Encontrei vestígios de vida na alma humana: uma lágrima caia
de um rosto petrificado pela morte de seu pai. A lágrima era de vidro
derretido, o rosto era uma máscara de aziago resplendor.
Deus era louvado na antessala do velório. Todos cantavam a alegria de
estar com Deus, na morada celestial.
Eu sempre fui materialista dialético, no começo não sabia
bem o que significava, e existencialista apaixonado (?) por Kierkegaard e Nietzsche,
tendo aprendido desde os dezoito anos, graças às lições
paternas, que "Deus morreu na cruz".
Não gostava de entrar em igreja, de religião nenhuma; nem mesmo
passar muito tempo em frente a uma igreja. Ouvira dizer, de amigos adolescentes
filhos de pais materialistas, que elas enfeitiçam as pessoas. Também,
era apagar da memória toda uma história. Ademais, não se
chora pelos mortos: "aos mortos cuidarem de seus próprios mortos".
Meu pai, especialmente por ser um grande comunista, era um grande leitor da
Bíblia. Ele queria conhecer tudo para tirar suas conclusões: "A
força para viver está dentro de nós mesmos: a história,
a memória, a existência nos ensinam a ser; desta forma estamos
sempre prontos para receber o perecimento físico: nossa história
ficará. Por ela não choraremos. A história é a continuação
de nosso viver. Isso é eterno. Nada mais".
Lembro-me sempre de um dia, quando era ainda adolescente, cerca de 13 anos,
e vinha-mos, à noite, de um sítio de um amigo de meu pai.
Tinha sido um dia de muita chuva. Os riachos corriam com barulho. Nós
teríamos de atravessar um rio em dois lugares para poder chegarmos a
nossa casa. Já estava totalmente escuro, nós estávamos
todos muito molhados, as roupas, as roupas coladas em nossos corpos. Éramos
quatro: meu pai e seus três filhos; eu era o caçula. Os outros
dois eram bem mais velhos que eu, já homens feitos. Estavam passando
suas férias dos estudos na capital. Já eram universitários.
Quando passamos na primeira parte do rio, tudo bem; as águas estavam
baixas, não houve problema. O rio fazia uma curva, nos obrigando a cruzá-lo
duas vezes para podermos chegar a nosso destino. Andamos mais uns mil metros
e chegamos ao outro trecho, que ficava bem próximo de nossa casa. As
chuvas na cabeceira do pequeno rio tinham sido bem mais fortes. Quando chegamos
à beira do rio, eis que estava com forte correnteza, água barrenta,
cheio, de lado a lado. Estava escuro.
Meu pai, homem de grande experiência e valentia, achou que dava pra passar:
botou os filhos um pouco à sua frente, bem próximos de sua visão,
e eu bem a seu lado; ele ia observando a todos. Quando entramos na água,
meu coração acelerou, fiquei amedrontado. Jamais entraria sozinho
em um rio daquele jeito. Quando entrei com ele, ganhei força, estava
atravessando com autoridade, nem parecia um adolescente de apenas treze anos.
A presença dele foi minha força maior. Ainda não sabia
nada de materialismo dialético ou utópico, nunca tinha lido Nietzsche
ou Sartre; pouca coisa conhecia de literatura. Conhecia um pouco o valor do
homem por meu pai, por sua vida; nada de religião a me ensinar, a me
amedrontar, sempre botando a responsabilidade sobre uma força superior.
O corpo estava lá. As orações sendo feitas. Eu era já
um homem. A universidade amadureceu minha cabeça; meu pai agora era como
um menino. Eu tinha profundo respeito por ele: mas as ideias não
eram mais as mesmas. Não havia mais comunismo, eu conhecia o que era
materialismo dialético e utópico, conhecia perfeitamente O Capital,
era profundo conhecedor da teoria marxista. Lênin caiu com o muro. Talvez
Deus não tenha morrido na cruz.
Meu pai casou na igreja com uma mulher bem religiosa, depois de fazer setenta
anos. Estaria ele sem a posse do seu juízo perfeito? "O amor vence
o materialismo". Dizia ele sorridente, como quem está saindo para
sua primeira experiência sexual.
Eu o perdoava lembrando-me do rio cheio em uma noite de céu escuro, negro,
carregado. O barulho das águas e o clarão dos relâmpagos
eram a medida para ele. Para mim, ambos amedrontavam. Apenas a presença
dele me fazia ultrapassar essas barreiras. Eram moinhos de vento.
Em determinado ponto da travessia, as águas batendo em meu pescoço,
ele pegou em minha mão e me conduziu. Eu cresci naquela hora, meu corpo
ganhou peso. Coração quieto, passos firmes. Chegamos à
margem.
Eu era um materialista em pleno crescimento capitalista. Não tinha mais
materialistas utópicos. Todos morreram. Mesmo os que estavam vivos. Meu
pai acompanhava sua nova mulher à igreja aos domingos. Fazia ironia com
a religião dela, mas estava sempre com ela. Não tinha mais história.
Na antessala, olhos vermelhos louvavam a Deus por mais uma alma que ele levara
para junto de Si, soldado do Reino eternal. A Nova Jerusalém. Eu não
conhecia aquela melodia, apenas achava bonito como era cantada. Estranhamente
bonito as pessoas cantando enquanto alguém havia silenciado, eternamente.
Não chorei. Jamais o trairia. Continuei firme à história.
Era eu um materialista enrustido. Não tinha mais utopia, apenas um profundo
senso de obediência a um aprendizado.
Chovia forte. A noite estava escura. Relâmpagos clareavam o caminho, mostravam
o volume de água que parecia aumentar a cada instante. "Amanhã
esse rio não vai dá passagem". Dizia ele ainda dentro da
água. O corpo estava encharcado. A alma estava livre. Era livre. Naquele
momento não pesava o medo da morte, não havia antessala, nem música.
Nada era fúnebre. Havia um grande desejo de transformação.
Em minha cabeça havia um monstro querendo me levar. Meu pai não
deixaria. Assim segui firme a travessia. Certo de que chegaria tranquilo
à outra margem.
A história foi nos ensinando a tomar umas atitudes. Fomos todos morar
na capital; apartamento pequeno, depois maior. Meu pai virou empresário,
eu, já um homem feito, fui pra universidade de filosofia, depois mestrado,
doutorado. Fui embora do país.
Casado, filhos casados, sempre que um tinha uma dificuldade eu me lembrava do
rio cheio, do barulho das águas, dos relâmpagos fazendo clarear
minhas fraquezas.
Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Eu tinha vencido o monstro. Eu era
um homem feito. Cheguei em casa sorridente, não sabia onde botar o sorriso.
"Atravessamos o rio cheio, de canto a canto". E sorria. Meu pai sorria
comigo, sabia o que se passava em minha cabeça. Era sorriso de vitória,
sorriso de campeão. Agora era eu um revolucionário. Ganhar algo
importante era uma vitória na revolução. A utopia de um
novo mundo. Cheguei à margem da maturidade.
Quase não dormi de felicidade. Os relâmpagos cessaram, a chuva
cessou. Minha cabeça esqueceu da batalha. Enfim, dormi. O sono dos vitoriosos.
Ao acordar, lembrei que o corpo estava no velório. Lavei o rosto. Meus
filhos pouco sabiam do avô. Meu neto, não o conheceu em vida. Não
falava sua língua.
Será que aquele rio ainda existe? Lembro-me que nos períodos de
seca, só cavando fundo para encontrar água.
Não consigo entender onde meu pai foi encontrar o materialismo, existencialismo,
como foi que entrou em contato com essas ideias, tão avançadas,
tão distantes dos seus, em seu tempo. Nietzsche, Marx, Sartre, Lênin,
Dostoievski. Rousseau, A Ideologia alemã, Althusser. Meu pai era genial.
Uma ideia eternizada no tempo de se conhecer. Um homem puro.
Entrei no salão. As pessoas choravam por ele, diziam que ele tinha ido
para o céu, estava ao lado de Deus. Eu sorria. Eles não conheciam
a história de meu pai. "Será que ele contara sua história
para alguém?" Não era possível, isso era segredo nosso.
Tudo era irônico. Meu pai era irônico, ricamente irônico.
Meu herói.
Nunca consegui ser igual a meu pai. Ninguém pode ser igual a ele.
O caixão saiu, baixou à cova. Não consegui chorar. Talvez
eu tivesse sido o mais fiel de seus filhos. Nunca esquecia de seus ensinamentos,
de suas experiências, de devotar profundo respeito por ele.
Quando ele deixou minha mãe, indo morar com uma mulher mais jovem do
que eu, fui à sua casa e jantei com ele. Fomos juntos ao enterro de minha
mãe. Não choramos. Apenas nos abraçamos. O nó veio
à minha garganta, mas eu não podia traí-lo. Em seu quarto
casamento, mandei um telegrama para ele, falamo-nos por telefone, "ainda
sou macho, filho".
Sorri e dei meu total apoio. Jamais esquecerei do rio cheio, do clarão
que os relâmpagos faziam na água, desenhando monstros dispostos
a me devorar. Mas com meu pai, venci a todos. Eu.
Conheci Marx, Nietzsche, Sartre, Freud, Sócrates, Ghandi, Lênin,
Joyce, Kafka, Cervantes, Dostoievski, Tolstoi, Althusser... meu pai, naquela
noite, foi inigualável. Todos os alicerces da minha vida foram construídos
no clarão dos relâmpagos nas águas barrentas e furiosas
daquela noite.
Minha mão ainda hoje coça quando me lembro dele. "Vamos,
filho, você é forte". "Pise devagar, pode ter um buraco
por aí". Sem tirar os olhos dos outros que iam à sua frente,
mas sempre olhando para trás.
Acho eu que estava pisando sobre os seus pés. Estava maior, mais forte,
mais seguro. Um homem feito.
A doença me derrubou, era um câncer incurável. Meus filhos
a meu redor. Meu neto chegou, pegou em minha mão: "Grandfather".
Abri os olhos e senti que estava atravessando o rio em segurança. Não
havia relâmpago, tudo já estava claro. O rio estava sereno, acalentador.
Eu era conduzido como se andasse sobre as águas, mansamente.
Minha mão coçou na mão do meu neto. Fechei os olhos e disse,
como a me despedir com total lealdade: "meu pai".