"Give us time... Let the girl die... I am no one... I
am no one... Fear the priest... Fear the priest..."
The Exorcist
Encontrei no Saara uma menina possuída por um demônio. Por cinco
longos anos o mal a dominava e a fazia vagar entre os animais agrestes, nos
ermos, e estar entre eles como um igual. Pelas cercanias ela corria com seus
vestidos esvoaçantes em meio às manadas de quadrúpedes
dos beduínos; e os atormentava durante a noite com seus uivos que emitia
das vastidões do deserto por onde andava. Seus cabelos desgrenhados formavam
uma aura negra em torno de sua cabeça e encobriam parcialmente os olhos
que eram como duas pedras negras incandescentes. De sua língua não
saiam se não impropérios e blasfêmias e seu corpo corrompido
por pedaços de pau e outros artefatos pontiagudos exalava um cheiro pútrido
misto de urina, fezes e suor; um suor inumano; de cavalo, de camelo. Diziam
que sua boca emanava um odor de coisas velhas, mofadas, mortas.
Quando a vi, no fundo do quintal, ela estava a perseguir pequenas criaturas
que mergulhavam na areia quente; como um cão ou um gato que tenta brincar
com sua presa antes de devorá-la, ela os abocanhava e os atirava para
cima antes de quebrar suas espinhas. Em verdade já devia estar farta
pois seus lábios retorcidos apresentavam uma tonalidade vermelha como
sói acontecer às bestas assim que acabam de se alimentar.
"Kehinde!" Gritou sua mãe no lusco-fusco do dia que findava.
Mas a menina não ligava, andava a correr em busca de um animalzinho sobrevivente
que insistia em resistir.
"Kehinde, venha ver o padre branco que lhe falei, da capital!". A
mãe, do umbral da porta de sua casa, buscava com os olhos, sempre que
podia, uma imagem de nosso senhor postada na parede da sala humilde.
A menina, ao ouvir que eu era um padre, de imediato, parou de perseguir o animal
e se virou para mim. Ao longe sua silhueta recortada contra o poente lembrava
muito mais um horripilante espantalho.
De repente aquela criatura desengonçada e esquálida avançou
para mim e foi como se o próprio diabo estivesse dominando seus pequenos
pés. Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação
ela me alcançou e pude então ver com clareza o nível das
mazelas que a entidade já provocara em seu corpo franzino.
Sua carne estava coberta de cortes a arranhões. Havia feios hematomas
por todo o corpo pois eles eram tantos que saiam de debaixo da roupa para as
partes expostas da pele. As mãos e pés eram grossos de cavalgar
entre os animais e seus dentes eram amarelos de comer entre os bichos em todos
os lugares; por um instante me pareceu, na penumbra do início da noite,
que eles estavam mais compridos e pontiagudos do que o aceitável.
A menina ficou parada na minha frente, oscilando lentamente. Tinha no semblante
uma expressão risonha mas desligada de tudo. Como se estivesse a se divertir
com algo que só ela via em algum lugar que não aquele em que estávamos.
Coisa estranha! De algum lugar dentro de seu corpo brotava uma música
nauseante que dava arrepios; uma espécie de sibilar harmonioso.
Ela ergueu o dedo indicador para mim e eu me mantive quieto para ver o que
ia fazer. De súbito o dáctilo começou, como se num movimento
involuntário, a descrever sinais no ar. E ele se contorcia de forma horrenda,
e estalava ao encostar a ponta da unha no meio da mão pelo lado de cima.
Depois todos os outros começaram a fazer os mesmo movimentos e foi então
que veio a coisa mais terrível que já tive que presenciar. Pareceu
primeiro um ruído de engrenagem velha entrando em movimento e, depois,
aquilo foi tomando forma como uma voz que saia da barriga da menina.
"O padre! O padre! O padre!" Repetia sem parar enquanto o sorriso
da criança aumentava quase a ponto de rasgar sua boca. "Tem muito
espaço aqui para o senhor também, padrôco!". Com um
arrepio vi a língua de Kehine pender para fora da boca. Ela ou o demônio
havia lacerado o órgão com algum objeto cortante de forma a fazer
com que ficasse bifurcado; dividido em dois como as línguas dos répteis.
E havia, junto ao sangue, um limo branco que escorria dela e que a menina tentava
lançar em mim agitando a cabeça convulsivamente.
Depois ela começou a andar em círculos com extrema rapidez, e
segurava as mãos para trás. A sua mãe, petrificada na porta
da casa, chorava copiosamente em meio às ladainhas que as velhas africanas
rezavam no interior da moradia. Todas esperavam que eu, o padre inglês,
resolvesse o horror da mocinha e a dor de todos. Mas eu, por mim, estava acabado.
Tudo o que queria era ficar longe dali; ir embora imediatamente daquele lugar
danado. Foi com esta intenção que apertei firme a valise que trazia
entre as mãos.
A entidade então parou de correr em círculos e se virou de novo
para mim. Já estava totalmente escuro neste momento, mas pude ver as
duas brasas vermelhas em que se haviam tornado seus olhos assomando em meio
à massa de cabelos negros desgrenhados e espessos. E então falou,
enquanto o frágil corpo que habitava parecia estar à beira de
um colapso de cansaço.
"Não vais usar as bugigangas que trouxeste ai dentro desta pasta,
padre?"
E me encarou esperando qualquer afirmação minha. Tinha um semblante
feroz, terrível, que me fazia desviar o olhar quase que involuntariamente
e me arrepiava a pele. No entanto, por uma fração de segundo,
pareceu que podia temer que minha resposta fosse positiva mas eu nada mais podia
falar; o medo me dominara totalmente.
Então, em meio a gritos pavorosos, o inimigo vociferou a mesma frase
que havia dito antes, porém, agora em outras línguas num arremedo
canhestro e incômodo de sotaques estrangeiros:
"¿Usted no va a utilizar los adminículos que usted trajo
dentro de esta cartera, sacerdote?"
"Are you not going to use the gadgets you brought inside this briefcase,
priest?"
"Willst du diese dinger die du in Tasche gebrach hast, nicht anwenden,
Pater"
Da casa próxima vinham os sons das rezas. O demônio sorriu.
"Velhas frígidas! Vão rezar até o fim dos tempos!
Daqui não saio. Posso fazer tudo daqui. Posso te visitar na china, a
qualquer hora, sem deixar livre esta cadela!"
Eu, de olhos arregalados diante daquela abominação, nada podia
fazer a não ser tentar conter o tremor que de mim se apossava.
"Toma!" Esturrou a coisa com um som semelhante ao mugido de um boi.
Ele levantara o vestido da menina e começara a passar a língua
pela pele lânguida; e aquilo, que se assemelhava a um apêndice intumescido,
estava tornando-se cada vez maior. Na escuridão da noite pude ver insetos
que corriam sobre a carne lacerada; estava infestada de carrapatos e larvas
cobrindo as bordas das inúmeras feridas infeccionadas.
Para mim isto teria sido a gota d'água se, logo em seguida, algo ainda
mais aterrador não tivesse tomado lugar na história.
O ser dentro da menina Kehinde aproximou-se ainda mais de mim e me segurou
pelo pescoço como a me estrangular; ao que todos da casa acorreram gritando
em meu auxílio.
"Cobarde! Cobarde!" Esbravejava a coisa. "Da próxima
vez me mandem um homem, suas malditas!"
Então, sem que ninguém pudesse impedir, aquele horror saltou
para o alto de uma árvore próxima onde ficou a se jogar de um
galho para o outro como o fazem os macacos. E soltava gargalhadas medonhas que
mais se assemelhavam ao guinchar de manadas de porcos num matadouro. Seus berros
se desprendiam na noite africana como a espalhar maus-presságios por
entre os ventos do deserto.
Aqui eu desisti de tudo! Dando as costas ao povo simples daquela vila amaldiçoada
eu corri de volta ao meu veículo estacionado na entrada da propriedade.
Corri dali como um rato que abandona um navio afundando e a morte da pequena
nativa já me pesava nas costas.
Na estrada eu parei e fiquei muito tempo meditando sobre tudo o que testemunhara.
Decidi que não tinha fé suficiente e, abrindo a porta do carro,
atirei longe a minha valise com um exemplar do Ritual Romano, da Bíblia
Sagrada e outros objetos pessoais como estola e crucifixo. Desde então
não sou mais um sacerdote e nenhuma igreja jamais logrou novamente avistar
minha figura encurvada entre seus fiéis.
A última e terrível lembrança que guardo daquele lugar
foi a de ter olhado de volta em direção a grande árvore
que dominava a propriedade da família da pobre Kehinde e ter avistado
o ser medonho que a assolava e a mataria em breve. Mesmo na distância
imersa na mais pétrea escuridão desértica aquele ser me
fez ver sua careta zombeteira ao mesmo tempo em que me mostrava mais uma vez
sua língua bifurcada. E passava suas mãos encardidas e carregadas
de lascívia pelo corpo debilitado de sua vítima fazendo-a erguer-se
do meio dos galhos da copa da árvore mexendo com violência os quadris
e os pequenos seios. Entrei novamente no veículo, dei partida e me distanciei
dali para sempre.
Hoje sou um velho e vivo em solidão. Jamais me foi possível constituir
família. Não tenho fé em nada que venha do bem. Sou um
estranho entre os outros homens. Não tenho paz em nenhum segundo de minha
vida e durmo, muito pouco, apenas durante o dia. Faz 30 anos que tudo aconteceu
e, desde então, toda noite, uma sombra escura que emite um lamento pavoroso
se esgueira pela casa e se posta em minha cabeceira. Ela vem dos campos, dos
descampados, dos cemitérios. Ela vem dos desertos solitários e
não me deixa esquecer. Parece que me vela, me vigia para que eu não
resolva tirar minha própria vida. É como se quisesse guardar minha
alma... Para outrem! Às vezes fico sentado na cama vendo-a e ouvindo
seu pranto dilacerante até o amanhecer. Já tentei falar mas só
fiz com que sua dor aumentasse.
A todo o momento lembro que minha hora está próxima. Diante da
dor profunda do espírito que é a sombra que me vigia, emerge à
memória a frase que o demônio me disse no deserto em minha juventude:
"Posso te visitar na China, a qualquer hora, sem deixar livre esta
cadela!"