O olhar não só recria o que é visto, mas também aquele que vê. E a criação não nasce destinada ao fim, mas para o começo, contínuo princípio do deixar de ser o que foi para iniciar a ser o que ainda não é. Ítalo já havia aprendido isso. Chegara na noite anterior. Ainda não conseguia distinguir a vila na qual nasceu com a que se refletia em sua retina. Inexorável mover do mundo, involuntária resistência do coração. Após viver durante trinta anos na cidade de São Paulo, a notícia da sua volta causara certo alvoroço. Numa vila como aquela, tão longe de tudo, as histórias que ele narraria eram algo que despertava a curiosidade de quem nunca conheceu outro lugar. Era uma tarde de sol desfalecido. No centro do povoado, muitos habitantes se aglomeraram para ouvi-lo. "- Ítalo, conte como é São Paulo", pediam. "- Tudo bem, irei descrevê-la para vocês". Todos prestavam atenção. "- Só existe uma palavra capaz de definir São Paulo: ideia". Silêncio. "- São Paulo é uma ideia que ultrapassa a si mesma". Ouvidos atentos. "- Sabem o que vejo quando lembro de São Paulo?". Os olhos permanecem nas coisas do mesmo modo que as coisas permanecem neles, mas nem um nem outro se conservam sem diluição. "- Risos de crianças ecoando pelos vãos do concreto. Gestos desapercebidos dos que caminham nas avenidas. O cantarolar assobiado de um operário durante seu trabalho no alto da construção. A alegria dos jovens sentados nas escadarias da biblioteca municipal. Os acenos dos que se despedem na estação rodoviária. A música de um acordeom tocado na praça central. Uma flor que brotou no asfalto sendo colhida por alguém". Toma fôlego. "- O gari que interrompe o catar de lixo para reler numa folha suja de jornal velho uma poesia que viu na infância. A idosa ex-balairina que dança na rua sob a chuva quando escuta uma antiga canção. O engraxate que desenha retratos nas calçadas. A estudante de piano que vende rosas para pagar as aulas. Alguém que vê a cidade do alto de um edifício com olhos rasos d'água por imaginar tantos sonhos habitando naquele emaranhado de prédios". Ítalo chora. "- São Paulo é isso: uma ideia, um ideal, muitos desejos, incontáveis possibilidades, uma cidade sendo reinventada todo dia". Os ouvintes estavam maravilhados. "- O senhor menti! Ou então está delirando!", de repente disse um professor, que ouvia tudo. "- São Paulo nunca foi assim! Duvido até que senhor já tenha ido lá!", decretava em tom exaltado. "- O senhor diz descrever São Paulo, e vem me falar de coisas banais". Ítalo apenas escutava. "- Cadê o trânsito, o metrô, as indústrias, os museus, os monumentos, a garoa? E as ruas? O senhor não diz o nome de nenhuma delas! E eu sei do que estou falando, conheço São Paulo, já estive lá várias vezes!", termina enfim, limpando o suor que escorria da testa. "- Creio que não conhecemos a mesma São Paulo", respondeu Ítalo. "- O senhor está louco! Só há uma São Paulo!". "- O senhor se engana, existem inúmeras, tantas que às vezes se tropeça nelas, tantas que somente conseguimos capturar retalhos de algumas, e que depois de juntos, formam uma. Somos nós que construímos uma cidade, ao mesmo tempo em que ela também nos reconstrói", concluiu. "- Pois bem, vocês podem ficar aí ouvindo essas invenções, ou se quiserem, eu posso lhes contar como é São Paulo de verdade!", disse, irritado, aos habitantes que ouviam. "- A gente quer continuar ouvindo sobre a São Paulo do Ítalo, depois o senhor fala da sua", responderam. Então, Ítalo continuou descrevendo a sua São Paulo, e os que lhe ouviam, criavam outras, reais em suas imaginações. O professor continuou escutando aquilo tudo, primeiro com desprezo, mas depois com atenção, e à medida que Ítalo falava, ele começou a se sentir seduzido por aquela desconhecida São Paulo, até que um sorriso lhe escapuliu dos lábios.
* Este conto foi escrito originalmente para participar do concurso literário promovido pelo jornal O Estado de São Paulo, para contos que tivessem como tema ou ambiente a cidade de São Paulo. Contundo, ele não foi premiado.