Era tarde, muito tarde para retroceder. Ela sabia que nada do que lhe dissesse
naquele momento far-lhe-ia algum sentido.
Consternada com a sua súbita reação, ela ringe os dentes
e lhe interpõe uma fala silenciosa, cujos significados são postos
ao acaso e grudam nas paredes como estampas envelhecidas em um retrato natural.
No móvel, imóvel, as imagens distorcidas de uma cena de natal:
árvores pitorescas, sinônimos à mesa. Objetos e retalhos
de uma vida real. Mas era tarde, realmente muito tarde. O relógio preso
à sala de estar, antigo préstimo de família, anunciava-se
pausadamente à meia-noite. Talvez se não fosse pela insistência
daquela humilde e pretensa sonoridade, podia-se dizer que a sala impregnava-se
de a companhia nefasta de um agouro congruente ao cingir de seus dentes.
Eram os sons do silêncio, os sons das madrugadas mal-dormidas, das luzes
intransigentes, das letras repartidas. Eram os sons dos vultos saltando os muros,
dos saqueadores de tesouros escondidos no interior dos túmulos. Eram
os sons dos vermes que vagam na noite com o tridente de Netuno.
Mas ela nada pôde fazer. Não havia como enunciar simples palavra
de conforto, posto que a vela apagara-se há meia-noite, junto ao silenciar
dos seus badalos e dos seus açoites. Ela nada pôde dizer. O candelabro
ainda enfeita o centro, porém a chama na vela o vento soprara rompendo,
sem mesmo a companhia de algum mimo ou acalento.
Ela nada pôde dizer. Ela nada pôde entrever. Acompanhava-lhe o espírito
apenas o denso e grotesco rugido dos dentes estampido no ar; perdido no cais,
no vácuo, no mar...
- Rsss... Ela nada pôde fazer!
Conto extraído do livro: Agá-Efe: entre ruínas & quimeras (prosa&poesia). (FERNANDES, Hercília: 2006, p. 75-76).