A Garganta da Serpente
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Bodas

(Janaína Behling)

Você vive como quem inventa o mundo tudo de novo sem olhar pra nada e consegue observar somente coisas muito pequenas quase invisíveis e daí tirar tanta informação. Chamam a isso de sensibilidade. Nem percebe que passa pelas pessoas feito uma bala deslocando o ar tão rapidamente parece que querendo aniquilar a existência delas, sem razão, sem a menor necessidade, pior, sem a menor intenção. E parece que apesar de tanta frieza cada passo seu é na verdade uma bênção, uma chance pra as coisas não padecerem tanto. Uma superioridade mansa, um enigma, uma paixão estranha. As paixões são estranhas na sua mão que me protege dos abismos de cada espaço na frente de outros, os abismos feitos por você mesma. Engraçado porque assim como o chão e as paredes a própria atmosfera se resigna, como se você fosse uma santa.

Nunca fui santa...

Eu sei. No fundo é tudo humildade né? Quando eu não entendo demais das coisas o duro é esse silêncio aí, tem dias mórbidos dentro dos seus pensamentos e sabe tudo de memória, radiografa as memórias das pessoas, seus sentimentos, suas dores, seus suplícios. Vou acabar aprendendo alguma coisa com esse silêncio. Seus poderes vêm do silêncio? Como administrar seus silêncios? Quer mais café?

Quero...

Domingo passado todo mundo perguntou de você lá embaixo. Seu Paolo, dona Solange, a síndica. Veio até a dona Virgínia, da Canuto Duval. Eles também são estranhos eu acho, acho mesmo, mas dizem que gostam do seu jeito de arrumar o carteado, como desce as canastras, como olha pras cartas deles parece que sabendo o que tem dentro. Vai ver por isso perguntam, como se constituíssem um clã, um pão, um recheio, sobre as suas coisas. Lógico, não perguntam assim diretamente, eu na verdade intuo que eles perguntam de você com os olhos, assim como faz quando quer me perguntar algo. São assim misteriosos. Gente falando pouco me agride sabia? O doutor Marin disse que você é bipolar. Sabe o que é isso? Gente muito perigosa. Um dia está bem, no outro quer morrer, no outro passa pelas duas coisas em razão de segundos, impressionante. Deve ter uma porção de outras síndromes em você. Sabe o que é uma síndrome? Já ouvi falar em síndrome de surdez. Será que bipolar vai ensurdecendo também, com o tempo?

Ouço bem...

Devo falar demais então. Vai ver é isso eu falo demais, eu gesticulo, eu tremo, eu rodopio, embanano, perco a linha de raciocínio, retomo, perco de novo, retomo. Vai ver é por isso que não acho você tão inteligente como o pessoal do carteado acha, como seus alunos acham. Assumo o dia como uma coisa pequena e você não. Sei o quanto te incomoda o fato de eu sair pra lavar o carro e não achar as chaves, nem meus óculos, nem meus documentos. E quem convive com você sabe de desastre muito maior. Cozinha que é uma maravilha, mas se tiver de repetir as receitas não sabe. Se não sou eu a cuidar da casa. Passa às vezes semenas, até meses, sem botar um tostão em casa. Quer dar essas aulas aí pros fodidos. Agora anda com um caderno verde pra cima e pra baixo, não sabe nem como ler aquelas palavras. Deu pra decifrar enigmas agora? De mãe de santo ainda por cima. Bruxaria. Vai acabar se lascando. Seu Pelegrini disse que poderia trabalhar com ele na editora ou no jornal. Eu sou só repórter, não tenho seus talentos, vai lá falar com ele.

Não quero...

E depois, na qualidade de jornalista devo te informar que essas coisas não são contos, são crônicas. Eu sei muito bem o que é uma crônica e sei melhor ainda a diferença de uma crônica pra um conto. Tem de ter clímax, e suas histórias são sem clímax.

O seu Pelegrini gosta tanto das coisas que você escreve, o que custa ganhar uns trocos com isso? Pode ser pecado ficar guardando tudo dentro dessas gavetas aí. Sabia? E se for uma missão espiritual ficar escrevendo essas coisas? E se essas palavras todas aí servirem de algum tipo de alívio pra alguém? Sei lá. Pode ser somente uma distração, que seja, não dá pra ficar guardando isso aí por causa da intensidade entendeu? Se pra me ajudar a pagar despesas não serve, pelo menos deve servir pra alguma coisa. Seu irmão esteve aqui semana passada. Disse que se preocupa com você. Antes, pelo menos, vocês bebiam umas cervejas juntos, ele te arrumava uns bicos, salvava.

Nada, bobagem...

Por quê? Você não gosta de ninguém não é? Você gosta de mim ainda, pelo menos?

Eu te amo Rose...

Ama quanto? Até quando você ainda vai me amar? Hein? Eu devo ser feita de açúcar na sua imaginação. Ã? Devo estar derretendo e nem é capaz de perceber. Venho pensando nisso há alguns anos sabia? Estou derretendo nessa relação.

Deve ter gente muito mais interessante por aí. Menos chata, você é uma chata. Escreve, escreve, escreve. Se eu tivesse esses olhos aí, essa cor de pele, ta bom que ia ficar escrevendo o tempo todo. Ia era namorar bastante, encontrar coroas mais jovens que eu, acabar de vez com esse suplício. Aqui tem muitas coroas da nossa idade em São Paulo loucas por pessoas comunicativas como eu. Eu sei, o tempo, passou, mas sou jovem por dentro sabia? Sou muito mais jovem que você.

Vai querida, pode ir.

Não vou. Sabe por quê? Prefiro ficar aqui preenchendo sua vida comigo. O que eu vi em você eu não sei. Rumino. Rumino. Rumino.

Onde você guardou a cigarreira vermelha, aquela, de quando nos conhecemos? Fumando eu me distraio e penso nas lembranças, muito melhor.

No armário.

Lá. Onde tem aquele monte de lixo. É cartão é selo, é entrada de cinema é bolinha, é tampinha de garrafa é pilha, é fotografia de estranhos e estranhas é relógio. É pedaço de livro é caneta. É embalagem de bala é botão. O que mais tem lá?

A cigarreira, sempre cheia.

Engraçado Lígia. Até hoje você não presta atenção em mim.

(01/06/2009)

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