A Garganta da Serpente

Gustavo Machado

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Olhos Cerrados

(Gustavo Machado)

Dedé chacoalhou os cinco cubinhos viciados e deixou-os cair sobre a mesa.

“General!”, comemorou.

“Fim de jogo”, eu anunciei, guardando os dados, quando soou o primeiro toque de recolher.

Enquanto o pessoal deixava minha cela, Dedé recolhia cigarros, sabonetes e revistas pornográficas dos perdedores, como se fosse um joguinho normal. O carcereiro apareceu, arrastando os chinelos. O jogo era proibido. O sacana deu um arroto, ganhou seu maço de cigarros, piscou o olho e fechou a porta. Tchau, filho da puta, eu pensei.

Na cama. Segunda campainha. Nunca foi tão bom ouvir aquilo. Na minha última noite ali, mais por superstição, mantive a técnica de cerrar os olhos, cobrir o rosto todo com o travesseiro e contar até cem. Era para me acostumar com a escuridão. Quando reabrisse as pálpebras, o breu do pavilhão apagado não seria tão intenso como se eu esperasse o apagão olhando para a lâmpada gradeada do teto. Olhos cerrados, vinte e dois, vinte e três.

Eu e Perna Longa, que usava a cama de baixo, esperávamos ouvir um piado de coruja a qualquer momento. Era Dedé que imitaria o pássaro, duas celas a nossa esquerda.

Ele imitava coruja e outros bichos. Cachorro, burro, macaco, boi, galinha, gato. Era muito bom nisso. Como é, coruja? Vai piar ou não vai, eu pensava. Perna peidou duas vezes, o puto. Um cheiro ácido do feijão do refeitório misturado com suco artificial de uva e mais as outras porcarias que devia ter dentro da barriga inchada do Perna.

“Se peidar de novo vou te encher de porrada, Perna!”, ameacei.

“Desculpa. Tô nervoso pacas”, ele se desculpou.

Estávamos ansiosos e, várias vezes, repetimos esta conversa:

“Escutou?”, Perna perguntava.

Eu apurava o ouvido. Só roncos, diálogos abafados, rádios baixinhos e os passos distantes dos vigias. Só isso. Nada de coruja.

“Não”, eu respondia, meio ríspido, sem saber se estava ficando irritado com Perna Longa ou se simplesmente me esgotara daquela aflição toda.

“Não, Perna”, eu falava, em outras vezes, no mesmo tom daquele médico que cuidou do meu irmão. Seu filho não passa desta noite, infelizmente. Mamãe me arrastando pela mão, eu com uns sete anos, por aí. Jorginho, arrimo de família. Maior ponta-de-lança da Coreia. Como assim, não passa desta noite? Meu irmão mais velho. Rosa é a do meio. Sinto muito, minha senhora. Deve ser engano, doutor, disse dona Eulália, minha mãe. Duas balas no tórax. Pá, pá. Usamos os mais modernos recursos da medicina. Discussão no bar do Qualhada. O senhor examinou bem o menino, doutor? Minha mãe com cara de maluca. Jorginho ia jogar sinuca depois de chegar do escritório de contabilidade onde se matava o dia inteiro por meia dúzia de trocados. Sinto muito, minha senhora, assine aqui, por gentileza. Ai, meu Santo Antônio, chorava dona Eulália. Aquilo ajudou a matar a velha.

Minha prisão também. Examina ele mais uma vez, doutor.

Agora eu estava ali. Eu e Perna Longa, amigo de hora boa e hora ruim. Peido. Uma nuvem envenenada subindo até o meu andar. Estava demais. Já ia baixar o cacete, quando aconteceu.

“Agora foi, agora foi”, comemorou Perna Longa.

Meu companheiro partiu ao meio seu radinho de pilhas, clec, clec, retirando do seu interior a cópia da chave do cadeado da nossa cela. No canto deles, Dedé, Freitas e Gordurinha deviam estar fazendo o mesmo. Enfiamos roupas velhas, sapatos, travesseiros e jornais sob os lençóis. Ficaram ali, cumprindo pena por nós. Abrimos a tranca sem um ruído e ficamos abaixados na frente da porta.

No segundo piado, passamos para o lado de fora. Agora o silêncio era absoluto. Na escuridão, o presídio inteiro tentava imaginar nossos movimentos, vibrando. Ao menos os que sabiam da fuga.

Distingui os vultos dos meus outros três amigos avançando. Seguimos seus passos. Tínhamos que dar quase toda a volta pelo mezanino do pavilhão até que chegássemos à porta corta-fogo que nossos colaboradores haviam garantido que estaria aberta. E estava mesmo.

Descemos dois lances pela escada de emergência. Tudo no escuro, no tato. Meu coração parecia um tambor. A porta que nos levaria ao subsolo também estava destrancada.

Impressionante como o dinheiro evita más surpresas, eu pensava. Aquela fuga nos custara os olhos da cara. E outros olhos também. Pobre da Suelen, namorada do Gordurinha. Nos dias de visita íntima, ela deu um jeito de ir trazendo dólares dentro de tubos de vitamina C.

Também entrou tutu em pacotes de biscoito, rádios de pilha, latas de chocolate em pó, vidros de café solúvel, jornais. Eu lembrava dessas coisas, quando chegamos.

Corredor de serviço, longo, estreito. Do teto alto, três lâmpadas muito distantes uma da outra faziam uma penumbra amarelada.

“Por aqui”, sussurrou Dedé, na verdade João Antônio. Mas o sacana era a cara do Dedé Santana, aquele do Didi Mocó, e o apelido pegou.

Partimos atrás dele, um a um. Parecia filme de espião. Desses filmecos que os vagabundos assistem no barraco, de tarde, enquanto trabalhador está se fodendo no basquete. Ou como nas histórias do 007 que eu lia na biblioteca da penitenciária. Primeiro, ficava lá por castigo, quando fazia alguma cagada disciplinar tipo bater em alguém, fumar um baseado, jogar a dinheiro.

Depois, fui gostando e logo passei a ler também umas outras coisas. Fiquei bom no negócio e chegava a derrubar até três livros por semana. É que comecei a me sentir, sei lá, mais inteligente. Esse novo hábito está sendo formidável na sua reabilitação, dizia a doutora Fernanda, psicóloga. Cinco anos parece uma vida. Tem tanta coisa pra gente lembrar.

“Fim da linha”, disse Dedé, apontando para os cinco carros de roupa suja que esperavam por nós.

Pulamos para dentro dos carrinhos. Cesto de roupa suja sempre fede, mesmo na casa da gente. Imagine um cesto com a roupa de cama de preso! Caí no Presídio Central, lembrei, depois de uma semana escondido numa obra da Zona Sul. Comendo lixo, assando rato, lambendo água de poça. Sete dias sem banho, sem lençol, sem cama, passando frio, sem escova de dentes. Quando os PMs me puseram na viatura, não paravam de reclamar do meu fedor. Era um cheiro parecido com aquele ali.

Tudo mexendo, barulho de porta fechando. Deviam estar nos acomodando no caminhão da lavanderia. Motor acionado, rodas em movimento. O caminhão cruzava o pátio lentamente, eu conseguia imaginá-lo como se estivesse numa das celas. Paramos. Vozes. Risadinha.

Provavelmente, os guardas da primeira guarita. Rodamos mais uns metros. Paramos de novo. Agora rodávamos na rua, som de trânsito, tranquilo, àquela hora da madrugada. Comecei a chorar sei lá por quê. De repente, pneus guinchando. Os carrinhos se amontoando como num acidente de free-way. Um outro veículo se aproximou e freou também. E mais um outro. Estávamos parados. E eu chorando no meio daquele fedor todo. Tiros. Pá, pá. Tudo combinado, de mentirinha. Pá, pá. Era pra ser. O motorista, pobre dele, pá, pá, foi acidente. Mais tarde eu providenciaria uma geladeira nova pra mulher dele. E uns presentes para as crianças. Mulher de trabalhador fica encantada de ganhar geladeira nova. Liberdade.

***

Descanso dos justos. Acordei quando já começava a maior festa que todo mundo já tinha visto. A cada dez minutos, uma chuva de fogos iluminava o morro da Coreia. Casas enfeitadas com faixas pra mim. Felicidade de explodir o peito de um cristão. O primeiro escalão estava reassumindo. Rosa tomara conta de tudo, com mão firme.

Muita gente se fodeu com Rosa. Não dançou certinho, bang, bang. Se não fosse minha irmã, casava com essa negona. Isso eu mesmo sempre dizia pra ela.

A boca-livre era na minha casa. Só coisa de sociedade: peru assado, churrasco, leitão, sorvete pra criançada, música ao vivo e cerveja gelada. Na cabeceira da mesa comprida, recebia boas-vindas de gente feliz em me rever. Queriam saber da minha saúde, se eu tinha sofrido muito. Até o padre Libório e o pastor Aristides apareceram. Pra abraçar e pedir dinheiro. Também recebi mães pedindo pra eu dar conselhos pros filhos delas, abobados de crack. E esposas querendo que os maridos sumidos e ainda vovós atrás de dinheiro pra comprar antibiótico. Eu concordava, prometia, entregava, sorria, abraçava. Mas sabia direito o que me diziam. Estava contente e confuso. Até que comecei a beber e relaxar.

No fim da festa, levei para o meu quarto uma loura e uma mulata de derreter asfalto novo em dia de chuva. Meu atraso era tão fenomenal que matei as duas no cansaço.

Rolou sacanagem até ficarmos exaustos, despenteados, suados, melequentos, meio azedos, como o Diabo gosta. Me joguei para trás com as duas fulanas deitadas na minha barriga. Um perfume gostoso subindo do cabelo delas.

Mulher é uma coisa muito boa. Mesmo quando ronca. As duas roncavam, dá pra acreditar? Umas boas daquelas, roncando? Só faltava peidarem como o Perna. Tive que rir disso. Ri pra cacete. Depois o sono me pegou de jeito.

Um galo cantou e eu acordei sem abrir os olhos. Caralho, será que era sonho? O perfume das putas ainda estava ali. Mas isso podia ser ainda um restinho de sonho. Temi enxergar o Perna Longa me chamando pra o café no refeitório, a luz sendo acesa uns segundos antes do toque de despertar. Tanto medo que, em lugar de abrir os lhos de uma vez, feito homem, preferi cerrá-los e contar até cem.

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