A parede com a tinta envelhecida e descascada, segurava o prego no qual haviam
pendurado um pôster de Che Guevara, que de tanto estar ali, já
estava esmaecido e engordurado, com uma tênue camada de poeira a lhe encobrir
a face. Em um canto escuro, via-se uma velha geladeira, com a pintura estufada
em alguns pontos a denotar que a ferrugem já a carcomia por baixo da
tinta, e em cima dela, como se estivesse observando todo aquele triste cenário,
havia uma imagem de São Jorge, também com alguns pequenos pontos
esbranquiçados a demonstrar o gesso com o qual fora confeccionado, e
a sua frente, uma vela gorda e bastante queimada que estava acesa há
alguns dias, ao lado de um copo liso com água. Um velho e muito enegrecido
fogão, sobre o qual havia panelas sujas de restos de comida. Este lado
era o que se podia chamar de cozinha.
Uma cama de casal, com pedaços de lençóis amarfanhados
a um outro canto, uma cômoda com gavetas quebradas em outro e sobre ela
uma TV de 20 polegadas que era na realidade o único bem valioso daquela
casa, um velho guarda-roupa com portas que teimavam em não fechar, um
pequeno berço relativamente novo, que destoava daquela mobília
envelhecida e meio acabada. E esta era a casa daquele que jazia aos pés
da cama, tomado pelo álcool e um coquetel de drogas que insistiam em
manter o seu corpo inerte no chão.
Não vivia sozinho nesta pocilga fétida, construída com
algumas madeiras e folhas de zinco, estava só naquele momento, pois sua
companheira de infortúnio tivera que fugir as pressas, com a filha ao
colo, de sua fúria insana, na madrugada fria, para evitar as agressões
que geralmente aconteciam nestas ocasiões.
O corpo não respondia, mas sua mente agia, ou tentava reagir, tentando
de todas as formas ordenar pensamentos, para tentar compreender o que o tinha
levado a tais circunstâncias, tentava se lembrar onde estava o dinheiro
que havia ganhado na obra que tão arduamente trabalhara durante toda
aquela semana, e então se lembrou que também ganhara algum dinheiro
no carteado... Jogo de ronda... Girara dinheiro à vontade na mesa de
jogo naquela noite, e entre umas cervejas e algumas trilhas de cocaína,
uns tragos de maconha...Ah!!! Agora lembrava, mandara aquele neguinho risonho
que ele achava espertinho, descer no mercado 24 horas lá no asfalto,
para comprar aquela garrafa de Whisky que ele havia visto o patrão bacana
bebendo, só que o safado do neguinho trouxe uma bebida barata e passou
em algum McDonald's para comer aqueles sanduíches e as batatas fritas
que ele achava completamente sem gosto e não entendia como é que
o neguinho podia gostar.
Lembrou também das mulheres que estavam lá e ficavam na sua aba,
só para cheirar umas trilhas, e para tomar as bebidas que ele comprava
com o dinheiro que estava ganhando no jogo de ronda, porque na realidade elas
se insinuavam, mas não estavam a fim de transar com ele, afinal ele cheirava
umas trilhas de cocaína, fumava uns baseados, mas...Ele era trabalhador...
É verdade, elas não saiam com manés que carregavam marmitas.Queriam
sair com os caras que portavam submetralhadoras e pistolas automáticas,
o pessoal do "bicho".
E agora como iria fazer para alimentar a sua mulher e comprar o leite para a
mamadeira do nenê?
Tinha hora que queria que a mulher sumisse de sua vida...Ficava regulando a
vida dele, tentando controlar cada passo que queria dar...Mas, outras vezes
sentia até pena dela, pois a tinha engravidado, e por causa disto ela
tivera que sair do trabalho que tinha na casa daquela madame que a trouxera
do norte, lhe tratava por afilhada, lhe dava de tudo e ainda a deixava estudar
no curso noturno, que ela faltava para irem namorar na areia da praia.
Ele sentia que precisava reagir, precisava comandar os seus nervos e músculos
para tirar seu corpo do meio daquele vômito fétido, no meio do
qual caíra quando tentava discutir e bater na pobre coitada que cedo
ou tarde voltaria para novamente lhe dizer que o amava. Mas o corpo não
o respeitava, ele não controlava os seus movimentos, e seu corpo se movimentava
como se ele fosse uma lagarta encolhendo e esticando e também serpenteava
no meio daquela gosma que envolvia seu corpo negro e semidesnudo.
Quanto tempo havia passado ali?Não fazia a menor ideia, aliás,
ele não sabia, mas, não mais estava ali, onde caíra e não
mais levantara.
Já o haviam levado, seu corpo jazia inerte, sobre um leito no CTI de
um hospital público, onde dera entrada em coma por overdose, e seu corpo
sobrevivia ligado a alguns aparelhos que ele nem sabia que existiam...
Mas, sua mente ainda lutava, continuava viva e trabalhando, pensando na marmita
que sua mulher iria preparar para ele levar para a obra e que não poderia
ter uma coxa de galinha, ou um bifinho, daqueles que só ela sabia preparar
e que ele não sabe como, ficava tão macio quanto os que havia
comido escondido na casa da madame em que sua mulher havia trabalhado.E o leite
do nenê? Será que o dono da vendinha faria fiado para ele naquela
semana? Afinal, ele sempre pagava direito...
E o corpo, já não tão inerte, respondia timidamente, com
alguns movimentos (involuntários, segundo o médico) que ele continuava
se esforçando para faze-los, pois sua mente ainda lutava para reagir...
E ao mesmo tempo em que tentava movimentar aquele corpo paralisado pelo excesso
cometido numa noite em que a sorte no jogo lhe acompanhara durante todo o tempo,
lembrava de cada instante de sua miserável vida. Sua infância passada
por entre as vielas daquele morro em que fora criado, cada instante daqueles
anos foi sendo repassado em sua memória, trazendo de volta a dor de ver
o pai ser assassinado pelas balas que lhe foram cravados no corpo, na disputa
por ponto de venda de drogas, pôde lembrar de seu irmão e da sua
irmã, ele cooptados pelo tráfico e ela pela prostituição.
Da mãe lembrava muito pouco, só sabia que ela tinha fugido com
um marinheiro estrangeiro que conhecera no porto, e que lhe prometera uma vida
melhor do outro lado do mundo e que nunca sequer havia mandado uma carta...Mas,
também tinha boas lembranças, a avó que lhe trazia balas
gostosas, quando voltada das casas das madames em que ia entregar as roupas
que lavava e passava e ainda lhe dava algumas moedinhas com as quais ele comprava
pipa e bolinhas de gude, os anos em que fora a escola, não que fosse
bom aluno, mas as professoras lhe tratavam com carinho, os jogos de futebol
com os amigos no campinho rala-côco lá no alto do morro, os amigos
que ficaram desta época, os que ficaram vivos e os que morreram no dia
a dia violento daquele lugar.
Mas, ele tinha que continuar a se esforçar para movimentar cada pedaço
do corpo que ainda não lhe respondia satisfatóriamente, queria
levantar dali (ainda achava que estava caído no meio do vômito
no chão do seu barraco), e já arrependido ir procurar a sua mulher
e traze-la com a filha para casa, pedindo seu perdão, para o comportamento
errado que tivera.
Ele queria ter coragem para mudar sua vida, afinal os caras que trabalhavam
para o tráfico estavam sempre com dinheiro no bolso, vestiam roupas legais,
de marcas famosas, andavam em carros legais, geralmente roubados, mas não
ligavam, porque a toda hora trocavam, e aí poderia comprar um barraco
maneiro para a mulher que ele tinha desgraçado a vida quando lhe tirara
da casa da madame. E daria para aquela criança as melhores fraldas descartáveis,
em lugar daquelas fraldinhas de pano que tinham que ser lavadas a cada vez que
a menina fazia suas necessidades, e também roupinhas compradas na C&A
daquele shopping legal, ao invés de ter que vesti-la com as roupinhas
já usadas que a madame ainda mandava, dos filhos de outras mulheres que
ela juntava, e mandava para os mais pobres lá do morro.Mas também
tinha o outro lado da moeda, e se morresse crivado de balas como havia acontecido
com seu pai e seu irmão mais velho?
Para onde iriam sua mulher e sua filha, se algo de ruim acontecesse com ele?
A mulher era tão nova e indefesa, naquele lugar que ela só foi
morar porque ele a levou, e ainda a prometera passear com ela no norte para
que a mãe dela o conhecesse e a filha que tinha nascido. Não,
ele não tinha coragem suficiente para viver daquela forma.
Ele precisava sair dali, movimentar cada pedaço daquele corpo que teimava
em não corresponder aos seus comandos, precisava cumprir as promessas
que fizera aquela mulher que ele tinha vergonha de dizer que amava, e aquela
criança que nascera deste amor, mas que ele pouco dava carinho, pois
não tinha muito "jeito" com crianças. Estava decidido,
levantaria dali e faria tudo diferente.
Diria a mulher que não usaria mais drogas, não tomaria mais do
que algumas cervejinhas que manteria na geladeira de casa, e fariam mesmo aquela
viagem para a mãe dela conhecer a criança. Teria que trabalhar
bastante, pois como ajudante de pedreiro não ganhava muito, mas ele ia
aceitar o emprego numa construtora que seu primo trabalhava, pois lá
assinariam sua carteira, e se ele se esforçasse poderia ser promovido
a pedreiro, pois ele já sabia levantar parede, bem alinhada até,
e sabia também rebocar, fazia uma parede ficar certinha e lisinha. E
se conseguissem uma vaga para a criança na creche da comunidade, poderiam,
com a mulher trabalhando, fazendo faxina como diarista ou como empregada fixa
na casa de uma madame, ter a casinha que sempre sonharam. O terreno aonde seu
barraco se apoiava, não era grande, mas daria para fazer um sobradinho,
e aí então teriam móveis novos, comprados em 15 vezes nas
Casas Bahia.
A casa teria de tudo, micro-ondas, vídeo cassete ou DVD, jogo de sofá
na sala geladeira duplex frost free, fogão novo, máquina de lavar,
televisão na sala e outra no quarto, teriam até telefone para
a mulher poder ligar para as amigas e para a mãe no norte. A filha teria
seu próprio quarto, todo bonitinho, com moveis de quarto de criança,
tudo cor-de-rosa, bem... a sua mulher saberia como enfeitar para ficar bonito
como era o quarto da filha da madame aonde a mulher havia trabalhado
Iriam às noites de sábado no forró que a mulher gostava
para dançar, ou então ao pagode, ele tomaria uma ou duas cervejinhas,
nunca mais do que isto, pois seria o homem do qual a mulher se orgulharia. Aos
domingos pela manhã iriam à praia, e quando voltassem comprariam
um daqueles frangos que ficavam rodando naquelas maquinas na porta das padarias,
e que cheiravam longe, e assim seriam uma família normal, sem aquelas
situações que ele fazia sua mulher passar hoje e que agora o envergonhavam
e a ela perante as vizinhas.
Nas férias, iriam ao norte para conhecer a sogra e para que ela conhecesse
a neta, e seria um novo homem, que a mulher faria questão de apresentá-lo
como marido. Ah! Sim, também casaria de papel passado, tudo preto no branco,
para dar seu nome a mulher, para que todo mundo soubesse que ela não
era qualquer uma, seria de fato uma senhora casada.
E de tanto pensar e tentar se mexer foi ficando cansado e sentiu o sono se aproximando,
e deixou-se levar para o mundo dos sonhos.
Então o médico entrou na sala de espera e comunicou aquela mulher
que aguardava ansiosa com uma criança ao colo, que o paciente que estava
em coma por overdose de drogas havia acabado de falecer.