, mas as autoridades também sempre escondem as coisas. E agora, em que se basear? Nos ratos. Fica atento nos ratos. Quando começarem a surgir ratos mortos, então a coisa está preta. Foi assim em todas as pestes."

E há o pânico individual, tipo aquele do Euclides. Vou contar a história, como ele mesmo me contou.

O Euclides estava lá na sala, muito do folgado, refesteladão na poltrona lendo o seu jornal, quando a mulher chamou:

- Euclides! Pelo amor de Deus! Corre aqui, corre!

Ele piscou devagar, pensando se largava o jornal na sala ou ia com ele para a cozinha, resmungando lá com os seus botões que a mulher só enchia fazendo tempestade num copo d'água. Então, já com a voz do desespero, ela berrou de novo:

- Vem logo! Ai!!! Acuda!!! Vem duma vez! Não, espera. Pega o revólver! Ai, eu morro!

Aí o Euclides desembestou para a cozinha:

- Que é, Luísa? Que é?

Ela mostrou a porta; ele não viu nada. Ela queria falar; a voz não saía. Fez um esforço e, mal articulando as sílabas, mostrou o rato lá adiante, sussurrando:

- No ralo... Um rato... Um rato...

Ele não ligou:

- Pô. Um rato!

- Você já viu um rato daquele tamanho? - ela disse.

Então ele viu. Uma ratazana! Do tamanho dum gato, dum gato bem grande, ele conta. Também conta que ainda tentou brincar:

- Olha o focinho dele. Está fazendo fusquinha pra gente.

- O que nós vamos fazer? - a Luísa perguntou, toda preocupada.

- Eu mato ele. Me dá a vassoura aí - o Euclides disse.

- Não. Toma cuidado! Diz que esses ratos avançam na gente - a Luísa preveniu.

Vai, não vai, pega o revólver, não pega, uma rápida discussão que o Euclides interrompeu resolvido a não deixar o rato fugir. Pegou a vassoura e avançou no rato, e o rato avançou nele. A mulher deu um grito e avançou nele também - grudou no pescoço do marido. O coitado, atacado pelo rato e pela mulher, caiu no chão. Para se levantar, teve de levantar a mulher junto. Cadê o rato? O Euclides nem teve tempo de pensar nisso e deu o maior grito da história. O rato estava dentro das suas calças.

- Me larga, Luísa! Me larga! Esse rato me mata! Sai de cima de mim, seu...

Acho que nem teve tempo de soltar o palavrão, nem de falar tanto; xingou depois, isso eu garanto. No momento, bateu a mulher na porta, esfregou, empurrou, conseguiu jogar fora. A tempo de segurar o rato que subia pela perna esquerda de sua calça larga. Felizmente não bastante larga para caber tão grande rato. Um monstro! Mostrou-me a perna toda enfaixada; disse que estava coberta de feridas. O monstro morreu estrangulado, concluiu. E sentenciou:

- Isso é o que se chama pânico. Pânico mortal.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br