(Para Gonzaguinha)
O segundo que durou o nosso olhar, foi como se toda a carne do universo tivesse
se diluído nos nossos corpos. Ele entendeu e eu também, embora
essa compreensão carregasse uma infinidade de pontos de interrogações
e perguntas sem qualquer necessidade de resposta. Ele sabe que além de
nós há um sentido antigo, um tempo puro, uma quase eternidade
que nos transpassa e nos transforma numa coisa só, como um acontecimento
profundo, como a certeza da morte, como uma dor que não sara, embora
tudo, traiçoeiramente, dure apenas uma fração de segundo.
Ele sabe e nega e eu sei e vivo, com toda a força e brutalidade que a
minha alma vem me abarcar, nascendo a cada dia com aquele olhar no pensamento,
vivendo aqueles segundos de encantamento como se fossem algo que pra sempre
tivesse desvirginado a minha essência, algo que toma meu corpo, que se
entranha na minha carne e faz com que eu O adore, como uma imagem profana, como
um Senhor que me obriga a cultuá-lo, embora nada tenha de sagrado.
Não, não é nada piegas, não é romântico,
é bruto e seco, é claro e difuso, é tudo ao mesmo tempo,
sem dualidades, não se pode explicar o que por si, não se define.
Ele é algo que me falta e me tem, e eu sei que estou Nele, mas que falto
Nele também, que o nosso olhar se compreende até o último
instante da compreensão, quando só há a escuridão
e o vácuo, a sombra da dúvida e o amor, propriamente dito, ou
como se tentam dizer.
Eu sei que a minha alucinação já se mistura com o real,
que o nosso olhar também tem a pérfida dor da traição
e do medo, mas me apego imaginando como seria a vida ao lado da serenidade disfarçada
daquele homem, já envelhecido pelo tempo, e essa sensação
rala rasga a minha mente fazendo com que mesmo tempo que eu tente em vão
alcançá-la, me venha a repulsa que eu sinto por Ele e por sua
imensa vaidade.
Ele sabe que eu sangro pode dentro mas vai me negar eternamente, e me evitar,
e disfarçar, e dissimular, e esconder, ele é a própria
dúvida. Ele se procura e não se acha, porque Ele é o que
É por que É, e acha que É. No fundo, ele sabe da sua manipulação
quase angelical, e sabe que eu O adoro, como uma criança carente, como
uma filha sem Pai; e esconde que também tem aquele brilho no olhar quando
me vê, usufruindo do seu poder demoníaco de me possuir sem querer,
de ocultar o que vê e sente, mesmo se assassinando por dentro.
Ele sabe que pode cortar na minha carne e me banquetear, e me vampirizar, e
me azucrinar, e me sugar... No fundo Ele é misericordioso, e se poupa
de tomar meu corpo dessa forma, preferindo as delícias da alma. Mas eu
sei que falto Nele e que a minha imensa falta nunca vai deixá-lo caminhar
em Paz, e eu me consolo nisso e me seguro, e entrego o meu mel que Ele sorve
aos poucos e depois rechaça. E assim, dentro desse semicírculo
de perdas e ganhos, de ausências e memórias, a coisa não
se completa nunca, porque nasce e renasce todo dia, relutando contra a certeza
do fim.