O dia está frio, fim de inverno, a primavera ainda está por vir,
poucas pessoas indo e vindo pelas ruas. Quase nada para fazer. Fim de tarde
tranquilo. Através do vidro transparente da janela do meu quarto,
vejo lá fora um dia de céu cinzento, sem o sol brilhante de outros
dias. Aquieto-me num canto e continuo a olhar os carros passando. De vez em
quando, vejo uma criança qualquer saltitando de uma calçada para
outra, que, caminhando até a esquina, subitamente desaparece sob o meu
olhar intrigado. Fico sem saber qual é o seu destino.
Ouço um bem-te-vi cantarolar solitariamente na copa de uma árvore,
na tentativa sem sucesso de alegrar o dia. Procuro-o com o meu olhar curioso
e logo vejo-o lá em cima, olhando atentamente para todos os lados, como
se estivesse, desesperadamente, à procura de alguém. Ele salta
para outro galho, dá mais um canto forte, olha para um lado, para outro
e, como não encontra quem procura, bate as asas em direção
a outra árvore mais alta ainda, de modo que, a partir daí, não
consigo vê-lo mais.
Volto para dentro do quarto. Vou até o armário onde há,
no interior da porta, um espelho. Lá me vejo quase que por inteiro, da
cabeça aos pés. Ao longe, avisto alguma coisa diferente na imagem
refletida do meu rosto no grande espelho. Aproximo-me e, aliviado, certifico-me
de que não é nada demais, a não ser mais um sinal deixado
lá, junto com os demais, pelo danado do tempo que vai passando rapidamente,
sem que a gente se aperceba disto.
Por alguns instantes, as lembranças de um passado não muito distante
vêm à minha memória. Como num passe de mágica, vejo-me
de pés descalços, de calças curtas ainda, debaixo de uma
grande árvore, pisando sobre folhas secas. Ouço o estalar dos
gravetos e das folhas na medida em que os meus pequenos pés tocam o solo
fresco do grande pomar. Vejo restos diversos de frutas por todos os lados. De
repente, um pássaro de peito amarelado, asas cinza e bico comprido salta
na minha frente e, estufando o peito, canta sua canção, desconhecida
para mim ainda, um garoto de 9 anos, acostumado a viver na cidade. Era um bem-te-vi.
Volto da minha viagem ao passado, vivido brevemente numa gostosa fazenda do
interior de Minas Gerais. Novamente, caminho até a janela e de lá
tento em vão avistar novamente o bem-te-vi, que já se fora há
muito tempo. Olho na direção da esquina, depois do outro lado
da rua, mas não avisto qualquer criança que me faça lembrar
da minha infância. Fecho a janela e vou me deitar no confortável
sofá.
Pensativo, continuo a refletir, a fim de me situar no tempo. O tempo de hoje
e o tempo de ontem. O tempo do homem e o tempo da criança. Afinal, em
qual dos dois tempos se vive melhor? Respondo a mim mesmo: não sei. Só
sei que, quando criança não se conhece a realidade, a ilusão
permeia nossos sonhos. Todavia, quando adulto, os sonhos tornam-se rarefeitos
e a realidade predominante passa a moldar nossas almas, como formas de pães
que se ajustam com o passar do tempo. O tamanho do pão depende do tamanho
da forma, não o contrário, ou seja, não é permitido
ao pão crescer mais do que a própria forma. Por isso, vemos almas
pequeninas se debatendo com pequeninos problemas, oprimidas por realidades pequenas
e ajustadas ao longo do tempo por fortes torniquetes impostos pela sociedade.
Com efeito, se permitido fosse a uma criança realizar todos os seus sonhos,
pergunto-me: o que seria do mundo? Provavelmente, seria muito mais humano e
justo, pois a criança, dentro da sua inocência, jamais tolheria
o sonho de uma outra e, assim, viveríamos todos num mundo encantado de
sonhos. Não seria extraordinário?
Meus olhos, repentinamente, tornam-se pesados demais para permanecerem abertos.
Vou fechando-os devagarinho. Ouço um barulho qualquer que vem da cozinha,
um outro que vem distante da rua, não muito longe dali. Não consigo
distingui-los. Minha respiração torna-se cadenciada. A brisa que
sopra da janela da sala me faz encolher como se eu fosse um verdadeiro caracol.
Sem me dar conta, já estou dormindo.
Vejo alguém vindo na minha direção. É minha filhinha
de 2 anos e meio. Ela me estende a sua mãozinha e me puxa insistentemente
para que eu a acompanhe. Sem entender o que está se passando, deixo me
levar ouvindo seus apelos na sua linguagem.
- Vem qui, papaia. Vem qui, papaia.
Logo, vieram ao nosso encontro, correndo como loucos, dois meninos, um de 14
anos e outro de 10. Chegaram nos abraçando e gritando:
- Papai, papai. Nós conseguimos.
- Conseguiram o quê? - indaguei. - Por que estão tão felizes?
Recebi como resposta num único tom:
- Nós conseguimos o que você queria. Lembra-se?
Confuso, perguntei-lhes:
- Conseguiram o quê, meninos? O que é que eu tanto queria?
- Papai, você não queria encontrar um lugar onde as crianças
não crescessem como se fosse a Terra do Nunca do filme do Peter Pan?
Pois então. Nós encontramos. Venha ver.
Caminhamos juntos por algumas trilhas que a mim pareciam familiares. Quando
vimos, estávamos entrando num vasto pomar e uma grande transformação
acontecia comigo. Meus pés ficaram descalços, minhas roupas tornaram-se
curtas e o meu tamanho diminuiu, diminuiu até ficar da altura de um menino
de 9 anos. Sem me incomodar com a metamorfose, fui logo dizendo:
- Conheço este lugar. Aqui é a fazenda onde eu morei quando era
criança. Venham ver o abacateiro. Olhem aqueles pés de jabuticaba
sabará. Esta água corrente em volta das jabuticabeiras é
limpinha. Se quiserem, podem beber dela. Naquele pé de manga enorme lá
no fundo do pomar, quando é época, dá mangas docinhas e
amarelinhas, só vendo que beleza. Vamos descer mais um pouco para vocês
conhecerem a cachoeira da pedra lisa, onde, nas tardes de domingo, eu e meu
irmão escorregávamos até cair no lago.
As crianças me acompanharam olhando tudo à nossa volta. Nos seus
rostos, notavam-se olhares curiosos arregalados e sorrisos estampados...
Assim fomos até a cachoeira, depois à horta e, em seguida, ao
curral. Enfim, perambulamos por todos os lugares nos arredores da casa da fazenda.
Vez ou outra chupávamos laranjas, espantávamos passarinhos, corríamos
atrás de galinhas, brincávamos com os porcos, jogávamos
bola no campinho, ou seja, pintávamos o sete.
Até que veio o entardecer e todos nós fomos ficando muito cansados,
cansados de tanto brincar. Deitamos de barriga para cima no gramado verde, em
frente à grande casa da fazenda, olhando o céu azul cheio de nuvens
brancas, formando figuras, e fomos, cada um por si, aos poucos, adormecendo,
adormecendo...
Ouvi bem ao longe, novamente, a voz da minha menininha que me sacudia dizendo:
- Atorda, papaia. Atorda. Mamãia. Mamãia...