A Garganta da Serpente
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Pressentimentos

(Igor Machado)

- E a porra desse sono que não chega!

Ele lamentava enquanto varava a madrugada, fumando como quem buscasse o sono no cigarro.

- Ai meu Deus! E nada dessa agonia passar

Ela lamentava fazendo companhia à madrugada, buscando os tranquilizantes como quem buscava o fim de todos os problemas da terra.

Ele e ela (ou ela e ele, tanto faz) não se conheciam. Embora comungassem de uma mesma dor. A dor de quem busca ser sincero consigo mesmo nas questões amorosas.

Ele era professor de história, recém formado pela universidade pública local. Seu trabalho de conclusão de curso foi sobre "A vida afetiva dos homens que marcaram a história, pós a revolução industrial". Esse trabalho obteve a nota máxima pela mesa julgadora.

Ela estudava designer de interiores. Tirava notas boas, mas não era tiete de professor (nem CDF). Mexia e remexia na decoração de casa, para alegria e às vezes desespero da mãe (pois em certos momentos chegava a soar obsessivo, tais preocupações decorativas).

O dia nasce na cidade em que ambos, que não se conhecem, moram.

Ele acorda com o irmão batendo na porta de seu quarto (que fica num prédio que pertence a um condomínio habitacional popular) e chamando-o de forma muito pouca carinhosa.

Ela acorda com a mãe alisando seus cabelos (que estão presos à cabeça que está sobre o travesseiro que está no quarto que está na casa que pertence a um bairro caro da cidade). Além de alisar seus cabelos a mãe sussurra em seus ouvidos "bom dia meu amor".

Ele e ela vão ao banheiro, cada qual em sua casa, lógico.

Ele toma um copo de suco de laranja e sai sem se despedir do irmão.

Ela toma o café da manhã. Ao se despedir recebe o beijo da irmã mais nova, do pai e da mãe.

Ele chega atrasado no ponto de ônibus. Foi ele chegando e o ônibus partindo.

Ela sai da garagem com seu carro tranquilamente.

Ele, que esperou meia hora até pegar outro ônibus, escuta em seu Mp3 músicas que remetem a uma certa melancolia (ao menos seus olhos transmitem isso).

Ela, que dirige tranquilamente, escuta no som de seu carro uma música que a faz cantar entusiasmadamente.

Mas algo estranho sucede aos dois...

Ele, que continua sentado no banco do ônibus ouvindo seu Mp3, é cutucado por uma criança vestida de palhaço que está sentada ao seu lado, e sem mais nem menos o interpela:

- Ei... Deixa de ser chorão. Em vez de ficar na fossa, vai atrás dela... Ela está te esperando!!!

A criança se levanta do banco e desaparece no fundo do ônibus. Ele fica atordoado!

Enquanto isso, ela, que continua dirigindo, escutando o som da rádio e cantando entusiasticamente, é cutucada pela mesma criança do ônibus, que está sentada no banco do passageiro e que descontraidamente pergunta:

- Ei... Deixa de ser bobalhona. Em vez de ficar fingindo, vai atrás dele... Ele está te esperando!!!

Ela olha a criança e se pergunta em silêncio "como peste ela tinha entrado no carro". Depois olha pra frente forçada pelas buzinas que anunciam freneticamente que o sinal não está mais vermelho. Acelera o carro, e quando volta o olhar para criança, ver que ela (a criança) não está mais lá. Ela (a mulher) fica atordoada!

Ele berra no ônibus até que o motorista pare pra ele descer. O motorista pára e ele desce e corre (aparentemente) desnorteado.

Ela se livra do berro das buzinas que anunciavam o sinal vermelho, encosta o carro, desce dele e corre também (aparentemente) desnorteada.

Ele corre pela parte histórica da cidade. Gritos, faces, raças, produtos, lojas variadas cortam seu caminho.

Ela corre pela parte sofisticada da cidade. Lojas, produtos, raças, faces, gritos variados cortam seu caminho.

Correm e correm, até que eles chegam num lugar comum da cidade. Ao se encontrarem, trocam olhares famintos e ao mesmo tempo dóceis. E num gesto velado pelo instinto e pela poesia, se beijam e se abraçam e se cheiram e se devotam com um fervor parecido com de religiosos no ápice do culto, ou com o fervor dos viciados no ápice da abstinência.

Quando, enfim, olham ao redor veem que o mar é o pano de fundo dessa cena.

Não conversam (ao menos com palavras), voltam a se olhar, mas dessa vez com olhos que parecem traduzir cada mínima sensação emergente.

Andam em direção ao mar.

À medida que se aproximam veem que um barqueiro se aproxima deles também.

O barqueiro pede ao casal pra ser seguido. Eles o seguem. Chegam a um barco que leva o nome dos dois.

O barqueiro pede para o casal subir. Ambos sobem. O barqueiro desancora o barco e os três seguem mar adentro.

Calma. Ainda não é o fim...

Mais um dia nasce na cidade em que ambos, que não se conhecem, moram.

Ele acorda com o irmão batendo na porta de seu quarto (que fica num prédio que pertence a um condomínio habitacional popular) e chamando-o de forma muito pouca carinhosa.

Ela acorda com a mãe alisando seus cabelos (que estão presos à cabeça que está sobre o travesseiro que está no quarto e blá, blá, blá...). Além de alisar seus cabelos a mãe sussurra em seus ouvidos "bom dia meu amor".

Ele e ela vão ao banheiro, cada qual em sua casa, lógico.

Ele toma um copo de suco de laranja e sai sem se despedir do irmão.

Ela toma o café da manhã. Ao se despedir recebe o beijo da irmã mais nova, do pai e da mãe.

Eles, cada qual em sua realidade, parecem estranhar algo nesse dia que nasceu... Como se o sonho que tiveram enquanto dormiam, tivesse tomando corpo.

Então ele chega atrasado ao ponto de ônibus. Foi ele chegando e o ônibus partindo...

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