A Garganta da Serpente
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As jabuticabas

(Halley Caixeta de Oliveira)

(A Arnaldo Caixeta de Mendonça)

Estava prestes a atingir a superfície de uma lua que nunca existiu, quando fui despertado pelo ruído estridente do interfone. Olhei, com dificuldade, para os números embaçados que apareciam no visor do relógio, e consegui notar, apesar da miopia, que já passava das dez horas da manhã. Durante as férias na casa de meus pais, parecia que a cama de minha infância me acalentava como um colo materno aconchegante, convidando-me para um sono mais prolongado. Demorei um pouco para me levantar, na esperança de que minha mãe atendesse a porta. Todavia, o ruído se repetiu, indicando que ela não se encontrava em casa. Troquei de roupa com rapidez e fui ver quem interrompera minhas aventuras espaciais. Era o funcionário de meu pai.

- Seu pai pediu para você dar uma passada na casa do seu avô. - disse ele.

Mal lhe agradeci pelo recado e ele partiu em sua bicicleta, possivelmente para realizar alguma entrega. E eu fiquei pensando por que meu pai pediria para eu ir à casa de meu avô logo pela manhã. Lembrei-me, em seguida, de que ele comentara várias vezes que a jabuticabeira do quintal de meu avô se encontrava carregada de frutas. Decerto, meu pai estava lá, num dos galhos altos da árvore, deleitando-se com as jabuticabas graúdas que ninguém se animava a apanhar. E devia estar me chamando para saboreá-las com ele. Nem tomei café da manhã. Deixei meu estômago vazio a fim de me empanturrar de jabuticabas e sentir melhor aquele gostinho de infância que essa fruta me proporcionava. Gostinho de uma época sem preocupações, em que eu me empoleirava nas jabuticabeiras da fazenda de meu avô e brincava nas águas do regato que passava por entre elas. Infelizmente, a fazenda se tornara uma mera lembrança que, volta e meia, teimava em participar de meus sonhos. Do regato, sobrara apenas uma triste depressão no solo seco. Sem água, as jabuticabeiras não suportaram, deixando para a posteridade seus troncos sem vida. Ao menos restara meu avô, que se mudara para a cidade. Sua nova casa, para onde eu estava me dirigindo, não apresentava toda a magia da fazenda, mas possuía uma jabuticabeira solitária no quintal, tal qual uma sombra daquelas de outrora.

Meu avô morava perto da residência de meus pais, coisa de dez minutos a pé. Ao longo do trajeto, minha mente, de folga, só se ocupava com as jabuticabas. E, de quebra, cantava aquela música do Joubert de Carvalho com o Olegário Mariano, como que era mesmo? "Eu não quero outra vida pescando no rio de jereré..." Eu não tocava viola, porém iria, em breve, chupar umas jabuticabas de papo pro ar. E teria pela frente mais uma semana inteira de férias. Sem nenhuma contrariedade. Somente descansar. "O homem não deve se atormentar." Não era o que dizia a música? Eu pretendia seguir esse ensinamento à risca.

Com a mente desprovida de tormentos, cheguei à casa de meu avô. Entretanto, não pude deixar de me atormentar ao perceber uma aglomeração de pessoas no alpendre. Pessoas com tais semblantes que pareciam estar ali não pelas jabuticabas.

- Seu avô... Morreu... - apenas confirmou uma tia, antes de me acolher num abraço.

O sangue fugiu de minha face e senti minha mandíbula enrijecer. Por um momento, perdi a noção do que acontecia a meu redor. Não podia ser verdade. Desejava que eu ainda estivesse dormindo e fosse, a qualquer instante, despertado pelo ruído estridente do interfone. Aí, eu pularia da cama rapidinho, e correria a fim de contar para meu avô o pesadelo que tivera. E ele daria uma risada gostosa, provando que estava bem vivo. Para minha tristeza, o interfone não tocou e tive que aceitar a realidade.

Em meio à aglomeração, emocionado, encontrei meus pais, que me explicaram o que acontecera. Eles haviam resolvido visitar meu avô pela manhã. Chegaram a tempo de presenciarem-no passar mal repentinamente e solicitarem, em vão, socorro médico. Minha mãe, zelosa pelo meu sono, desligara o telefone de casa ao sair. Devido a isso, meu pai tivera que solicitar ao funcionário que me chamasse. Questionei sobre a causa do falecimento. Disseram-me que meu avô fora vítima de um enfarte fulminante. No entanto, não apresentara nenhum indício de ter sofrido. Nada. Nenhum gemido ou expressão de dor. Morrera serenamente, na cadeira onde se sentava para contar casos de tempos antigos. Tempos nos quais levava uma vida difícil, sem mordomias, trabalhando duro na roça ou conduzindo boiadas por caminhos inóspitos. Uma vida que, nem por toda a simplicidade, deixara de ter sido muito bem vivida, plena de acontecimentos insólitos.

No dia seguinte, após o enterro, a família se reuniu na residência que era de meu avô. A casa estava cheia de gente, mas ela me parecia incrivelmente vazia, tal qual nunca estivera antes. Preparava-se um almoço. Todos tentavam, sem sucesso, agir como se a vida voltasse a sua normalidade. Sozinho, entrei no quintal. A jabuticabeira permanecia lá, com o caule completamente tomado pelas frutas de um negro funéreo. Tive a impressão de que até a árvore se cobria de luto, partilhando de minha dor. Fui incapaz de conter o pranto. Pensei em fugir rumo ao portão. Não conseguiria experimentar sequer uma daquelas jabuticabas. Contudo, não poderia deixar a tristeza se apoderar de mim. Depois de tanta hesitação, por fim retirei uma fruta da árvore. Levei-a vagarosamente até a boca e meus dentes romperam sua casca negra. Extravasou sua polpa branca, que era ocultada pela superfície escura. Uma polpa branca como a nuvem que passava lentamente pelo céu azul. Branca como a verdadeira paz na qual meu avô se encontrava naquele momento. À medida que a polpa ia se espalhando por minha boca, fui sentindo um doce sabor de saudade tomar conta de todo o meu ser. A saudade... Essa sim seria difícil de vencer. Passariam vários anos, mas ela estaria ali, obstinada, para sempre comigo. Pelo menos havia o consolo de a saudade ser fruto de grandes momentos compartilhados...

De repente, meus dentes colidiram com algo. É mesmo, esquecera-me das sementes! Eram elas que carregavam em si a capacidade de perpetuar a vida! Meu avô produzira muitas sementes. Naquele instante, eu podia escutar várias delas conversando lá dentro da casa. Senti um orgulho inefável ao pensar que eu próprio era uma semente sua. As sementes de meu avô são a certeza de que ele cumpriu seu dever no ciclo vital. E de que sua essência jamais deixará de existir. Jamais.

(Menção Honrosa no I Concurso Nacional de Literatura Arti-Manhas "Prêmio Luís Antônio Pimentel")

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