"Quero ser leve..."
Ela era enfática. Clamava por um esvaziamento. Livrar-se de sentimentos.
Livrar-se de conhecimentos. Queria ser um bebê de vinte e poucos anos.
Gargalhava tamanho absurdo. Mas o peso da existência era grande. E não
se sentia capaz de suporta-lo. Indagava o nada. Enchia-se de nada. Porque se
sentia um nada. Chorava. Ela tinha essa qualidade, sabia chorar. Profundamente.
Viver pode ser complicado para alguns. O excesso de interrogações
gera algumas interpretações que podem nos fazer surtar. Seria
simples apertar o botão automático e deixar ser levado. Simplesmente
viver. Existir já é um pouco mais complicado.
Nossa menina era bela, esteticamente falando. Sorriso perfeito. Além
de chorar ela sabia rir muito bem. Contagiante. Seu olhar era desafiante, engatilhado.
Trazia doçura, mas era triste, vazio. Era profundo, parecia não
olhar o mundo exterior, era alheia a esse, olhava para dentro. Distante.
Sarah.
As noites, quando sua única companhia era ela mesma, uma angústia
a consumia. Dor. Contorcia-se em sua cama, se abraçava, posição
de feto. Brigava com seus pensamentos, pensar assusta.
Pensava, pensava, pensava muito. Abstrações profundas, existenciais,
isso a tornava alheia. Já quis mudar o mundo, mas agora só queria
mudar a ela mesma. Sonhava. Vivia personagens. Doía acordar. Antitética.
Sentia-se mal por não estar satisfeita. Aos olhos dos outros, tinha tudo
para ser feliz. Mas tinha repulsa de tudo que a cercava. De suas regalias, do
pseudoconforto, da estabilidade. Quantas obrigações isso lhe causava,
invejava o vazio. Transbordava.
Mulher. Menina. Sarah. Vinte e dois anos.
Uma vida.
Vieram os novos amigos. As novas roupas. As novas músicas. Os novos livros.
Novas para ela. Velhos para tantos.
Observando Sarah, começo a indagar sobre as motivações
da vida, o seu significado. Será nada? Privo-me das mistificações.
(pausa)
(longa pausa)
Tudo é tão banal quando se indaga. Mas por acaso vivia. Por acaso
tinha momentos de felicidade intensa. Como é bom rir de graça!
Era desprendida. Gozava. Era amada. Amava. Soluçava. Amanhecia.
Cíclico. Ia para o trabalho. Dava o seu melhor, produzia e multiplicava.
Interagia, cansava, mas se sentia ativa. Depois faculdade; absorvia, indagava,
interpretava, aceitava. "Cara maluco esse Schopenhauer!" Fartava.
A luz do sol lhe fazia bem. Tanta claridade lhe escurecia. Ocultava-se. Encobria
seus desatinos noturnos. Frustrações e devaneios. Executando suas
obrigações libertava-se de seu ser dialético. Refugio.
Mas aquele olhar... Um bom observador logo perceberia as máscaras. Singela
criatura. Só enganava a ela mesma. Não era feliz, mesmo porque
não sabia identificar isso. Nem sabia o que era isso. Também não
era satisfeita. Mas naquele período do dia, quando estava atolada com
seus compromissos, naquele momento não se sentia infeliz, também
não se sentia feliz. Não sentia. Isso era bom! Ela se deixava
levar. Ocupava-se dos outros.
Mas o dia sempre acabava. E tinha que voltar para casa. Família. Aquelas
pessoas lhe atingiam. Os outros eram apenas os outros. Aqueles não, refletia
ela. Isso a perturbava. Procurava ser sociável, a grande custo, mas se
relacionava, com certa distância, mas era o máximo que conseguia.
Mesquinhos, fúteis e inúteis, conceito de Sarah. Estanha, egoísta
e temperamental, conceito da família. Suportavam-se.
Porta trancada. Luz baixa. Música baixa. Cabeça baixa. Aquela
hora se encontrava com ela mesma. Dolorido. Dor no peito. Nó na garganta.
Chorava. Motivo, nem ela sabia. Mas chorava por nada. Pelo vazio que sentia.
Mas também por está farta. Farta de nada. As coisas para ela não
tinham significado. Adormecia encolhida no seu universo particular, na sua bolha.
Ás sete tinha que levantar e viver, viver por viver. Mas Sarah só
vivia porque tinha esperança. Esperança do que? Ela também
não sabia. Talvez esperança de um dia ter alguma resposta, ou
de um dia não querer mais repostas. Isso lhe motivava.