"É sempre assim! Maldição! O café sempre acaba
quando está chovendo!"
esbravejou Stwart. Não sabia o verdadeiro significado da palavra "maldição".
Abriu a porta da sala, tinha de ir ate a garagem tirar o automóvel. Chovia
pingos grossos de uma chuva incessante de final de outono. As folhas avermelhadas
caídas sobre a grama do jardim formavam um colchão espectral.
Uma garotinha o esperava. Loira, os olhos pretos, molhada. Tinha o rosto pálido,
traços ninficos que revelava sua extrema beleza de forma melancólica.
Vestia-se aparentemente simples. Calçados pretos, calça jeans
desbotada e blusinha branca espondo-lhe a pele alva do abdômen. Nos pulsos,
adornos de elástico vermelho completavam sua feição feminina.
"Só faltava essa: uma menina pechinchando esmola!" - mandou-a
ir embora.
Sentia-se agastado. Não dormia há dias. Seu trabalho o exaltava,
mas ao mesmo tempo lhe proporcionava êxtase e fascínio. Gostava
do que produzia. Queria terminar de escrever seu sexto livro nos próximos
meses para depois, com o lucro das vendas, tirar suas tênues e merecidas
ferias em Orlando.
Voltou brevemente para dentro de sua casa e saiu, desta vez, vestindo uma capa
de chuva amarela daquelas medíocres usadas tanto pelos americanos mais
afrescalhados como pelos lixeiros mais imundos. Na mão esquerda, a chave
do carro: Um Alfa Romeu tão caro quanto velho.
Stwart atravessou o gramado, contornou o chafariz e, caminhando mais uns setenta
metros parou frente à garagem. Tirou o carro como o fazia habitualmente
todos os dias e se pôs a caminho do supermercado atravessando novamente
a alameda do jardim e contornando a fonte. O jardim era realmente muito grande.
Subindo mais uns 40 metros cruzou o portão afastando-se sorrateiramente
do campo de rosas vermelhas que brilhantemente enfeitavam a entrada da mansão.
O Portão permanecia aberto o dia todo, afinal, Etion era uma cidadezinha
pacata daquelas cinzentas em que todos se conhecem, não existe assalto
e mais da metade da população é constituída por
idosos.
Cruzou uma velhota que andava apressadamente pelejando segurar o guarda-chuva
contra o vento - Ah! O leitor ha de admitir que essas cenas são vistas
frequentemente e é tão misericordioso quanto cômico.
Dois quarteirões à frente, avistou a garotinha que batera em sua
porta pouco tempo atrás. Ela caminhava lentamente, despreocupada com
a chuva. Seus olhos fitaram os de Stwart e continuou encarando-o ate que a distancia
e os pingos grossos de chuva no retrovisor não o permitiu mais vê-la.
Aquele olhar: metade inocente, metade sedutor. Metade piedade, metade presunçoso,
altivo, arrogante.
O Supermercado estava sem café. Somente aqueles que fumam e tomam café
compulsivamente sabem exatamente o que sentiu naquele momento nosso caro Stwart.
Como se concentraria para escrever as ultimas paginas de seu romance? Como faria
para se manter acordado quando as inspirações mais elevadas lhe
brilharem na mente no meio da noite? Pobre Stwart! O destino se encarregaria
disso.
"Droga! Atropelei um maldito cachorro!" - desceu do carro tão
irritado como um guerreiro medieval desce do cavalo ao perder uma batalha. Atirado
a alguns metros, inerte, jazia um corpo. Sim um corpo.
Em segundos, toda a cólera e exaltação de Stwart se transformaram
num combinado de pavor e insanidade. Ele atropelara aquela garotinha de traços
ninficos. O sangue se misturava com a água da chuva e escorria pelo asfalto
até a enxurrada colorindo toda a água que por ali corria ate chegar
ao bueiro. Era como um rio de sangue que apos percorrer certa distancia chega
a uma imensa queda d'agua. E era assim que Stwart, as margens desse rio interpretava
a horrenda cena.
Como disse, Stwart estava dominado por uma onda fantasmagórica de pavor
e insanidade. Decidiu repentinamente deixar o corpo abandonado no local.
No carro não ficaram marcas. Ao olhar ao seu redor,nosso escritor constatou
que ninguém presenciara o fato. Se tivesse sido planejado, com certeza
não seria tão discreto.
Sete anos se passavam, um casamento e muita terapia depois, a vida
dele aparentava-se extremamente normal! E iria melhorar depois que sua mulher
desse à luz a seu primeiro filho.
Era uma menina linda, olhos escuros, como os dele e cabelos loiros como os de
sua esposa. Tudo corria desconfiadamente bem, até que sua filhinha foi
crescendo e as semelhanças foram se definindo. Seus traços: olhos,
rosto, cabelo, jeito... Era ela. A garota daquele dia. Já haviam se passado
vários anos, mas ele nunca iria esquecer aquele rosto de traços
ninficos. Nunca iria esquecer aquele olhar de clemência e ao mesmo tempo
presunçoso, aquele rosto pueril e sedutor, aquele jeito sombrio que desperta
curiosidade até mesmo nos olhares mais boçais. Idêntica,
não podia ser, ela o perseguia. Estava lá, dentro de sua casa,
dentro de sua família...
Estava enlouquecendo. Era o dia do aniversario de sua filha. Puxa! Onze anos.
Stwart estava perto de lançar seu décimo sétimo livro.
Esperou sua esposa sair de casa. Tomara a decisão quanto à menina
chegou encharcada de chuva no dia anterior. Era a mesma roupa, a mesma pulseira
a adornar-lhe o pulso, o mesmo olhar... Deus o perdoaria!
Foi até o quarto da filha e a estrangulou. Depois a sufocou com um travesseiro
embebido em formol e lhe abriu a garganta com a navalha de barbear.
Não cometeria o mesmo erro. Tinha de ter certeza que ela estava morta.