A Garganta da Serpente
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Barranco Branco

(Heloisa Galves)

Brotei ali na terra do barranco branco, numa noite quente de lua cheia, sei que chamavam barranco branco porque era bege, e não marrom como deve ser um barranco. De resto não sei mais nada. Sei que brotei e me vi nascida, entendi que nascer é isso; sair da semente e olhar o mundo, a ali no barranco branco o mundo era bonito; assim achei quando vi a lua, estrelas e as árvores que me rodeavam. Quando somos pequeninos não temos noção do que é alegria ou tristeza, eu não tinha, quando brotei, apenas achei que nasci, nem sei como pensei assim. Sei que a luz é outra coisa que muda tudo em nossa vida; sei porquê com o dia vi que ali; o barranco branco não era tão lindo assim, a lua sumiu com as estrelas e veio um calor que não me agradou; também percebi que a visão com a luz, vai um pouco além; vi casinhas de madeira com mulheres parideiras e crianças tantas, que nunca soube contar quantas; sei que eram magras, melequentas e comiam com as mãos a pouca comida que tinham; algumas, percebi também, acabavam ficando sem...Ali no barranco branco fui vivendo meus dias, nem sabia o que eu era de fato, imaginei ser um capim, ou um broto de azevinho, podia ser uma flor miúda ou uma erva qualquer, nunca pude olhar pra mim e com o tempo percebi, que as crianças do barranco branco também não olhavam pra elas, acho que ninguém olhava pra elas, a não ser eu; e eu, eu nem sei o que eu era. Vez ou outra chegava uma carroça e levava uma delas embora; enrolada num manto cinzento que depois traziam de volta; imaginei ser coisa triste, pois as mães, que julguei serem mães choravam um pouco, depois voltavam pra casa ou iam estender roupas nos varais, havia muitos varais, muitas casas de madeira, muitas mulheres de barriga, muitas crianças magrelas. Um dia chegou perto um menino, vi que olhou espantando pra mim, foi correndo chamar a mãe, em pouco tempo era a gente toda do barranco em minha volta. Fiquei ali sem entender nada, o que afinal tinha em mim? Uma plantinha carpideira, um caulezinho estolão, uma maria-sem-vergonha, nascida assim de repente? Sei que me cercaram com gravetos fininhos, rezaram e ouvi falar em milagre. Foi só quando cresci mais um pouco é que tive certo entendimento, me estendi por todo barranco, não sei se eu era tudo, ou se não era, sei que começaram a me arrancar da terra, e embaixo das minhas folhas, ia junto uma coisa amarela. Percebi também que o que importava em mim, não era o que eu que eu tinha por fora, mas o que vinha de dentro, ali socado na terra. Alimentei aquele povo, e continuo alimentando, disseram ser obra de Deus. Nem sei como tudo mudou, nem como me multipliquei, não sei qual meu sabor, nem de onde vem o que penso. Só sei que as crianças estão crescendo, as carroças chegam mais vezes, mas levam agora sacos de mim, não mais crianças em mantos. As casinhas estão mais bonitas, as mulheres mais arrumadas, às vezes fazem festinhas, tem música, tem bailado, tem comida pra toda gente. Tem o que aprendi chamar de alegria, assim como também soube que o "antes" de mim era tristeza. Não me julgo especial, não compreendo bem as coisas, o melhor é que não me incomodo em entender, mas tem uma parte de mim, que sorri não sei por onde. A vilinha cresceu, tem até placa de rua, tem lojinha, tem farmácia. Construíram uma igrejinha, teve baile, missa, choro, teve coro, teve padre. Colocaram em cima da igreja uma cruz de madeira entalhada, e sobre a porta a plaquinha; Igreja da Santa Batata...

  • Publicado em: 26/06/2007
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