A Garganta da Serpente
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Sonival tinha um sonho

(Ig Ocian)

O trânsito estava tranquilo naquela tarde de sábado. Engatei nova marcha e acelerei um pouco mais, para sentir a maciez do motor e o conforto do carro novo. O veículo deslizava sobre o asfalto. Acionei o fechamento das janelas e liguei o ar condicionado. "O calor que fique lá fora", pensei. Aumentei o volume do toca-cds e procurei relaxar com a música que tocava, comercial segundo muitos, mas que me agradava muito. Satisfeito, pensei como era bom poder desfrutar das benesses do progresso, e de condições financeiras razoáveis.

Parei num farol. Apareceu na janela um menino que pedia alguma coisa fazendo mímica, e eu respondi que não, balançando o dedo indicador. O vidro do carro era como uma redoma que me protegia do mundo exterior. O farol abriu. Arranquei e segui um pouco mais pela avenida, depois dobrei à direita, subindo por uma ruazinha íngreme. Deixei passar quatro travessas e virei à direita novamente. Virei mais duas vezes à direita e parei. Com certeza era ali. Apesar de tanto tempo passado, eu não poderia estar enganado quanto ao lugar. Encostei ao meio-fio, em frente a um prédio azul. Buzinei duas vezes, e após sair do carro, olhando para cima, lá para o quinto andar, vi um vulto de mulher que me acenou da varanda e desapareceu lá para dentro. Eu estava feliz.

Então levantei os óculos escuros para a cabeça e fiquei ali, apoiado na porta aberta do carro, pé direito no estribo, observando tudo à minha volta e relembrando o passado, recompondo a paisagem de vinte anos atrás. "Bem, - pensava eu - aqui onde está este prédio era a minha casa. Ali em frente, numa casa que foi reformada, morava o Tiquinho, e lá, onde está aquele outro prédio era a casa do Sonival. Aliás, acho que o prédio ocupa o espaço de quatro casas, sendo que uma delas fora um cortiço enorme. É verdade, é isso mesmo."

Senti um aroma de jasmim. De repente fui tomado de grande nostalgia e me lembrei dos amigos de infância, de um tempo que não volta mais. Sonival era um menino de dez anos, um a mais que eu. Ele era o mais velho de uma escadinha de cinco irmãos, e se não me engano, a mãe esperava o sexto. Moleque franzino mas corajoso, quantas vezes fomos roubar mexericas do quintal da dona Marocas, desafiando as pedradas do marido dela que era uma fera. Sonival sempre ficava por último e me ajudava a pular o muro.

- Seus capetas! - Gritava o velho mostrando os punhos - qualquer hora vão ver só.

Apostávamos corridas de carrinho de rolimãs, na descida. Sonival sempre vencia.

- Você parece o Piquet - eu lhe dizia, entusiasmado.

- Queria dirigir um carro de verdade - ele me segredava.

- Claro que um dia você vai dirigir um.

Interessante era a origem do nome do garoto, de ordem neologista, ou seja, misturavam-se dois nomes para formar um terceiro. Mas os pais de Sonival, ao contrário do que se podia esperar não eram a Sônia e o Valter, porque seus nomes também haviam sofrido o mesmo processo de, chamavam-se Sonilanda e Valmilton.

Aquela família passava muitas privações. A mãe lavava roupas para a vizinhança e o pai vivia de biscates, mas até esse serviço era escasso para um alcoólatra, que chegava quase todo dia embriagado, distribuindo pancadas em todos. Dona Sonilanda e as crianças viviam com hematomas por todo o corpo.

- Por que a senhora não denuncia o marido para o delegado? - lembro-me de alguém lhe ter perguntado.

- Sei não... - foi a resposta simplória da mulher.

Olhando para a descida íngreme e a avenida movimentada lá embaixo me lembrei de uma das nossas brincadeiras preferidas: Sentados no muro contávamos os carros que passavam, escolhíamos um modelo, e o que passasse mais ganhava o jogo. Só não valia escolher o Fusca, que era sempre mais numeroso. Sonival entendia tudo de carros e era apaixonado por eles. "Um dia terei o meu" dizia.

Estávamos um dia na calçada quando passou por nós Clarice, uma menina de sete anos, com cabelos louros cacheados e olhinhos azuis. Estava de mãos dadas com a mãe, e quando ia lá na frente, olhou para trás e deu uma risadinha.

- Viu isso, Casquinha, como ela me olhou? Acho que gosta de mim. - disse maravilhado Sonival.

- Tudo bem, mas não me chame assim. - disse isso para disfarçar. Eu não quis contrariá-lo, mas tive a impressão de que a garota havia olhado para mim.

- Casquinha! Casquinha é o seu nome. - Ele se divertia bastante com isso. Dera-me este apelido porque quando tive catapora cutucava as feridas, e todos me diziam:

- Não mexa nas casquinhas, menino! Você vai ficar com marcas.

Desde então ficávamos sempre ali à espera da passagem de Clarice. Sonival não falava em outra coisa.

- Quando crescer, vou me casar com ela. - confidenciou-me, certa vez.

- Decerto que sim - respondi-lhe incrédulo.

A mãe de Sonival criava umas galinhas no quintal e era ele quem cuidava delas. Parece que vejo ainda o menino chegando com seus cambitos dentro de um short largo, segurando uma panela de arroz e atirando os grãozinhos para as galinhas. Ele nomeava cada uma. Assim tinha a Ruiva, a Pescoço Pelado, a Arrepiada, e outras cujos nomes não me lembro.

Todo mês vinha ali com sua Kombi o "Seu" Alentejo, um português gordo e baixinho, que usava uma touca engraçada, e recebeu de Sonival a alcunha de "Gnomo". Ele era dono do cortiço e vinha cobrar o aluguel dos inquilinos. Então começavam as discussões. Valmilton, o pai de Sonival, quase nunca tinha o dinheiro, e sua família vivia a ameaça constante de despejo.

Um outro dia Seu Alentejo levou todas as galinhas como parte do pagamento. Ele trouxe um saco de estopa e ia jogando-as lá dentro, de forma brusca.

- Mãe, não o deixe levá-las - pediu Sonival.

- Tem jeito não, meu filho. - respondeu a mãe emocionada.

O pai, ébrio, estalou um tapa na cara do moleque.

- Cale a boca e não se meta nos assuntos dos adultos. Não vê que não temos dinheiro? - Esbravejou.

Sonival chorou muito.

- Não fique assim, você conseguirá outras. - Tentei consolá-lo.

- Ainda bem que estão levando estes bichos embora, eles só fazem porcaria no quintal - festejou uma vizinha do cortiço, arreganhando os dentes.

- E você, não tem casa não? O que faz aqui? - disse o bêbado dirigindo-se a mim.

Então fui saindo, sem graça. Depois, lá na rua eu e Sonival vimos o português arrastar o saco que se mexia e colocá-lo na perua. Quando ele partiu, a Ruiva devia ter escapado do saco e ficou bicando o vidro da janela, como se dissesse adeus.

Certo dia, nós fomos jogar bola e eu cheguei alegre exibindo meu tênis novo, mas me entristeci vendo o olhar indiferente do colega.

- Já sei - disse eu a Sonival - você está triste porque não tem um igual...

- Não é nada disso, é que eu queria ser feliz... - ele me respondeu.

Passou algum tempo, o português voltou para receber o que lhe era devido. Novamente não tendo dinheiro, ofereceu Valmilton, como pagamento, alguns objetos da casa: Um televisor preto e branco e um rádio.

- Leve este rádio e o ponha no banco da perua, ó moleque! - Ordenou o português a Sonival, enquanto ia atrás carregando o televisor antigo e pesado.

Sonival abriu a porta do veículo e pos o aparelho eletrônico no banco do carona. Olhou para o quintal do cortiço e viu o português conversando com um vizinho. Então entrou no carro e ficou mexendo no volante, como se estivesse dirigindo. Eu acompanhava tudo pela janela, do lado de fora.

- Veja, Casquinha, eu consigo dirigir, estou até mexendo as rodas. Suba aí, vamos dar uma volta. - brincava.

- Eu se fosse você descia logo. O "Gnomo" está chegando. - respondi assustado.

Vendo esta cena, Seu Alentejo veio rápido, gritando:

- Desça já daí, ó moleque endiabrado! Veja lá que o freio de mão está quebrado. Escorei o pneu na guia!

E era verdade mesmo. Mexendo o volante, o carro se moveu, e logo foi descendo a ladeira.

- Pisa no freio, Soni. - Eu gritava.

- Já tentei, mas não consigo! - respondia ele desesperado.

- Raios, o que este moleque fez! - gritava o português tentando segurar em vão a perua pelo pára-choque traseiro. Eu o ajudava, mas a força da gravidade era mais forte. E lá se foi ela descida abaixo, em zigue-zague. Pelo visto Sonival não a podia controlar. Tampouco seu pé alcançava o freio, para parar.

O veiculo tomou embalo e foi, de modo espetacular, se chocar com estrondo no último poste antes de chegar à avenida. Em pouco tempo se formou uma multidão lá embaixo, em torno do acidente, enquanto um outro grupo, eu, o português, os pais de Sonival, diversos vizinhos e transeuntes descíamos a ladeira desabaladamente, como uma procissão desembestada, para ver o que havia acontecido.

Fui o primeiro a chegar, e sendo pequeno, abri espaço entre o povaréu para ver aquela cena que ainda hoje guardo na memória. Sonival estava ali, com sua cabecinha cheia de anseios reclinada sobre o volante, como se ele fosse um travesseiro. Os olhos abertos miravam um horizonte imaginário, um mundo que não lhe pertencia mais. A boca entreaberta esboçava um sorriso. Nem parecia que estava morto, não fosse o fio de sangue a lhe escorrer pelo canto da boca.

Logo chegaram as outras pessoas.

- "Virge" Maria, valei-me! Meu filhinho! O que aconteceu com meu filhinho? - gritava em desespero a mãe. Depois desmaiou, amparada por vizinhas.

O pai se aproximou e viu tudo com uma olhar entre zangado e estupefato.

- Mais essa agora. Teremos mais despesa, nós que não temos dinheiro para nada.

Depois ele teve um tremor no corpo e chacoalhou a cabeça, como se despertasse de um sono. Foi sentar-se na beira da calçada e com a cabeça entre os joelhos chorava e soluçava alto.

Do meio da multidão ainda escutei alguém perguntar para Seu Alentejo:

- E a perua tinha seguro?

- Pois já viste carro velho ter seguro, ó pá? - Respondeu o português enraivecido.

Entre tantos rostos comovidos e curiosos, identifiquei o de Clarice, mais lívido que o habitual e com olhos arregalados. A mãe a puxou pelo pulso.

- Venha, filha! Crianças não devem ver estas coisas.

Após aquele dia não sei qual foi o destino da família de Sonival. Meu pai conseguiu um emprego numa multinacional e nos mudamos dali.

Eu estava relembrando estas coisas quando duas lágrimas surgiram em meus olhos, não sei se de comoção ou pelo sol que se punha no horizonte e me ofuscava a vista.

De repente alguém chegou por trás e me tampou os olhos com as mãos.

- Ora, não adianta fazer isso, sei que é você, sua boba!

Ela me soltou e saltou em meu pescoço:

- Cadê o meu Casquinha?

- Já disse que não gosto deste apelido!! Meu nome é muito bonito: Maurício. - Fiz cara de bravo - Mas você pode. - ponderei.

Demos um longo beijo. Clarice, a menina que tanto povoou meu universo infantil, coincidentemente foi trabalhar na mesma empresa que eu, ou seja, a multinacional em que meu pai me arrumou uma colocação, e passamos a namorar.

Entramos no carro. Eu olhava para a garota, para os raios de sol que iluminavam seus cabelos dourados, e o seu sorriso de satisfação.

- O que está olhando? - perguntou-me curiosa.

- Nada não. - respondi-lhe sorrindo.

Então soltei o freio de mão e fui descendo a ladeira, devagar, enquanto pensava comigo mesmo que o sonho que Sonival se realizou, mas para mim.

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