Tema da aula: 'Portugal de brasileiro'. Exibição do filme Língua:
vidas em português. No plano de aulas pra alfabetizandos adultos a proposta
de atividade era que perguntassem aos portugueses, por meio de uma carta, o
que vieram fazer no Brasil, como chegaram, quais as semelhanças das gerações
suburbanas perguntando sobre si mesmas lusófonas. Ficaram boas as cartas.
Eu estava lendo quando Valdemar chegou.
Foi mais ou menos assim: O Valdemar meu ex-marido ainda era menino e não
podia ter mais que nove anos. Nunca mais. O pai era ausente, como a maioria
dos pais daquela geração, sempre ocupadíssimos, entre trabalhos,
afazeres e outras.
Mas, numa manhã qualquer, num daqueles dias luminosos que em São
Paulo tem, tinham saído juntos, o Valdemar e seu pai português,
talvez pra tomar um picolé. Quando voltavam pra o apartamento, felizes
da vida, o pai bem humorado, e o filho encantado com o sorvete, viram aquela
cena inusitada: dois raparigos se engalfinhados numa briga feroz.
Um deles era um garoto que o pai já tinha visto brincando com o filho,
e o outro; um rapaz mais velho e imensamente maior.
O menor estava apanhando pra chuchu.
Brigavam por causa de umas bolas de gude que o grandalhão queria tirar
do moleque. O filho queria ir pra casa, mas o pai segurava sua mão com
força. E então, à queima roupa, o pai disparou a fatídica
pergunta:
- Você não vai fazer nada?
Foi ali que o menino foi colocado, pela primeira vez, diante de um dilema moral.
Porque a escolha era entre o ruim e o muito ruim. Ou o garoto não reagia,
prostrado pelo medo, e seria julgado pelo pai como um covarde ou intercedia
a favor de seu amigo e, provavelmente, levaria uma surra.
Foi assim que ele aprendeu a primeira lição ética de sua
vida, daquelas que não se esquece: numa luta entre desiguais, a indiferença
é sempre a cumplicidade com o mais forte. As esquinas perigosas da história.
Eu era tão indiferente a Valdemar quando lembrei dessa história
que eu inventei sobre ele. Eu vivia inventando histórias sobre ele, martirizando
com sarcasmo seu imaginário com o pai, até que, nesse dia, ele
tomou uma atitude, mesmo sabendo que seria surrado por ninguém menos
que Maria Bethânia.
Valdemar Jorge parecia um pateta segurando os ingressos, quando apareceu no
meio da cozinha de repente, como se quisesse dar um susto nas coisas. A segunda
via do cartão de crédito era pra indicar que aqueles ingressinhos
custaram uma pequena fortuna, coisa que às vezes ele exibe por falta
de admiração ao dinheiro, claro.
Andamos conversando, novamente, durante o decorrer da semana. Pode ser que isso
tenha inspirado alguma coisa perdida, escondia debaixo de nós e dentro
dele que o fez considerar a possibilidade de irmos ao teatro, ao cinema. Disse
que recebeu de um amigo um e-mail, avisando sobre o espetáculo. Disse
que se me avisasse antes eu poderia não topar. Ele sempre diz isso. Disse
que poderemos conquistar alguns espaços ainda, juntos. Disse que o show
era de Maria Bethânia.
Ele conseguiu.
Debrucei aquelas pilhas de cartas portuguesas sobre a escrivaninha, de costas
pra ele, tentando esconder a surpresa instalada por toda minha parte. Eu tinha
acabado de pensar em Valdemar pela lente de Valério Arcary, criando coisas
de meninos diante de dilemas morais. Tinha acabado de pensar como tenho pena
dele. Agora penso que tenho pena mesmo porque ele quer me agradar.
Ao oferecer os dois convites ele necessariamente acionava todos os objetos do
apartamento com a delicadeza de um tempo permanente de se ver. Até que
pra professora que compra cada capa de disco de Maria Bethânia desde o
Teatro Opinião, eu estou muito chique. Eu estou radiante, eu estou desarmada,
eu estou convencida.
Tudo bem que eu acho um absurdo pagar tanto pra ver quem eu vejo todo dia, na
escrivaninha, dentro das minhas coisas. Até porque, quando eu vi a fita
da (re)volta dos Doces Bárbaros eu me assustei, porque provavelmente,
eu estava naquela plateia, aqueles eventos no Ibirapuera. Eu não
vi nada, tomei chuva, fumei maconha, mas ouvia tudo que ela cantava com a alma
encharcada. Poderia ter feito isso antes, ter assistido a Bethânia em
casas noturnas antes, mas nunca tive coragem, eu achava que ia morrer. Agora
ele me olha e dessa vez não me castiga.
Dentro do carro suas roupas o acomodam na função de motorista.
Servem de conforto pra ele. Eu também fico confortável pela via
Funchal, apesar daquele cheiro insuportável de veneno quando passamos
pela marginal. Deutsche Grammophon.
Vladimir Horrowitz. A coletânea começa com Robert Schumann (1810-1856),
Kreisleriana, op. 16. Depois vem Domenico Scarlatti (1685-1757), com Sonata
in B minor, k. 87 (L. 33) e Sonata in E major, k. 135 (L. 224). O próximo
é Franz Liszt (1811-1886), com Impromptu ("Noctune") in F Sharp
major (1872). Em seguida ele executa Valse oubliée n° 1. O penúltimo
é Alexander Scriabin (1872-1915) com Etude in D Sharp minor, op. 8 n°
12. E, por fim, Franz Schubert (1797-1828), com Impromptu in B flat major, D
935 n° 3 e um arranjo de Carl Tausig (1814-1871) de Military March in D
flat major, D. 733, n° 1. Printed in west Germany.
Um papo e tanto, como se pode notar, principalmente pra quem viveu com um músico
autodidata no passado, pra se entediar, jeito que ela, a paciência, já
ficava ao lado de Valdemar há alguns meses pelo menos. Mas o momento
era de encanto maior, não estava importando o meu tédio nem a
minha loucura. Estava importando o preparo espiritual que eu precisaria ter
pra vê-la. Ah infinito delírio chamado desejo. Esse cara tem me
consumido. Eu sou a chuva que lança areia do Saara sobre os automóveis
de Roma. Espelho meu, existe alguém pior que eu? Eu sou Midas, e tudo
o que eu toco vira ouro. Luzia Luluza está lá me esperando. Não
haverá nenhuma Luzia Luluza me esperando. Essa vontade de ser ator acaba
me matando. Beba comigo a gota de sangue final. Todos os discos preferidos se
engalfinhando aos que não ouço há muito tempo, os que já
têm letras esquecidas, os que meu acompanhamento, quando uso as coxas
como instrumento de percussão, afina e desafina, mas não perde
o ritmo de batuques arrebatados à minha memória e espírito.
Valdemar não participa de nada disso. Sabe muitas letras, muitas delas
eu percebi o encanto do lado dele, de fato, principalmente os álbuns
mais recentes. O vermelho. Maricotinha. Âmbar. As canções
que você fez pra mim eu ganhei dele de aniversário.
Na entrada da casa noturna há uma luz sobre a pequena mesa, com exemplares
do novo cd à venda. Há uma mulher atraente do outro lado da mesa
vendendo. Outras mulheres mais atraentes ainda comprando. Assim eu entrei naquela
roda, querendo ver a capa do disco. A capa do disco tinha aquela mesma figura
do pôster, que eu não vi logo de cara, ainda bem, porque tive certeza
de que ia morrer. Era a pintura mais linda do mundo e eu sabia que aquela sobre
a suçuarana era eu, era eu. Jurema, a cabocla. Eu ainda não sabia
que a saia da cabocla pintada ia ser a mesma de Bethânia no palco, de
maneira que eu fiquei dias pra descobrir o que estava acontecendo com aquela
saia na minha cabeça. Na capa de Gringo Cardia a cabocla usava verde,
branco e vermelho. A saia de Bethânia tem uma multidão por dentro
quando ela anda no palco e flutua em minhas imagens no meio das cores. Até
hoje eu não sei direito se é Jurema, se é Iemanjá
numa versão campestre ou as duas coisas junto com outras que eu não
sei explicar, mas que sou eu.
As mesinhas eram desconfortáveis.
Devo voltar a Valdemar pra que ele não diga a verdade, que ele e eu estamos
um pouco desconfortáveis um com o outro. Pra ele, a noite seria perfeita.
Chegamos uns vinte minutos adiantados ao salão, deveríamos pedir
um vinho. Antes do pedido é necessário olhar ao redor, como quem
pesca no ar o tipo de fome que deseja sentir pra pedir ao garçom algo
pra comprá-la. No ambiente predominantemente preto, com luzes pouco pronunciadas,
no meio de muita gente desconhecida e bonita, pensei num peixe, num prato com
peixe, água de coco, óleo de dendê, bananas cozidas, que
engraçado.
Era pra ficar pensando em vinho, whisky, champagne, conhaque. Parecia que eu
sentia o cheiro de Bethânia e era cheiro de mar. Não combinava,
eu queria peixe. Ele disse que não tinha, ficou com o cardápio
na mão e eu com preguiça de conferir. Se fosse uma brincadeira
dele, deixei claro que era sem graça, mas não tinha peixe no cardápio
mesmo. Uma heresia pra mim, sorte dele.
Nessa de ficar esperando que tipo de fome que embalaria meu corpo, chegam nossas
companheiras de espetáculo. Valdemar é mais fechado do que eu,
mas eu pude sorrir e dar boa noite a elas. Era um casal, não adiantava
eu dizer isso pra ele porque ele não perceberia jamais. Ele nem acredita
que as lésbicas existem, nem os gays, nada. Elas eram simples, sem maquiagem,
as peles limpas como o olhar de cada uma, embora olhassem pra nós escondido,
fingindo que viam os clipes das próximas atrações da casa
de shows. A gente também olhava pra elas escondido. Valdemar provavelmente
observava que a da direita tinha uma concavidade nasal maior do que a outra,
só não conseguia descobrir qual. E que a outra tinha uma respiração
perfeita, o nariz pequeno como a da criança que ele queria que eu tivesse,
quando declarou sua enorme aptidão paterna. Observaria que as duas são
gordinhas, que nenhuma das duas usa batom, que uma tira fotos adoidado e a outra
tem mechas vermelhas no cabelo curtinho e que são femininas o suficiente
pra que ele as pudesse desejar, ele que parece não sentir nada por si
mesmo.
A minha vontade foi oferecer às meninas-senhoras que tomassem algo conosco,
que nos dessem a honra de dividir o espetáculo com elas, porque a alegria
sem afeto é menos que a tristeza. E o afeto pra com quem a gente não
conhece vale mais, basta colocar-se no lugar de quem recebe. Por mim nós
tomaríamos o cardápio da mão dele, encontraríamos
uma belíssima lagosta, que eu nem gosto, mas degustaria, pelo gosto de
mar que a carne dele garante. Pediríamos uma cachaça, aquela de
rolha, pimentas coloridas e apimentadas, cheirosas, românticas, quando
pimenta é romântico. E trocaríamos confidências sobre
a presença de Maria Bethânia em nossas vidas de mulheres complicadas,
cheias de armadilhas e fetiches. E de como elas se conheceram, de como eu conheci
Valdemar e de como eu queria apresentá-las a Terria, uma amiga. E de
como eu fico sem graça quando me vejo ao lado de um surdo-mudo otorrinolaringologista.
Ninguém pediu nada pra comer. Valdemar disse de novo que odiava peixe,
bom que não tinha. A indiferença é sempre a cumplicidade
com o mais forte, seu pai no caso, que o obrigava a gostar de bacalhau.
Foi aí que as luzes se apagaram e meu coração era arranhado
por minha língua dentro de minha boca. Eu mantinha os dentes presos uns
aos outros pra não morder o órgão que queria saltar emocionado
pra o chão, subir ao palco e se estilhaçar contra o telão
que descia com a cara de Ferreira Gullar, recitando um verso que eu só
fui saber depois, porque na hora eu entrei num transe indescritível.
Lembrei que também fui aprender a ler pra ensinar meus camaradas.
Abancada a uma escrivaninha postiça em São Paulo, na rua General
Jardim, meio perto da Lopes Chaves, de repente senti um ciúme do vento,
fiquei trêmula, muito comovida, com as cartas que as mulheres alfabetizandas
que eu ensino escreveram aos seus ancestrais portugueses. Quase todas elas vieram
do norte, meu deus. Muito longe de mim na escuridão ativa da noite que
caiu, as pálidas e magras de cabelos presos a presilhas evangélicas,
depois de correrem subúrbio adentro de minha sala pra suas casas, faz
pouco se deitaram, estão dormindo. Essas mulheres são brasileiras
que nem eu.
Como índia estou Europa i lá em Portugal é tudo deferente
os palacis muito grande calçadas largas varandas com caramachaãos
todo muito bonito vocês a e no Brasil ia ficar adimirados o que eles viero
fazer no Brasil já que viro só mente a vida que nos índios
viviam quando a via tantas cosas bonitas pra sivê é isso que mipregunto.