Assim foi lá em Natividade, na beira do rio Manoel Alves...
Era final de junho. Acampávamos na margem esquerda do rio, tencionando
caçar as pacas que à boca da noite iam até a margem saciar
a sede. Porém, aquela madrugada parecia pouco proveitosa: como de costume,
além da gente, os fazendeiros da região também faziam suas
caçadas, pois não raro ouvíamos os tiros rasgando a madrugada
e afugentando os bichos para o fundo do mato.
Prevendo aquilo, deixamos em prontidão a canoa e o material da pesca.
A gélida madrugada ribeirinha se desvanecia na medida em que o sol nascia.
Seis da manhã. Tomávamos o café quando de súbito
fomos alertados por latidos que vinham da mata.
- É a suçuarana. Deve ter farejado algum bando de caititu!
Suçuarana era a experiente cadela que nos acompanhava. Perdigueira por
excelência, desde nova fora acostumada a viver nos barrancos do rio. Nadava
com extrema destreza, tão ágil quanto uma ariranha. Sucedeu até
certa feita que, numa época de cheia, um dos peões que nos acompanhava
precisou atravessar o rio. Além dele, a esposa e dois filhos, um de doze
e outro de sete, acompanhados por suçuarana, enfrentando a fúria
da correnteza numa canoa pequena e frágil. Um grande tronco de ipê,
encoberto pela água barrenta, chocou-se violentamente contra a canoa.
O homem, a mulher e o filho mais velho conseguiram nadar. O menor ia longe,
com a cabeça hora dentro, hora fora d'água, numa expiação
de fazer dó. A cadela que a esse momento já se encontrava salva,
não hesitou em pular na correnteza atrás do menino. Conseguiu
arrastá-lo até a margem.
Os latidos vinham alto. Quando nos aproximamos, percebemos que na verdade o
que suçuarana havia encontrado era um bando de perdizes. Na verdade,
era uma perdiz acuada em cima de uma árvore. A cadela latia ferozmente
e já se preparava para subir, quando a perdiz bateu em revoada rumo ao
rio.
Suçuarana não deixou de acompanhá-la. A perdiz, temendo
a morte, pulou para dentro d'água. Suçuarana também pulou.
A partir desse momento, não vimos mais a cadela. Começamos a percorrer
a margem, mas nenhum sinal. Decidimos então descer o rio com a canoa,
até onde julgássemos possível suçuarana estar.
A procura foi longa. Mais de uma hora, e nenhum sinal da cadela.
- Hora dessas já virou comida de peixe! - um dos companheiros dizia.
Aquela seria uma perda lamentável. Suçuarana não tinha
descendentes, pois por capricho da natureza não podia emprenhar. Era
uma cadela como poucas: corajosa, inteligente... doía saber que a tínhamos
perdido. Decidimos voltar, quando um dos companheiros avistou alguma coisa se
movendo ao longe, rumo à margem direita.
Ao chegarmos mais perto, percebemos que era suçuarana, carregando algo
na boca. Era um imenso jaú, de um tamanho nunca visto no Manoel Alves.
A cadela mal respirava, ofegante. Ficou deitada na proa da canoa, quieta, recuperando-se
do longo exercício.
- Esse jaú vai dar um belo almoço! - disse sorrindo o mesmo companheiro
que pouco antes suspeitara da morte de suçuarana.
Que grata surpresa tivemos: ao abrir o peixe para retirarmos suas vísceras,
encontramos a perdiz lá dentro, com o sangue ainda quente.