Quando eu morri, o meu coração bateu forte e forte e mais forte
e acelerado até que, na virada de um segundo exato, parou por completo.
Estancou o passo.
Enquanto ia a tal ritmo, acima, no domo de ossos de meu crânio, soava
uma música desconexa, bem dentro, uma composição de melodias
tortas e inventadas. Um rock and roll de guitarras elétricas que
rebatia nas paredes daquele zimbório inadvertido, reverberando por todos
os ossos, um rock egocêntrico e depravado, que crescia tapando todas as
saídas de sentido. Furiosamente destorcido. Real. E músculos brandos.
Todos os músculos calmados sem espasmos. Tudo fazia com que eu começasse
e terminasse inteiramente e apenas em meu próprio corpo. Nenhuma referência
de fora, nem brisa, nem luz, nem nada. Nenhum cheiro, nenhum brilho de ouro,
nenhum outro som. Imagine, foram os últimos instantes meus como ente
vivo e eu estava trancafiado, completamente encerrado, sem tocar nada de exterior.
E, menos, sem ser tocado.
E meu coração parou. Parou de repente, como disse, na virada de
um tempo marcado. Mas já faz tempo isto. Bastante tempo. Na noite antes
desta árida sentença, antes de minha morte chegar num ponto final
exclamado sem tom de relevo, me lembro, não consegui dormir. Não
pude fazê-lo, embora não me ocupasse de nada em pensamentos. Absolutamente
nada passava por minha cabeça, nada de palpável tomava-me o momento,
entretanto, sem poder conciliar-me com o sono estive ali, estirado sobre os
lençóis. Horas e horas partidas. Havia sido, sem que me desse
conta, meu primeiro branco total em anos de existência. Talvez mesmo pude
ali haver meditado. Talvez, sem dar-me conta e estar inteiro, pude iluminar-me
naquela noite que se fez igual a tantas outras antes de minha morte. Algumas,
ordinárias noites de insônia. Nunca se saberá. Mas, é
certo, a esperada conexão não veio, não ocorreu nada, nada
fantástico, nada que valesse o registro em livro porque aquele instante
não havia sido o mesmo, a hora exata da minha morte. Não coincidiram
em mim quietude e fim. Apenas recordo estar cansado. Bastante...
Dois dias antes de minha morte, bem ao cair da tarde, posso recordar-me, me
senti invadido por uma ternura absurda pelo mundo. E paz. Sim, estou seguro
que era paz aquilo que me paralisou o dia quase que em uma única mirada.
Olhar profundo e atento a tudo, que fez com que eu apenas observasse os pássaros,
aos saltos disputando comidas mínimas sobre o asfalto, e os velhos ao
sol sentados na praça. E a praça com seu mundo inteiro, o movimento
nas escadarias do prédio dos Correios e o resto que nos cercava a todos.
No entanto, como falei, isto ocorreu dois dias antes de minha morte.
No dia exato em que morri, na hora precisa apontada nos relógios não
me lembro de nada parecido chegar até mim. Nem paz, nem nitidez ou luz
cegante. Apenas a música desgarrada, aquela musica sem fleuma, ácida
dentro da cabeça, e o coração no cume acelerando. No dia
de minha morte, infelizmente, não pude deixar de pensar até o
ultimo instante. Morri digerindo imagens e palavras encarrilhadas. Uma sobre
outra e outras. Quem sabe mesmo coisas inteiras de toda uma vida. Isto até
que parou. Tudo cessado.
Já na manhã seguinte à minha morte estava frio, muito frio.
E, embora fosse dia claro, marcado por uma luz tíbia e azulada, nevou
por primeira vez aquele ano.