- E a porra desse sono que não chega!
Ele lamentava enquanto varava a madrugada, fumando como quem buscasse o sono
no cigarro.
- Ai meu Deus! E nada dessa agonia passar
Ela lamentava fazendo companhia à madrugada, buscando os tranquilizantes
como quem buscava o fim de todos os problemas da terra.
Ele e ela (ou ela e ele, tanto faz) não se conheciam. Embora comungassem
de uma mesma dor. A dor de quem busca ser sincero consigo mesmo nas questões
amorosas.
Ele era professor de história, recém formado pela universidade
pública local. Seu trabalho de conclusão de curso foi sobre "A
vida afetiva dos homens que marcaram a história, pós a revolução
industrial". Esse trabalho obteve a nota máxima pela mesa julgadora.
Ela estudava designer de interiores. Tirava notas boas, mas não era
tiete de professor (nem CDF). Mexia e remexia na decoração de
casa, para alegria e às vezes desespero da mãe (pois em certos
momentos chegava a soar obsessivo, tais preocupações decorativas).
O dia nasce na cidade em que ambos, que não se conhecem, moram.
Ele acorda com o irmão batendo na porta de seu quarto (que fica num
prédio que pertence a um condomínio habitacional popular) e chamando-o
de forma muito pouca carinhosa.
Ela acorda com a mãe alisando seus cabelos (que estão presos
à cabeça que está sobre o travesseiro que está no
quarto que está na casa que pertence a um bairro caro da cidade). Além
de alisar seus cabelos a mãe sussurra em seus ouvidos "bom dia meu
amor".
Ele e ela vão ao banheiro, cada qual em sua casa, lógico.
Ele toma um copo de suco de laranja e sai sem se despedir do irmão.
Ela toma o café da manhã. Ao se despedir recebe o beijo da irmã
mais nova, do pai e da mãe.
Ele chega atrasado no ponto de ônibus. Foi ele chegando e o ônibus
partindo.
Ela sai da garagem com seu carro tranquilamente.
Ele, que esperou meia hora até pegar outro ônibus, escuta em seu
Mp3 músicas que remetem a uma certa melancolia (ao menos seus olhos transmitem
isso).
Ela, que dirige tranquilamente, escuta no som de seu carro uma música
que a faz cantar entusiasmadamente.
Mas algo estranho sucede aos dois...
Ele, que continua sentado no banco do ônibus ouvindo seu Mp3, é
cutucado por uma criança vestida de palhaço que está sentada
ao seu lado, e sem mais nem menos o interpela:
- Ei... Deixa de ser chorão. Em vez de ficar na fossa, vai atrás
dela... Ela está te esperando!!!
A criança se levanta do banco e desaparece no fundo do ônibus.
Ele fica atordoado!
Enquanto isso, ela, que continua dirigindo, escutando o som da rádio
e cantando entusiasticamente, é cutucada pela mesma criança do
ônibus, que está sentada no banco do passageiro e que descontraidamente
pergunta:
- Ei... Deixa de ser bobalhona. Em vez de ficar fingindo, vai atrás
dele... Ele está te esperando!!!
Ela olha a criança e se pergunta em silêncio "como peste
ela tinha entrado no carro". Depois olha pra frente forçada pelas
buzinas que anunciam freneticamente que o sinal não está mais
vermelho. Acelera o carro, e quando volta o olhar para criança, ver que
ela (a criança) não está mais lá. Ela (a mulher)
fica atordoada!
Ele berra no ônibus até que o motorista pare pra ele descer. O
motorista pára e ele desce e corre (aparentemente) desnorteado.
Ela se livra do berro das buzinas que anunciavam o sinal vermelho, encosta
o carro, desce dele e corre também (aparentemente) desnorteada.
Ele corre pela parte histórica da cidade. Gritos, faces, raças,
produtos, lojas variadas cortam seu caminho.
Ela corre pela parte sofisticada da cidade. Lojas, produtos, raças,
faces, gritos variados cortam seu caminho.
Correm e correm, até que eles chegam num lugar comum da cidade. Ao se
encontrarem, trocam olhares famintos e ao mesmo tempo dóceis. E num gesto
velado pelo instinto e pela poesia, se beijam e se abraçam e se cheiram
e se devotam com um fervor parecido com de religiosos no ápice do culto,
ou com o fervor dos viciados no ápice da abstinência.
Quando, enfim, olham ao redor veem que o mar é o pano de fundo
dessa cena.
Não conversam (ao menos com palavras), voltam a se olhar, mas dessa
vez com olhos que parecem traduzir cada mínima sensação
emergente.
Andam em direção ao mar.
À medida que se aproximam veem que um barqueiro se aproxima deles
também.
O barqueiro pede ao casal pra ser seguido. Eles o seguem. Chegam a um barco
que leva o nome dos dois.
O barqueiro pede para o casal subir. Ambos sobem. O barqueiro desancora o barco
e os três seguem mar adentro.
Calma. Ainda não é o fim...
Mais um dia nasce na cidade em que ambos, que não se conhecem, moram.
Ele acorda com o irmão batendo na porta de seu quarto (que fica num
prédio que pertence a um condomínio habitacional popular) e chamando-o
de forma muito pouca carinhosa.
Ela acorda com a mãe alisando seus cabelos (que estão presos
à cabeça que está sobre o travesseiro que está no
quarto e blá, blá, blá...). Além de alisar seus
cabelos a mãe sussurra em seus ouvidos "bom dia meu amor".
Ele e ela vão ao banheiro, cada qual em sua casa, lógico.
Ele toma um copo de suco de laranja e sai sem se despedir do irmão.
Ela toma o café da manhã. Ao se despedir recebe o beijo da irmã
mais nova, do pai e da mãe.
Eles, cada qual em sua realidade, parecem estranhar algo nesse dia que nasceu...
Como se o sonho que tiveram enquanto dormiam, tivesse tomando corpo.
Então ele chega atrasado ao ponto de ônibus. Foi ele chegando
e o ônibus partindo...