Ajeitei ao seu lado direito o cobertor, a calça, a camisa e o litro de
leite que eu lhe trouxera. Do lado esquerdo estavam o litro de pinga, dois cigarros,
limpos, sem nenhuma marca de amassado, e um isqueiro. Me olhou com os dois olhões
arregalados, injetados de sangue, e tartamudeou:
- Está escrito no Livro: a mulher vai andar pelada.
Esperei que continuasse, e nada. Ajudei:
- Deus... - também eu não soube o que dizer mais.
- Está chegando o fim dos tempos. O dois mil está chegando - ele
disse.
- É. É preciso rezar - eu disse.
Ele me olhou com os olhos feios. Os olhos giraram nas órbitas. Disse:
- É preciso machucar os joelhos no chão.
Eu não soube mais o que dizer. Fui me retirando, devagar. Ouvi:
- Deus lhe pague.
Eu que pensava que o homem não ia me agradecer. Respondi:
- Amém.
O homem é o Major. Eu o conheço desde que moro nesta vila. É
um velho com as pernas inchadas, cheias de feridas, escorrendo sangue e pus.
Arrasta por uma e outra rua uns sacos enormes, às vezes umas caixas;
mal suporta o peso; há dias em que não suporta o peso das pernas:
arrasta o corpo e a bagagem pelas calçadas. Carrega tudo que tem, para
lugar nenhum, para onde for. Velha tartaruga, com a casa às costas.
Meu filho fala dele como amigo. Vê humanidade nessa carcaça doente.
O povo fala dele como um desgraçado, que é o que ele é.
Dizem que foi um mecânico experiente, que ainda entende. Jogam os dados,
hipóteses: o que o teria acontecido com o pobre diabo?
- Mulher, desengano amoroso, só pode ser - diz o Jaquim.
- Deve ser, mulher é o bicho, mulher é o demônio - concorda
o Creu.
O Búrica, que quando criança era doido por futebol, discorda:
- Sabe aquele campinho perto da Estação de Triagem? A molecada
ia jogar lá, a gente se matava de correr atrás da bola, depois
ia tomar banho na lagoa do outro lado da Estação. Não é
que tivemos que desistir de nadar e voltar pra casa suados mesmo? O Major ficava
de butuca atrás das moitas, comia o cu da molecada. Eu sei por que ele
ficou lelé da cuca.
Eu me calo. Tomo o meu copo de cerveja, limpo o bigode com as costas da mão.
O Major deitado de lado na calçada, tenta arrastar seus trecos. As pernas
de elefante doente, o pus doendo ao sol. Os dentes brancos brilham. Os olhos
ingênuos choram e riem.
- Por que o nome Major? - uma vez eu lhe perguntei.
- Todo mundo se esconde atrás de um título. Não é
bonito isso? - ele riu com gosto, depois tentou esconder a cara, era como se
quisesse enfiar a cara no sovaco.