A Garganta da Serpente
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O Major

(José Carlos Brandão)

Ajeitei ao seu lado direito o cobertor, a calça, a camisa e o litro de leite que eu lhe trouxera. Do lado esquerdo estavam o litro de pinga, dois cigarros, limpos, sem nenhuma marca de amassado, e um isqueiro. Me olhou com os dois olhões arregalados, injetados de sangue, e tartamudeou:

- Está escrito no Livro: a mulher vai andar pelada.

Esperei que continuasse, e nada. Ajudei:

- Deus... - também eu não soube o que dizer mais.

- Está chegando o fim dos tempos. O dois mil está chegando - ele disse.

- É. É preciso rezar - eu disse.

Ele me olhou com os olhos feios. Os olhos giraram nas órbitas. Disse:

- É preciso machucar os joelhos no chão.

Eu não soube mais o que dizer. Fui me retirando, devagar. Ouvi:

- Deus lhe pague.

Eu que pensava que o homem não ia me agradecer. Respondi:

- Amém.

O homem é o Major. Eu o conheço desde que moro nesta vila. É um velho com as pernas inchadas, cheias de feridas, escorrendo sangue e pus. Arrasta por uma e outra rua uns sacos enormes, às vezes umas caixas; mal suporta o peso; há dias em que não suporta o peso das pernas: arrasta o corpo e a bagagem pelas calçadas. Carrega tudo que tem, para lugar nenhum, para onde for. Velha tartaruga, com a casa às costas.

Meu filho fala dele como amigo. Vê humanidade nessa carcaça doente. O povo fala dele como um desgraçado, que é o que ele é. Dizem que foi um mecânico experiente, que ainda entende. Jogam os dados, hipóteses: o que o teria acontecido com o pobre diabo?

- Mulher, desengano amoroso, só pode ser - diz o Jaquim.

- Deve ser, mulher é o bicho, mulher é o demônio - concorda o Creu.

O Búrica, que quando criança era doido por futebol, discorda:

- Sabe aquele campinho perto da Estação de Triagem? A molecada ia jogar lá, a gente se matava de correr atrás da bola, depois ia tomar banho na lagoa do outro lado da Estação. Não é que tivemos que desistir de nadar e voltar pra casa suados mesmo? O Major ficava de butuca atrás das moitas, comia o cu da molecada. Eu sei por que ele ficou lelé da cuca.

Eu me calo. Tomo o meu copo de cerveja, limpo o bigode com as costas da mão. O Major deitado de lado na calçada, tenta arrastar seus trecos. As pernas de elefante doente, o pus doendo ao sol. Os dentes brancos brilham. Os olhos ingênuos choram e riem.

- Por que o nome Major? - uma vez eu lhe perguntei.

- Todo mundo se esconde atrás de um título. Não é bonito isso? - ele riu com gosto, depois tentou esconder a cara, era como se quisesse enfiar a cara no sovaco.

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