Edinésio chegou ao escritório às 7:15 como fazia há
35 anos. Era seu último dia de trabalho. Na verdade, só faltava
limpar a gaveta maior, pois já havia ensinado todas as tarefas e macetes
ao seu sucessor Borges. Apesar de ter feito muitos amigos no trabalho, suas
pernas tremiam pela ansiedade de deixar o recinto e iniciar sua nova vida. Estava
saturado daquela rotina diária, em frente aos monitores ligados às
Bolsas de Valores de mais de 20 capitais. Seus dois filhos já estavam
casados, dois netos de 5 anos já faziam algazarra no sítio onde
a família toda (cerca de 14 pessoas) morava em boa harmonia. Seus 6 apartamentos
alugados e o pecúlio mensal lhe dariam tranquilidade adequada para
sobreviver com o mesmo conforto atual. Amanhã mesmo iria começar
a montar o desejado viveiro, para no próximo mês, enche-lo com
os pássaros que apreciava. Também passaria a pescar no riacho
de águas límpidas, a 2 km de distância da casa, para depois
fazer um churrasco à moda indígena, regado a vinho branco. Como
sobremesa, poderia escolher em subir numa jaqueira frondosa (como fazia aos 8 anos de idade), numa mangueira, ou sem subir em nada, apenas
esticar as mãos debaixo das goiabeiras.
Às 16:30, emocionado pela gentileza dos colegas (lhe deram uma bela TV
de 29 polegadas), aproximou-se do Diretor Fagundes para abraça-lo pela
última vez.
- Como é Edi? Não quer mesmo ficar mais uns dois anos conosco?
Passaremos seu salário de R$ 8.000,00 para R$ 10.000,00 ! Depois deste
tempo, quando tivermos adquirido o Robolsa (um robot que estava sendo criado
para ser interligado às Bolsas), você poderá sair com uma
pensão mais polpuda, fazer uma viagem pela Europa, ...
- Agradeço muito sua gentileza, mas estou vislumbrando uma vida mais
saudável para mim, em constante contato com a Natureza. A única
bolsa com a qual vou trabalhar agora é a de carregar os apetrechos de
pesca - sua voz rouca encheu o recinto.
As gargalhadas sobrepujaram o som da música que tocava no fundo da sala.
No dia seguinte, acordou às 6:30, disposto apenas a ler os jornais e
revistas das quais era assinante mas não tinha tempo nem de ver as capas.
Levantou-se, fez a higiene matinal e pela 1a. vez num dia de semana, tomou café
junto com os netos, que já estavam prontos para a escola. Quando engoliu
o último biscoito com geleia, os meninos lhe pediram que os levassem
à escola (apenas até que o carro do pai retornasse da lanternagem).
Edi não podia negar este pedido aos seus parceiros de traquinagens. Quando
retornou do engarrafamento de 2 horas, foi direto à cozinha procurar
algo para molhar a garganta. Quando estava no segundo gole da boa laranjada,
sua esposa Doris, lhe pediu para ir ao mercado comprar batatas, sal e macarrão,
que ela não havia encontrado na mercearia da esquina. Após cumprir
mais esta tarefa (30 minutos), guardou o carro na garage para evitar o desejo
de mais alguém em lhe pedir algo mais longe.
Sua nora mais nova (Dalva) lhe pediu para colocar um óleo nas dobradiças
da porta do quarto, que rangiam mais do que correntes de castelo assombrado
(bem ou mal, não sabemos). Depois de eliminar a gordura das mãos,
sentou-se na varanda, saboreando o gostoso aroma do almoço que estava
próximo.
Após a deliciosa sobremesa de morango, assistiu o jornal na TV por 45
minutos, enquanto fazia planos para a parte da tarde. Neste momento, sua nora
Telma lhe pediu para consertar a corrente da pulseira de estimação,
que havia prendido na maçaneta da porta. Assim foi feito, depois de quase
30 minutos brigando com pequenos alicates e ter furado um dedo com uma traiçoeira
chave de fendas.
Quando estava chegando ao quintal, o sobrinho Afonso lhe pediu uma rápida
ajuda para desempenar a roda traseira de sua bicicleta, que também apresentava
problemas em 4 das 12 marchas que possuía. Foram mais duas horas de sujeira
e dores nas mãos.
Resolveu tomar um banho e colocar o pijama. Porém, teve de mudar de roupa
quando Doris lhe lembrou para pegar os netos na escola às 17:00 horas
e passar no mercado para trazer o peixe para o jantar. Ficou imaginando o cheiro
que se espalharia no ambiente de seu carro.
O cartaz na porta do escritório era visível a mais de 5 metros:
"PRECISAMOS de um experiente consultor para atuar junto às diversas
Bolsas de Valores.
Salário inicial : R$ 3.000,00 . Transporte, refeição e
saúde, por nossa conta.
Trazer documentos e xerox dos mesmos no horário comercial."
Quando Fagundes acabou de pregar o último percevejo, ouviu uma voz rouca
e familiar às suas costas, impregnada de esperança e felicidade,
que lhe perguntou :
- Posso começar hoje mesmo?
(1º lugar no VIII Concurso Literário da AMBEP - jul /1999)