Naquela noite, logo após vestirmos as camisas de frio, fitei com atenção,
e naquele momento senti que seu olhar era distante, muito vago. Permaneceu absorto
em algum pensamento, parado, e com o olhar fixo em algo no chão. Divagou
durante alguns segundos, e voltou a arrumar sua mochila novamente. Estava certo
que Edgar pressentira alguma coisa má, aquilo era agourento demais. Essa
foi à primeira vez - naquela noite - que eu assisti uma ponta de medo
em sua face. Deus sabe o quanto eu gostaria de evitar ter assistido aquela cena.
Edgar era muito adulto para sua idade, era uma pessoa lógica, prática,
e não dava vazão para imaginação. De uma coisa tive
certeza naquele momento: o medo estava apenas começando a ganhar espaço.
Comecei a imaginar o quanto seria legal ficar em casa, assistir a um filme,
fazer qualquer coisa. Poxa! estava tão aconchegante lá dentro,
e só o fato de imaginar o gelo que estava lá fora eu já
tremia. Eu, já havia me convencido de que era melhor não sair
de casa por nada nesse mundo, mas ele, será que ele não conseguia
ver isso? Talvez se eu pedisse com jeito acho que ele entenderia, e quem sabe
mudasse de ideia. Devia ter algum lugar em seu coração
- naquele canto mais humano - que lhe tentaria, e que por fim, o convencesse
de que era muito mais interessante ficar em casa numa noite gelada de outubro
do que andar pelas matas que circundavam aquela fazenda.
Edgar havia terminado de se vestir. Colocou seu surrado blusão, puxou
as luvas entre os dedos, e baixou a touca preta apertando-a contra a sua cabeça.
Não restava dúvidas quanto a sua convicção. Como
não havia possibilidade para uma mudança de planos, decidi fazer
o mesmo de forma deliberada.
- Olha Felipe, eu não quero lhe forçar a nada. Disse num tom melancólico
- tem certeza que deseja me acompanhar?
- Claro! Respondi antes mesmo de terminar o que estava dizia. - Afinal de contas,
acha mesmo que eu deixaria a diversão só para você?
Então ótimo, irmão. - Afirmava ao mesmo tempo em que procurava
meus olhos, acho que ele tentava encontrar alguma sinceridade no que eu dizia.
Edgar ligou sua lanterna, eu liguei a minha. Foi então que demos início
ao nosso plano.
Era cerca de onze horas quando saímos, procuramos abrir as portas da
casa com muito cuidado para não fazer barulho, evitando que meu tio acordasse
e acabasse com tudo aquilo. Passamos em frente ao celeiro, e olhamos para os
cavalos que ainda estavam acordados, alguns estirados sobre o capim, outros
parados olhando quando a gente passava. Era estranho para eles, assistir gente
acordada numa hora daquelas... era algo muito incomum naqueles campos. Evitei
a todo custo continuar olhando para aqueles cavalos, dizem que eles podem ver
almas, e isso me dava calafrios. Teve um deles que chegou a rinchar como se
tivesse respondendo aos meus pensamentos. Em cima de nós sobrevoo
um pássaro que soltou um guincho, apático e melancólico,
em forma de canto. Era uma noite de lua clara, mas de nuvens carregadas, e logo
percebi que seria muita sorte conseguirmos retornar sem estar encharcado pela
chuva.
A fazenda do meu tio já se encontrava atrás da gente, em nossa
primeira investida através daqueles campos. Era um caminho longo, então
decidimos nos concentrar em nossos passos, procurando os melhores caminhos para
pisar, evitando as poças de lama, e galhos de árvores. O mato
estava todo umedecido de orvalho, e em pouco tempo nossas calças empapavam
dos joelhos para baixo. Nossas botas eram rijas, e as blusas que nos ajudava
muito com a baixa temperatura. Estava usando o blusão do meu tio, próprio
para essas noites, mas o frio era tão cortante que traspassava por entre
a lã, e atingia em cheio minha pele, me deixando arrepiado. Naquela noite,
o vento estava forte, e passava por nossos ouvidos assoviando alguma coisa lamurienta.
Eu apenas seguia aquele círculo luminoso que a lanterna emitia sobre
o mato, não suportava a ideia de estar ali, queria que aquilo
tudo acabasse o mais cedo possível. Já o meu amigo estava desperto,
tomado por um ânimo que me embaraçava, parecia que sentia prazer
adentrando naquelas matas funestas, e isso me preocupava. Foi então que
encontramos uma velha trilha que cortava aquele matagal, e pela sua vegetação
rasteira, julguei que era pouco usada pelos moradores daquele lugar. Havia poucas
árvores por ali, e algumas delas estavam com uma aparência nauseabunda:
sem folhas, e com os seus galhos estirados, secos e sem vida. Acho que algum
incêndio as deixara assim. Algumas raízes davam na trilha que seguíamos.
Cheguei a tropeçar nelas um tanto de vez. Deixei que meu amigo nos guiasse,
e quando já havíamos andado por bastante tempo seguindo aquele
trecho, decidimos adentrar de novamente naqueles matos. Não tínhamos
a localização exata do lugar que procurávamos. Tínhamos
apenas uma noção incerta de onde ficava, porquê não
conseguimos muitas informações com o pessoal das redondezas, e
as poucas pessoas que a gente interrogara não conseguiam relatar um caminho
com precisão. Eram poucos que se aventuravam a passar por ali. Eles repugnavam
aqueles cantos. Muito deles disseram que o lugar era vigiado por espíritos,
teve um que jurava ter escutado gritos estranhos vindo daquela direção.
É claro que não acreditei em nada do que eles diziam! Eram pessoas
simples, tinha que inventar histórias para passar o tempo durante as
fogueiras noturnas.
De repente vi Edgar começar a mudar de expressão. Acho que agora
ele começava a sentir-se um pouco desconfortável. Tive a impressão
de escutar passos vindo em nossa direção. Aquilo me deixou atormentado
por um instante, parei e perguntei ao Edgar se ele havia escutado alguma coisa.
Ele ficou me olhando com uma exclamação no rosto, enquanto minha
lanterna procurava iluminar algo no meio daquela escuridão. Fiquei parado
atônito, tinha a certeza de ter escutado alguma coisa se aproximando,
procurei escutar novamente, mas para minha decepção não
escutei nada. Devia ser o encontro do vendo com o matagal, o farfalhar criara
esse ruído. Acho que minha imaginação saltou para os meus
ouvidos me iludindo. Edgar não deu muita atenção ao meu
devaneio, e recomeçou a caminhada.
O vento começou a ceder aos meus pedidos, e deixava de soprar forte.
O mato começava a adquirir seu aspecto original, ficando mais aprumado,
balançando muito pouco. E a lua que já havia percorrido um longo
caminho junto com a gente, ainda iluminava radiante no céu, quando não
era interrompida por alguma nuvem acinzentada.
Comecei a ficar apreensivo com os movimentos rápidos que Edgar soltava
de repente com os olhos. Parecia que prenunciava algo, ele colocava a mão
sobre a fronte e fitava em algum ponto no meio das matas. Foi então ele
avistou aquilo no meio da floresta.
- Está vendo? Chegamos - exclamou ele quase sussurrando.
Não consegui definir nada por um instante, estava tudo tão escuro.
Mas quando dei uma segunda olhada percebi que tinha uma casa bem ali na minha
frente. Acho que chamar aquilo de casa seria um elogio, ela assemelhava muito
mais a um depósito de ferramentas que há muito tempo não
era reformada. Tinha um tom esverdeado em algumas partes, era o efeito do lodo
que lhe degradava. Era construída de uma madeira que eu julgava ser bem
resistente para sobreviver ao tempo dessa forma. Tinha o telhado com duas quedas
construído com telha colonial de barro cozido, muito semelhante com a
usada na fazenda do meu tio. Havia uma janela em sua lateral, e uma escada de
madeira podre em frente à porta. Alguns tambores de lata, carcomidos
pela ferrugem, encostavam-se à parede, ao lado de algumas toras de lenha
que se misturavam com a relva. Avistei também algo que se assemelhava
em muito a um fogão de lenha, era feito de terra, e sua base estava borrada
com o preto característico da combustão da madeira, me pareceu
que há muito tempo não era utilizado. Árvores silvestres
ornamentavam o local, além de raízes, folhas, e gravetos que eram
encontrados em todas as partes. O cheiro de mato ficava cada vez mais forte,
quase insuportável. Na pequena área em frente da casa - onde percorria
algumas gramíneas por entre as madeiras do piso -, tinha uma cadeira-de-rodas,
com o assento rasgado e lodoso, e uma cadeira de madeira que há muito
tempo fora pintada de branco, estava caída ao lado, acho que se alguém
tocasse nela ela desmoronaria no ato.
Tive a impressão de que estava morto, ao me deparar com aquilo tudo.
Aquele cenário era desgraçado, ruinoso, e sinistro.
- Cara! Parece à casa da bruxa que eu li em João e Maria! - Disse
meu amigo, num tom de sarcasmo. - Vamos... Vamos entrar!
Apesar de saber que nossa intenção aqui era essa (entrar naquela
maldita casa), eu não acreditava no que ele estava dizendo para mim.
Enquanto eu procurava caminhar o mais lento possível, meu amigo chegara
até porta, girou a maçaneta, e abriu a porta lentamente, que produzia
um ranger áspero e penetrante. Era como se a casa estivesse dizendo que
éramos pessoas importunas... que não éramos bem-vindos
ali.
Quando entrei, percebi que a casa era menor do que aparentava, era apenas um
cômodo largo. Estava forrada com a mesma madeira que vinha da área,
e havia uma lareira, com uma chaminé que dava no teto. Não tinha
muitos móveis por ali, apenas uma mesa, cadeiras, e uma cama. Também
tinha várias caixas empilhadas , umas em cima das outras encostadas num
dos cantos da parede. Em uma delas que se encontrava aberta, eu percebi várias
ferramentas de marceneiro. Vi também uma pilha de livros mofados.
Nesse instante começou a chover sobre o telhado daquela velha casa.
Um cheiro fétido era exalado, achei que era por causa da pouca ventilação
que corria naquele lugar, todas as janelas estavam fechadas, e a porta também.
- Felipe, olhe só isso aqui! - Edgar apontava para o chão.
E bem ali no meio da casa eu avistei um alçapão. Edgar já
presumira encontrar aquilo, segundo ele lá estava o que procurávamos.
Tentei ajudá-lo a abrir aquele tampão de madeira. Nele não
havia nenhuma alça para arrastá-lo, o que dificultava mais ainda
o trabalho. Mas quando nos livramos do obstáculo, percebi que havia alguma
coisa escrita sobre ele. Era alguma coisa talhada na madeira que sugeria alguns
vocábulos desconhecidos, pareciam com símbolos. Procurei mostrar
para meu amigo mas ele não deu muita importância, se preocupando
com a escadaria que se revelara embaixo daquela tampa. Era uma escadaria que
descia para a escuridão.
- Aí tem coisa! - exclamou ele.
- Então, quem desce? - perguntei, rezando para ele se prontificar.
Não escutei nenhuma resposta, o meu amigo estava atônito olhando
para um dos lados. Achei aquilo muito estranho, ele nem tinha escutado o que
eu havia dito. Perguntei novamente, mas ele apenas levantou o dedo em direção
à janela. Procurei olhar para onde ele mirava, e lá eu avistei
alguém que assistia a tudo o que fazíamos lá dentro, não
dava para defini-lo, apenas verifiquei uma sombra, era uma silhueta que estava
ali, há não sei quanto tempo, parada, olhando...
Quando ele percebeu que estava sendo observado, saiu da janela num sobressalto.
Acredito que meu coração quase explodia naquele momento, nunca
havia sentido um calafrio tão intenso percorrer pelo meu corpo. Meu amigo
tinha em sua face uma expressão clara de terror. No mesmo instante procurei
pelas ferramentas dentro da caixa, agarrei o formão que ali estava, e
passei uma outra ferramenta para o meu amigo, era uma espécie de lima,
que tinha em sua extremidade uma ponta afiada. Meu corpo tremia todo, e a luz
emitida pela minha lanterna não se fixava em ponto nenhum. Edgar logo
procurou iluminar a porta que se encontrava fechada, na expectativa de que a
pessoa dona daquela sombra entrasse por ali a qualquer instante. Para nossa
surpresa nada aconteceu, não escutamos passos, e não avistamos
novamente aquela figura. Concordamos que seria melhor sair dali, deixar aquele
lugar.
Procurei a porta, e quando eu a abri, para minha surpresa, não encontrei
a cadeira-de-rodas que estava lá quando chegamos. Fiquei espantado por
um instante, mas o meu medo era tão grande que eu não consegui
importar com aquele fato. Apenas gritei para Edgar correr o mais rápido
possível, e logo em seguida corri também. Só paramos para
tomar fôlego quando encontrávamos na trilha das árvores
queimadas. E poucos minutos depois, voltamos a correr novamente, dessa vez até
chegarmos na casa do meu tio.
Naquela noite ninguém falou sobre o que havia acontecido.
Logo após o amanhecer, meu tio me interrogava sobre a noite anterior,
queria saber onde eu estava e o que eu fizera para deixar as roupas naquele
estado, incluindo sua blusa que tanto estimava. Ele também me perguntou
sobre uma cadeira-de-rodas que amanheceu na varanda, ao lado da porta.
Aquilo foi à coisa mais estranha que aconteceu na minha vida...
Talvez aquele lugar fosse vigiado por espíritos.