"Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua
alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra
alma.Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com
outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não." (Manuel Bandeira)
sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
(Manuel Bandeira)
No casarão, era noite. Lá fora, apenas o latido de um ou outro
cachorro de rua e a visão de mais um dia que desaparecia . Dentro da
casa, restava a lembrança do passado, tentando resistir ao presente,
já que não se podia mais falar em futuro.
Laura acendeu um cigarro, e ficou alguns momentos olhando aqueles escritos
antigos na parede da casa, pequenas rachaduras desenhadas pelas mãos
invisíveis do tempo. A fumaça lhe trazia imagens que antes não
compreendia e que chegavam a incomodar naquela hora pela lucidez repentina com
que apareciam.
Há muito ela desistira de aprisionar o momento vivido. Vivia a fruição
do instante. Tateava o aqui e agora, mesmo que estes fossem recheados de memórias
da infância, risos pela casa, sermões dos pais, passos pelos corredores,
e os encontros lancinantes entre os olhos dela e os de José. Ela uma
menina, ele homem feito, e entre eles, uma imensa paixão que os sugava
por dentro, que ambos sabiam e sentiam, e nada podiam fazer e nem mesmo ousar
compreender.
As palavras indizíveis que eles trocaram e que ela sentia dançavam
pelo etéreo. Tudo era tão vivo agora. Aquelas sensações,
aqueles silêncios, os gritos incorpóreos de um chamando o outro,
tudo era ensurdecedor de tão audível.
José a amava. Tinha certeza.
Mas ele já era um morto. E ela, embora viva, sentia-se na posição
de quem apenas espera, impotente, diante do absurdo disso tudo. Esperava um
dia resgatá-lo, finalmente, porém, não tinha certeza disso.
E se atormentava diante da impossibilidade, do inatingível.
Quem sabe, poderiam viver o que não puderam, encontrar-se , tocar-se,
na mesma idade, no mesmo instante presente. Pudera ela ultrapassar a barreira
da matéria, atravessar a velocidade da luz e embrenhar-se pelos átomos
que compõe os corpos até encontrá-lo, em algum ponto do
universo, numa galáxia perdida, longe de tudo e de todos, agora só
os dois, um encontro marcado.
O tempo era cruel, ela sabia. Mas já não lutava contra ele e
conseguia entrar na sua mais obscura intimidade. Compreendia e comungava com
as suas vicissitudes e desencontros e entendia suas sincronias. Nem mesmo a
impressão do vir a ser importava. O futuro lhe parecia uma mera impressão.
Restava o senhor cronos como ele é, na sua crueza e terror e sua vontade
de nada.
E nesse presente havia José, cada vez mais perto, que se entranhava
na sua carne e atiçava seus nervos, dando-lhe aflição e
medo. Uma angústia que se estendia cada vez que ela fumava um cigarro
e observava a fumaça, dançando fantasmagórica na sua vista,
forçando-a a refletir. Mera ilusão? Talvez.
Nessa inércia, meio ridícula e apavorante, restava a impressão
daquele olhar, que a feria por dentro e que lhe perseguira por toda a vida.
Da voz forte de José, chamando-lhe para brincar, dar-lhe balas e doces,
dele e seu pai falando de negócios à mesa. Os dois jantando todas
as noites, enquanto a mãe preparara o café. E ela, menina, saias
curtas, brincando com a boneca, mas de olhos ligados para ver se ele ia embora.
Lembrava-se de seu sorriso interior ao perceber que ele ficaria mais um pouco.
Eram sócios, José e seu pai e ninguém jamais imaginaria
aquele amor latente, por vezes, já tão maduro e endurecido, entre
uma menina e um homem, muito mais velho, separados pela distância do tempo
e absolutamente juntos na justeza da alma.
Ela e José jamais se encontrariam. Falo de encontros de corpos. Um dia
ele casou e mandou convites. Ela, na sua meninice, pediu pra mãe comprar
vestido e sapato, como se fosse a noiva. Sabia que aquele casamento era dela,
selariam o enlace no mundo invisível, muito mais real e verdadeiro.
Quando ele subiu ao altar, um arrepio tomou o seu corpo. De mãos dadas
com a mãe, ela chorou quando o viu beijar a noiva. E ao cumprimentar-lhe,
respirou aliviada ao encontrar novamente os seus olhos.
Afinal eles estavam nela e ela os levaria para sempre, como uma promessa. Eram
os mesmos olhos que ela conhecia e que ele via como a redenção
de um futuro distante e de um presente proibido.
Anos depois reencontrou-lhe, já velho e doente. A esposa era uma velhinha
simpática, que sorriu quando a viu e lembrou-se dela com carinho, quando
menina. Ele envergonhou-se ao vê-la assim tão velho, mas seus olhos
não conseguiram esconder o que sentiu. E além do tempo, eles tinham
agora a barreira da carne, a dela tão fresca....
No entanto, ela o amou mais ainda ao saber que tudo estava perdido. Enquanto
ele viveu radiante, seu último instante de vida.
Morreu uma semana depois.