Passam horas por dia sentados ao telefone. Quando alguém os atende,
precisam ser rápidos, solícitos e alegres. O sorriso deve ser
estampado na voz. Precisam vender, atingir metas, multiplicar o lucro das empresas.
O telefone toca. O cliente atende.
- Bom dia!
Silêncio do lado oposto da trincheira. Pelo tom de voz, pela saudação,
nossos treinados ouvidos os identificam. Começa novo assédio.
O pessoal do telemarketing volta ao ataque.
- Bom dia! Insiste.
- O que há de bom no dia de hoje? Meu amigo é um gozador, já
ciente do que se trata, veste sua pior face e escancara a desumanidade.
- Com quem estou falando?
- Com quem deseja falar? Sente o engasgo na outra contra-parte. Será
um dia difícil pensa o soldado das vendas. Mais um cliente duro na queda.
- Sr. Antunes? É da casa do Sr. Antunes?
- Não. Meu amigo desliga. Ele era o Antunes.
Diálogos como esse, e alguns ainda piores são travados todos os
dias, incansavelmente, nas extensas regiões do mundo capitalista. Querem
nos pegar de qualquer maneira, vendem de tudo que se possa produzir. Não
há limites para a voracidade do sistema. Que culpa têm aqueles
milhares de rapazes e moças que sujeitam-se a vender por telefone um
produto com o qual não têm nenhuma simpatia muitas das vezes? A
necessidade de sobrevivência levou-os a este ponto.
Trabalhar como atendente é uma profissão quase obrigatória
para os que ingressam no mercado de trabalho. Graças a este contingente
o número de camelôs é muito menor do que seria. O que preferimos?
Mais gente na rua, ou de vez em quando nos rendermos aos apelos do telemarketing?
Um dia desses caí na armadilha:
- Boa tarde? Sr. Jurandir?
- Ele mesmo.
- Como vai tudo bem? O sr. é um cliente especial de nossa empresa, de
tal forma que estamos transformando o seu cartão Gold em triplo-Gold,
eu sei lá o que aquilo queria dizer, com muitas vantagens, muitos estabelecimentos
novos, com elevação do seu limite de compras, o que significa
que vou poder gastar mais, "podendo" sempre o sr. contar com a acessória
do nosso cartão. Posso "estar enviando", o irritante "gerundismo"
ataca de novo, o novo cartão Triplo-Gold para o senhor, sem nenhum acréscimo?
- Eu não terei que pagar nada a mais por isso?
- Absolutamente nada, o seu cartão terá um "up-grade",
achei que fosse coisa da informática, especial e assim poderá
contar com mais vantagens. Eu nunca soube quais eram as vantagens do velho cartão,
quiçá do novo.
Não sei bem ao certo o porquê, mas aceitei a oferta. Estava cansado.
Fui acordado pela ligação no meio da minha sagrada soneca vespertina,
havia chegado de mais uma jornada de 48 horas de plantão fiscal, estava
louco para me livrar da atendente. A voz era agradável, feminina, persuasiva,
não consegui ser mal-educado. Se fosse voz masculina com certeza eu teria
desligado como fez o Antunes, porém eu fraquejei. Aceitei aquilo que
me ofereciam, ganharia um cartão de crédito com superpoderes,
sem nenhuma noção clara de qualquer vantagem. Talvez apenas desejasse
que tudo corresse rapidamente. A atendente disse que confirmaria alguns dados
e com isso perdi mais alguns minutos de soneca.
O sol tornava-se cada vez mais quente. Aos poucos fui despertando de minha sonolência
habitual e uma voz me disse do íntimo: mas que diabos está fazendo?
Não podia ter dispensado essa chamada a mais tempo? Está perdendo
o sono, a tarde, a saúde, você é um trabalhador, merece
esse descanso. Minutos tortuosos se passaram:
- Seu Jurandir, para finalizar vou "estar transferindo-o" para uma
avaliação de nosso atendimento. Mais um gerúndio e meu
bom-humor ameaçava revoltar-se. Aguarde por favor. Palavra mágica,
"por favor" sempre me obriga a ser educado, mesmo contrariado.
Voz masculina:
- Sr. Jurandir, boa tarde.
- Sim. Já quase não dei boa tarde.
- Preciso confirmar alguns dados.
Nova confirmação de dados. E uma questão fatal:
- Posso confirmar seu novo cartão Triplo-Gold com um seguro adicional
para perda ou roubo por apenas r$ 3,90 por mês?
- Não.
- O sr. não quer o seu novo cartão triplo-Gold com o seguro ou
quer apenas dispensar o seguro.
- Quero dispensar o seguro. Na verdade queria que todos fossem para o inferno,
o cartão, os atendentes e até eu mesmo.
- O sr. tem certeza?
- Absoluta.
- Assim mesmo "estarei enviando" o cartão Triplo-Gold que deverá
chegar no endereço que o sr. confirmou para que o desbloqueie. O Sr.
confirma?
- Confirmo. Despedimo-nos. Ele educado. Eu na bronca. Telefone desligado.
O cartão chegou alguns dias depois. Era igual ao outro, simplesmente
tinha os dizeres Triplo-Gold no lugar de Gold e uma etiqueta com número
para confirmar o desbloqueio. Não liguei para a operadora. Alguns dias
depois me ligaram. Voz masculina. Perderam pontos. Não queria mais a
tal "up-grade" e nem o cartão Gold. O atendente tentou de várias
formas me falar das novas vantagens sem especificá-las. Diante da minha
completa falta de boa-vontade desligou. Continuei com meu simples cartão
Gold, com menos vantagens.
Semanas se passaram e novamente me ligaram para um novo "up-grade".
Vencido pelo cansaço aceitei. Recebi o novo cartão e hoje tenho
um Triplo-Gold, sem saber ao certo o que isso significa.